terça-feira, 29 de outubro de 2013

Adolescendo

(ou como saber que temos um adolescente em casa)


Sabemos que temos um adolescente em casa quando estamos a ver um concurso na televisão e ele diz: “Xiii… a celulite que aquela mulher tem nas pernas!” E quando somos informadas que os trajectos diários de autocarro passaram a ter muito mais piada desde que a Miss Bélgica começou a apanhar o 14A.
 
Sabemos que temos um adolescente em casa quando a roupa que comprámos há um mês deixa de servir. Quando começamos a herdar roupa do nosso próprio filho. E quando aquela camisola lindíssima às riscas que o obrigamos a vestir aparece "por acaso" com um buraco enorme. Quando o casaco encharcado que estava a secar no estendal desaparece de manhã, porque os outros três casacos que ele tem não são tão fixes.
 
Sabemos que temos um adolescente em casa quando lhe ralhamos por causa de uma coisa insignificante e ele desata num pranto sem fim, muito ofendido. Ou quando lhe gritamos porque fez um disparate grave e ele desata à gargalhada. Quando tentamos descortinar pela sua cara se temos perante nós o Dr. Jekyll ou o Mr. Hyde.
 
Sabemos que temos um adolescente em casa quando tentamos equilibrar as compras do supermercado e aquelas mãos que subitamente se fizeram grandes pegam naquilo tudo sem qualquer dificuldade. Quando eu vou a arfar escada acima com o irmão ao colo e ele o leva às costas como se fosse um peso pluma.
 
Sabemos que temos um adolescente em casa quando deixamos de conseguir responder a todas as suas perguntas e somos obrigadas a admitir que é melhor ir ver à Net. Quando aquilo que dizemos começa a ser posto em causa. E aprendemos coisas novas quando falamos com ele.
 
Sabemos que temos um adolescente em casa quando cheira a trolha na casa de banho depois do banho. E na lista de compras aparece, pela primeira vez, uma gilete e um after-shave (esqueceu-se da espuma de barbear…). E damos por nós a palmilhar o corredor dos desodorizantes de homem à procura do “Axe Marinho”, porque o colega só usa esse e cheira mesmo bem a trolha.
 
Sabemos que temos um adolescente em casa quando, de repente, somos estranguladas por dois braços enormes e percebemos que é um abraço apertado do bebé pequenino que nos puseram no colo há tão pouco tempo atrás. Quando a voz grossa alterna com a voz fininha e nos perguntamos com quem estamos a falar. Quando tentamos abraçá-lo e ele se escapa de mansinho porque o mimo agora se faz discreto.
 
Sabemos que temos um adolescente em casa quando o “amo-te, mãe” passa a ser “gosto muito de ti, mãe”. E percebemos que em breve (muito em breve) estas palavras ficarão reservadas para outra mulher.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Perspectiva infantil

(onde se compreende que o mais importante é o Halloween)

 
O Vasco, mais conhecido por coisa pequena (ou petite chose), nunca esteve doente na vida. Nunca teve febre, em quase 7 anos de existência. Mentira. Quando tinha 2 meses apanhou um vírus respiratório, que o ia levando desta para melhor e nos obrigou a passar uma temporada na Estefânia. Lugar muito agradável, que me deixou os primeiros cabelos brancos. Mas, pronto, excepto isso nunca teve nada. A especialidade do pequeno terrorista é partir coisas: cabeças (dele e de um colega), o queixo, a boca toda... e, agora, um pé.
 
Anteontem, a jogar à bola no recreio fez uma defesa aparatosa e caiu. Levantou-se (com as calças rasgadas) e continuou a jogar. Ontem ainda andou a trepar às árvores depois da escola. Mas o pé continuava a doer “um bocadinho”. Fomos ao hospital e lá veio o veredicto: está quase, quase partido. Coisa para dar umas dores insuportáveis (hum, hum…). Tem gesso até ao joelho e tem de ficar de repouso, no mínimo, dez dias (há-de ser certo…). As canadianas são uma potencial arma de arremesso e a cadeira de rodas um kart adaptado (ambos testados ainda antes de sairmos do hospital). Prevêem-se dias animados, nesta casa.
 
O Diogo tentava animar-me… “Ó mãe, pelo menos, já não tens de comprar um fato para o Halloween. Ele pode mascarar-se de múmia!”. De repente, a coisa pequena pareceu cair em si, pela primeira vez. Mandou um grito, aflito: “Nãoooo! Bolas! E, agora, como é que vou levar o saco dos doces no desfile de Halloween?!?!”. Responde o irmão: “Cala-te, parvo! De cadeira de rodas vão dar-me muito mais doces!” Suspiro aliviado da coisa pequena.
 
[Juro que só não lhes dei com a porcaria das canadianas em cima porque tinha uma enfermeira à minha frente.]

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Nature Provides

(e a casa foi mobilada aos poucos com o que ia aparecendo)


Primeiro, apareceram as cadeiras, umas horas depois de ter alugado uma casa completamente vazia. Íamos a caminho de Amesterdão, onde o amigo que me acompanhou na road trip até à Bélgica ia apanhar o avião. Estávamos cansados, irritados, perdidos. Encostámos o carro na berma para consultar o mapa. No meio da discussão, mesmo à nossa frente, vimos três cadeiras de madeira maciça absolutamente fantásticas no lixo. Olhámos um para o outro e, sem dizermos uma palavra, pegámos nas cadeiras e enfiámo-las no carro, estilo Tetris.
 
Este meu (grande, tão grande) amigo, tinha passado a viagem a dizer que ia correr tudo bem, que não me preocupasse, que quando precisamos mesmo nature provides. A partir daquele momento, decidi começar a ter um pouco de fé, pela primeira vez na vida. E as coisas começaram a aparecer aos poucos. Não sei se fui eu que nunca prestei atenção, se de facto a natureza (há quem lhe chame Deus, providência, destino…) veio em meu auxílio naquela altura. Nos dias seguintes, achei o móvel da sala no lixo em Monschau, na Alemanha (onde também andava perdida), dois troncos lindíssimos que fazem de móvel de TV na orla de um bosque, um sofá com um papel a dizer “Para oferecer” à porta de uma casa  e, mais engraçado, o tampo da mesa no contentor de uma loja em 2ª mão onde tinha ido ver mesas.
 
Todos os outros móveis da casa foram oferecidos, comprados em 2ª mão ou recuperados, como a minha secretária, que era a antiga bancada da cozinha dos meus "pais belgas". Sei quanto custou cada coisa, porque o orçamento estava controlado ao cêntimo. A semana que antecedeu a chegada dos rapazes, passei-a a consultar sites e a palmilhar o país para ir buscar tralha. Uma tarde, vi um anúncio de um hotel que ia fechar. Meti-me a caminho e, por 44 euros, trouxe as camas dos rapazes, colchões plastificados, almofadas, edredons, lençóis, um espelho e um caixote do lixo. E ainda me ofereceram vários brinquedos. O senhor teve de me empurrar para conseguir fechar a porta do velho citroën saxo, que veio com o porta-bagagens completamente aberto. Com medo de ser apanhada pela Polícia naqueles preparos, fiz o caminho de regresso por estradas secundárias. Demorei mais de 3 horas e cheguei já era noite cerrada, mas lembro-me que foi a primeira vez que senti que as coisas iam mesmo correr bem.
 
Felizmente, esta casa tinha uma cozinha equipada com frigorífico e fogão. O congelador e grande parte da nossa loiça foram oferecidos pelo meu "irmão" Benoît e pela mulher. Só no dia de Natal, quando ela me mandou um sms a pedir para levar pratos, é que percebi que tinha dividido o serviço de jantar comigo. Quando nos mudámos, a vizinhança foi aparecendo tímida com alguns tarecos. Ainda hoje, temos tudo desirmanado nesta casa: tampas demasiado grandes para as panelas, um copo de cada nação, fronhas às riscas com lençóis às flores, toalhas desbotadas todas diferentes. Mas eu, que sempre tive uma noção de estética muito apurada, adoro. Um dia, vejo dois vizinhos à gargalhada rua acima, um sentado numa cadeira de computador e o outro a empurrá-la. Entre os dois, tinham arranjado peças suficientes para montar este mamarracho que range cada vez que me mexo.
 
Apesar de tudo, a casa demorou a ficar operacional. Os rapazes não esquecem os primeiros tempos, em que passávamos os fins-de-semana a pintar e a calcorrear vendas de garagem nos arredores. Na altura, preocupava-me que isto os pudesse traumatizar. Vejo, agora, que comer sentados no meio do chão, usar as malas como armários e falar baixinho por causa do eco, era uma aventura para eles. O Diogo ainda se ri ao lembrar-se da minha cara quando, depois de mais um périplo por estradinhas, cheguei a casa e lhe mostrei orgulhosa a minha fantástica aquisição: uma velha cama de ferro forjado do Ikea... e percebi que não tinha instruções de montagem. Passámos horas a aparafusar e desaparafusar, até chegarmos lá por tentativa e erro.
 
Houve coisas que demoraram mais tempo a arranjar, dado o seu custo elevado, mesmo em 2ª mão. Passei meses como uma cigana, com a trouxa da roupa atrás para ir lavando onde calhava. Uma noite, aproveitei o passeio do Fuas para ir buscar um cesto de roupa lavada a casa de uma vizinha. O maluco puxou tanto que nem me dei conta que fui espalhando o que estava em cima pelo caminho. Na manhã seguinte, ia morrendo de vergonha quando um vizinho bateu à porta com um monte de meias e cuecas nas mãos. Quando lhe perguntei admirada como sabia que eram nossas, ele riu-se e disse que se tinha limitado a seguir o rasto.

Sou contra cartões de crédito, por isso, não tive outro remédio se não ir comprando qualquer coisa todos os meses. Este mês, comprei o tão ansiado micro-ondas. Depois de o esfregar várias vezes, percebi que ainda tinha os plásticos de protecção originais por baixo e fiquei contente como uma miúda. É que isto de comprar coisas em 2ª mão é sempre uma lotaria, mas a verdade é que, até agora, tenho tido sempre sorte. Quando comprei uma cafeteira eléctrica toda suja por 3 euros, a minha "mãe belga" decretou que, desta vez, aquilo não ia funcionar. Passados muitos meses, ainda está ali para as curvas. Agora, andamos à procura de uma máquina fotográfica, porque a nossa morreu, após muitos anos de fiel serviço. Quando encontrar uma por 15 euros logo ponho fotografias da casa…
 

[Quando o Nature Provides não funciona, os meus queridos tios em Inglaterra dão uma ajuda, portanto acho que posso manter o título em inglês…]

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Esperem, esperem! Voltando um bocadinho atrás…

(onde se apresenta os protagonistas desta aventura)

 
Eu sou uma espécie de amálgama entre uma prestadora de serviços e uma gestora de tarefas. Tenho uma licenciatura em economia doméstica, mestrado em gestão de conflitos e doutoramento em life coaching. Quando nada disto resulta, mando dois berros. Sou a pessoa que alimenta as feras, trata da roupa (no caso do Vasco é, sobretudo, cosê-la), limpa a barraca, conduz o imaginário-móbil, ajuda a fazer trabalhos de casa, distribui ralhetes e castigos e beijinhos (nem sempre em proporções equitativas). Nos tempos livres, sou professora de línguas e tradutora. Tem dias em que chego a falar quatro línguas e acho que vou dar em doida. Portanto, a minha maior proeza é conseguir manter a sanidade mental. Pronto, alguma sanidade mental. Vá… a necessária para isto andar para frente sem descarrilar.
 
O Diogo tem 12 anos e já calça o 43. É claramente arraçado de ogre. Consegue comer este mundo e o outro, antes mesmo de eu me sentar à mesa. E, pouco depois, diz que tem fome. É o crânio da família, tem mais ideias idiotas por nanosegundo do que nós todos juntos. É conhecido como o escravo de serviço: passeia o Fuas à tarde, limpa a gaiola dos bichos pequenos e solta-os no final do dia, limpa o quarto ao sábado. Fora isso, diz que estuda que se desalma mas não há provas concretas, toca muito pouco trompete, aplica-se desalmadamente no solfejo 5 minutos antes de a aula começar. Devora livros de ficção científica, enquanto troca sms com os amigos em duas línguas diferentes, joga no iPod, vê um filme e conversa comigo. Apesar disso, a sua maior façanha é conseguir roer as unhas dos pés. E o conhecimento enciclopédico sobre Star Wars.
 
O Vasco é o palhaço do circo. Tem bichos-carpinteiros nos pés e no corpo e na cabeça. Toca violino e está sempre a cantarolar. Come formigas, lambe lesmas, rouba a ração do cão e devora estalactites que tira debaixo dos carros no Inverno, mas vomita se o obrigar a comer uma folha de alface. Nunca esteve doente na vida, cai normalmente duas vezes por noite da cama abaixo e vem sempre da escola com as calças rasgadas. Lê BD em voz alta como se estivesse na Idade Média. Escreve emails absolutamente deliciosos. Domina três línguas na perfeição: português, francês e emigrantês. O seu maior feito é ter sido mandado para a rua na aula de solfejo com apenas 6 anos. Está visto que tem um futuro brilhante pela frente.
 
D. Fuas Roupinho é um cão de caça, que foi adoptado já adulto. E, basicamente, está tudo dito. Não pode ser solto porque foge como se o espancássemos diariamente. Consegue cheirar uma migalha de bolacha podre a quilómetros. Persegue incansavelmente tudo quanto mexe. Faz chichi no chão quando lhe ralhamos (se for um homem, basta olhar fixamente) e tenta morder os tornozelos dos miúdos quando grito com eles. Um aliado, portanto. Tem uma função de aspirador que é activada automaticamente quando o Vasco se senta à mesa. Ah… dorme de patas para o ar, com a língua de fora.
 
O Peanuts é um coelho completamente tarado. Era suposto ser anão, mas deve ser do ponto de vista do Gulliver. Pede festas à bruta como se fosse um cão e adora mimo. Descobri (depois de o adoptar, parva!) que costumava andar pela casa em liberdade. Por isso, passa a vida a dar cabeçadas na porta para ver se a abre. Já destruiu duas gaiolas com a brincadeira. E quando digo gaiolas, refiro-me a jaulas com 1mx0.8m. Deve ser familiar distante do Tambor, porque bate furiosamente com a pata no chão para nos acordar a todos de madrugada.
 
O Dó Ré Mi é um porquinho da India que deve maldizer o dia em que veio parar a esta selva. É uma criaturinha nervosa que não deixa nada a desejar a um cavalo de corridas em termos de velocidade. É tão feio que chega a ser bonito. Adora festas atrás das orelhas e exprime o seu contentamento como se fosse um porco na matança. Fizemos-lhe uma casinha de madeira este fim-de-semana e nunca mais ninguém o viu.
 
 

A nossa aldeia

(onde se explica porque adoramos viver no fim do mundo)

 
Malempré fica encaixada num vale, a 4 km da vila mais próxima. A rua principal desemboca, em cima e em baixo, numa floresta sem saída. Em pleno inverno, quando os dias são muito curtos e escuros, fica coberta de neve e estamos ligados ao mundo por uma única estrada transitável, de onde saltam veados, javalis e outros bichos estranhos. Dizem que, quem aqui chega, nunca mais se quer ir embora. Desconfio que é bem capaz de ser verdade.
 
Viemos cá parar por acaso. Alugar casa, na Bélgica, é tarefa hercúlea. E uma trabalhadora independente estrangeira, sozinha com duas crianças e um cão, não é cartão-de-visita que se apresente. Vi muitas casas, recebi muitas negas. Até que o meu “pai belga”, um apaixonado pelas Ardenas, descobriu esta casa perdida no fim do mundo. Admito que vim vê-la em desespero de causa. Mas, quando parei o carro e vi um Santo António numa cornija, soube que estava no sítio certo. O senhorio alugou-me a casa sem pedir quaisquer documentos e, ao perceber a nossa situação, disse que mais tarde tratávamos da caução… passou-se um ano e continuo à espera.
 
Em Malempré, os duzentos e tal habitantes conhecem-se todos. E, mesmo que não se conheçam, dita a regra que se cumprimentam como se fossem amigos de longa data. Toda a gente se trata por tu. Os miúdos param sempre para dar um beijinho. E os velhotes dois dedos de conversa. Aqui, toda a gente se conhece há tanto tempo que não há hierarquias. A senhora que faz limpezas durante a semana é a professora de equitação ao Sábado.
 
Claro que nem todos se dão bem, há picardias e vizinhos desavindos. Numa das (muitaaas) vezes em que fiquei presa na neve, a primeira pessoa que passou foi, como não podia deixar de ser, a vizinha que não me fala. Parou com toda a naturalidade para me levar os miúdos e avisar que ia pedir para alguém me vir rebocar com um tractor. No dia seguinte, à porta da escola, já não me falava outra vez.
 
Em Malempré não há supermercado, nem mercearia… nem sequer uma simples padaria. Mas já me apareceram à porta com abóboras gigantes, ovos todos sujos, gnochis e pizzas caseiras, marmelada, alhos franceses pequeninos, cogumelos cheios de terra, figos, especiarias árabes e meio javali (por desmanchar, obviamente). Como também não há cafés, os sms habituais andam todos à volta do mesmo assunto: “Vens cá a casa beber café, depois de levares os miúdos à escola?”, “Daqui a 10 min passo por aí para beber café contigo, ok?”, “Socorroooo, não tenho filtros!” (este foi meu, claro).
 
Obviamente, não há “serviços”, por assim dizer, mas toda a gente tem uma profissão fora do seu horário de trabalho. A cabeleireira corta cabelo em casa nas folgas, o mecânico dá um jeito nos carros à noite, o reformado que ia a passar quando me debatia para tirar a máquina de lavar do carro, ajudou a trazê-la para casa e ainda me fez a instalação.
 
Em Malempré impera a lei de Lavoisier: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Quando nevou pela primeira vez, no ano passado, uma vizinha deu-me um fato de neve para o Vasco que já não servia ao filho, que agora vai herdar o fato do Diogo. Roupa, brinquedos e jogos correm a aldeia, passando de uns para os outros. A ideia não é só ajudar, mas principalmente reaproveitar. Em Maio, faz-se uma venda de garagem pelas ruas da aldeia para vender os mamarrachos que deixaram de ser úteis. Foi assim que o Diogo comprou uma televisão por 15 euros, depois de ter estado um dia inteiro a vender tralha.
 
Em certos aspectos, parece que a aldeia parou no tempo, não temos fibra óptica, nem novas linhas telefónicas disponíveis. Noutros, estamos na vanguarda. Em breve, graças a um grupo de habitantes empenhados, Malempré estará ligada em rede a uma caldeira comum, alimentada com dejectos da indústria madeireira local, para termos aquecimento central mais ecológico e económico.
 
Em Malempré não há chuva, frio ou neve que assuste a criançada. Vão a pé ou de bicicleta para a escola, tanto de Inverno como de Verão. Quando as estradas estão cobertas de neve, vão de trenó. E, no final da tarde, vai tudo para a rua brincar até às seis da tarde. Miúdos de todas as idades brincam juntos na rua, jogam consolas em casa, ajudam os adultos nas quintas. Apesar de terem telemóvel, preferem ir bater à porta de casa uns dos outros. Os cães da aldeia costumam acompanhá-los, o que faz uma algazarra desgraçada.
 
Na realidade, animais é coisa que não falta por aqui. Por todo o lado se vêem vacas, ovelhas, burros e cavalos. A bicharada é encarada como um meio de subsistência, excepto para os meus filhos, que param para fazer festas a tudo quanto mexe. Os animais de estimação vivem na rua e só entram em casa para comer e dormir. Os únicos que passeiam o cão com trela somos nós, mas D. Fuas Roupinho é um cão de caça estúpido que não distingue um coelho de um touro e não sabe uma palavra de francês.





domingo, 20 de outubro de 2013

A Bélgica?! Mas porquê a Bélgica?!

(ou como uma decisão aos 15 anos pode mudar a nossa vida)


Aos 15 anos decidi fazer um programa de intercâmbio da YFU, só para adiar um ano a escolha da minha área de estudos. Escolhi ir para Inglaterra, fui parar à Bélgica. Queria melhorar o meu inglês, acabei por aprender francês. A família de acolhimento perfeita, escolhida pela organização, afinal era completamente doida. Mudei-me para casa de uma família com 5 filhos para quem fazia babysitting, que vivia numa aldeia longe de tudo, a braços com o desemprego. Considero-os como a minha família, são os meus “pais” e “irmãos” belgas. Nunca perdemos contacto, passei muitas férias na Bélgica. Hoje, são “avós” e “tios” dos meus filhos. São a minha rede de apoio aqui. Para quem emigra sozinha com duas crianças é importante saber que, caso aconteça alguma coisa, há quem assegure os serviços mínimos de manutenção.

Por isso, quando decidi partir, a escolha pareceu-me lógica. A Bélgica fica apenas a 2500 km de Portugal, podia vir de carro. Fica no coração da Europa e oferece uma visão cosmopolita do mundo, como sempre sonhei dar aos miúdos. Se não arranjasse trabalho na região de Liège, em pouco mais de uma hora estava em França, na Holanda, na Alemanha ou no Luxemburgo, abrindo assim o leque de hipóteses. É um país onde quem domina quatro línguas podia facilmente arranjar emprego, com leis de protecção à família bastante boas. Para além de ser um país onde ainda se ganha bem, tendo em conta o panorama europeu, e que não tem os problemas sociais da França.

[Claro que tudo isto acabou por se revelar bem mais complicado do que inicialmente supus, mas isso é outra história…]

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O que faz uma pessoa?

(onde se percebe como raio viemos aqui parar…)


O que faz uma pessoa que está há nove meses a trabalhar para uma empresa sem receber? Uma pessoa que se deixou enredar na ideia de que, se deixasse de trabalhar, perderia tudo o que está para trás. Uma pessoa que, finalmente, começa à procura de outro emprego, mas os meses passam e não arranja nada.

O que faz uma pessoa quando, aos poucos, vai perdendo a esperança, a motivação, a auto-estima, o gosto pela vida? Uma pessoa que se deixa engordar, que se desleixa, que se torna baça. Uma pessoa que está deprimida e ninguém à sua volta parece perceber.

O que faz uma pessoa que dá por ela a deambular numa casa que odeia, numa terra que odeia, onde vive há 10 anos porque é conveniente para o trabalho do outro? Uma pessoa a quem a crise obrigou a criar raízes no sítio errado e que nada consegue fazer para mudar.

O que faz uma pessoa que se entregou durante 18 anos de alma e coração a um projecto de vida que, de repente, deixa de fazer sentido para o outro? Uma pessoa que, subitamente, é confrontada com o final de um casamento, no momento em que mais precisava do outro.

O que faz uma pessoa que foi mãe a tempo inteiro durante o dia, permitindo ao outro fazer  carreira, e tradutora a tempo inteiro à noite, quando vê que perdeu tudo? Uma pessoa que se arrastou esgotada, durante anos, sem se questionar se seria feliz, numa espécie de missão quimérica de fazer o melhor para a sua família.

O que faz uma pessoa que se vê sozinha com duas crianças, sem família por perto, sem dinheiro? Uma pessoa que habituou os seus filhos a um certo nível de vida que sabe que não poderá manter. Uma pessoa que se sente encurralada, que já não tem capacidade para ver uma luz ao fundo do túnel. 

O que faz uma pessoa quando o corpo começa a falhar aos poucos? O que faz uma pessoa quando toca no fundo?
 
Não faço a mínima ideia do que outras pessoas fariam... Sei o que eu decidi fazer, numa altura em que não tinha grande capacidade de raciocínio e andava em modo de sobrevivência. Fiz as malas, peguei nos miúdos e parti. Dizem-me que fui corajosa. Sinceramente não acho que tenha sido a coragem que me moveu. Foi o desespero. Foi desespero puro que me levou a deixar Portugal, a família e os amigos para procurar uma solução noutro país. Diz-se que corajoso é quem foge para frente, cobarde é quem foge para trás… eu fugi para a frente sem olhar para trás.