domingo, 29 de junho de 2014

Sejamos sinceros, isto não é fácil

(onde se apresenta a evolução do estado do tempo)


No início, o céu começou aos poucos a mudar. O sol desaparecia por vezes. E aparecia uma chuva miudinha. Aquela chuva de Verão que deixa um cheirinho bom no ar. Que sabe tão bem. Que refresca. Eram pequenos sinais de mudança que acolhi feliz. Confiante de que os tempos que se avizinhavam não seriam fáceis, mas seriam para melhor. Com períodos mais ou menos conturbados pelo meio, é certo. 

Depois, começou mesmo a chover. Chuva forte, que em segundos ensopa tudo. Uma chuva que aparece subitamente, em bátega. Céu escuro, nuvens ameaçadoras. E eu pensei: “Pronto, são os tais períodos mais turbulentos. Calma, já passa.” E passava mesmo. O céu clareava, as nuvens desapareciam, o sol brilhava. E eu respirava de alívio. A mudança é sempre boa. 

Agora, o céu está quase sempre nublado. Os dias são sombrios. De vez em quando, há tempestade. Chuva que não pára, com grossos pingos que magoam quando nos atingem. Trovoada. Quando o sol finalmente aparece, tudo muda. Dá-se a magia. Tenho um vislumbre dos tempos calmos que passaram. Antevejo o tempo estável que está para chegar. 

Em momento algum o amor que sinto por este meu filho adolescente esmorece. Mas sejamos sinceros, isto não é fácil. Nada fácil. O Inverno promete ser longo.
 
 

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Raios partam os miúdos, pá!

(onde se mostra que viver num cochicho ou num palácio

 não muda a nossa essência)


Nos últimos tempos que passámos na casinha de paredes azuis em Malempré, eu revirava os olhos porque já não aguentava o barulho dos miúdos. Acho que tinha chegado ao meu limite de convivência a quatro (mais bicharada) num espaço tão exíguo. O meu amor dizia-me para ter calma, que estávamos quase a mudar de casa, que aquela era muito pequenina, que estávamos sempre todos uns em cima dos outros, que a culpa não era deles. Dizia-me que em Vielsalm é que era, que tudo ia mudar, uma casa nova, um palácio com quatro andares, um quintal a perder de vista…

Ele falava, falava, falava e eu nunca o interrompia. Mas nááá… Algo me dizia para não acreditar muito naquele cenário idílico: o meu amor a trabalhar em silêncio no computador na sala, o Diogo refugiado a ler no seu quarto no sótão, o Vasco a correr lá fora em busca de aventuras, D. Fuas a apanhar banhos de sol (com o coelho a saltitar também por ali) e eu a ler um livro estiraçada no banco do quintal. Parecia-me… Como explicar? Parecia-me muito “Uma casa na pradaria”. E, como se sabe, nós é mais “Família Adams”.

Um mês depois das mudanças, o que tenho eu a dizer sobre este assunto? Pois… O meu amor continua a trabalhar no computador com tampões nos ouvidos, escondido na casa de jantar. O Diogo está sempre a descer as escadas como se fosse um ogre enraivecido para vir chatear o Vasco. Se fica meia-hora trancado na sua torre de marfim já é muito. Passam o dia no sofá da sala à bulha. O Vasco quando se decide finalmente a ir lá para fora brincar, é para atirar a bola para o quintal dos vizinhos ou fazer um banzé desgraçado a lançá-la contra a parede (vulgo, jogar ténis). D. Fuas divide os seus dias entre percorrer a cerca do quintal para encontrar um ponto de fuga e abrir a porta da casinha dos outros bichos para os caçar. O coelho a única vez que saltitou no quintal meteu-se num buraco e foi o cabo dos trabalhos para o tirar de lá, porque está gordo que nem um porco. Eu… eu acho que a única vez em que me sentei no banco do quintal foi quando ia a correr atrás do estupor do cão que ia a fugir e tropecei. 

Fora isto, está tudo bem. Somos muito felizes na nova casa.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Todos os malandros têm sorte

(onde se apresenta uma jovem personagem casmurra)


Sabe-se lá porquê o meu chefe, um miúdo de 26 anos teimoso como uma mula, embirrou que eu tinha de tirar férias no Verão. Que o Carnaval já ia longe, que eu estava cansada, que tinha dois filhos, que toda a gente ia de férias menos eu… blá, blá, blá. Vai daí, saiu-se com uma ideia peregrina: já que ainda não tinha direito a gozar férias, muito menos a subsídios de férias, ele deixava-me tirar duas semanas sem receber. Uma generosidade que tive de recusar educadamente. Várias vezes. Com uma paciência infinita lá lhe expliquei que, embora agradecesse a simpatia, não me podia dar ao luxo de tirar 15 dias de férias não pagas. Ou seja, para todos os efeitos práticos, de faltar metade do mês ao trabalho. Foi difícil convencê-lo de que estou longe de ser uma workaholic, mas que não podia chegar ao final do mês de Julho com metade do meu salário na conta. Não é por mal, mas é uma coisa que não me dá mesmo jeitinho nenhum.

Mas o meu chefe não desistiu. Ligou à contabilidade. Disse que eu tinha direito a tirar dois dias pagos, segundo uma lei qualquer que me ultrapassa. Eu sei que tenho, mas também sei que a Administração decidiu há muitos anos que toda a gente metia esses dias na semana do Natal para podermos fechar a instituição. Certo, mas daqui até ao Natal fazia umas horas extras e compensava, argumentou todo contente. Aceitei, agradecida. Juntamente com as minhas folgas semanais, já dava para tirar uma semana de férias. Com um dia de trabalho não pago, vá. Se é para a loucura, sejamos loucos. 

O meu chefe ainda não estava satisfeito. Uma semana não são 15 dias, reclamou ele, com uma lógica matemática imbatível. Lembrou-se de ver se eu não teria horas suplementares por descontar.  Horas suplementares? Nááá… não me cheira. Sou uma pessoa ciosa do seu descanso. Mas ele nem me ouviu e foi ligar novamente à contabilidade. Obrigou a pobre rapariga, que está sozinha a processar os pagamentos do final do mês, a ir buscar os meus cartões de ponto desde Fevereiro para contar todos os minutos que fiz a mais. Ontem, estava de folga e recebi no meu email pessoal uma folha complicadíssima de Excel repleta de cores e de colunas. Uma coisa demasiado hermética para a minha capacidade de compreensão. Mas o meu chefe casmurro esta manhã fez questão de anunciar vitorioso que tenho 21 horas extra acumuladas. Que tenho direito (parece-me que é mais obrigação, mas pronto) de trocar por uma semaninha de férias forçadas. A modos que é assim: aproximam-se 15 dias de férias! Nem ousei dizer-lhe que tenho uma tradução para entregar na próxima semana, não fosse ele voltar à carga...  

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Dia bom

(que de uma assentada só compensa tudo o resto)


Dia de ataques de riso. Começou de madrugada, a jantar na companhia de mis alumnos. Apareceram quase todos para a entrega dos diplomas. Bem vestidos e orgulhosos. Com mulheres, maridos, filhos. Um deles levou um espanhol “verdadeiro”, como me confidenciou sorridente. O diabo do homem tinha uma pronúncia estranha e não dizia os “ss”. Acho que o problema se devia mais à falta de dentes, do que pelo facto de vir da Andaluzia. Fosse como fosse, animou a noite e provocou gargalhadas. 

Dia de folga. Com o meu amor a ir levar a coisa pequena à escola para me deixar dormir mais um bocadinho. Mimos que me continuam a parecer estranhos e que ainda tenho relutância em aceitar. E eu lá em cima, a dormitar e a ouvi-los rir, cúmplices. Entregues a conversas só deles sobre piratas e heróis mitológicos e animais assustadores. 

Dia de entrega do boletim do Vasco. Excelentes notas e um menino tão humilde. Feliz. Seguiu-se um piquenique no parque, ao sol. E a apresentação de final do ano do Coro na Académie. Há poucas coisas que me emocionem tanto como ouvir o meu filho pequeno cantar e dançar. Há poucas coisas que me emocionem tanto como ver um sorriso de orgulho estampado na cara do meu amor, que o seguia com atenção. Com emoção. Que sabia as letras todas de cor. 

Dia de discussão e de pazes. Dia inútil de férias de um adolescente que se tornou rezingão e malcriado e indolente. Dia exasperante de férias de um adolescente que ora grita quando se enerva, ora chora quando é chamado à atenção. Dia de uma conversa interessante, em que percebo mais uma vez que as dores de crescimento não são apenas físicas. E que ainda há espaço e necessidade de mimo de mãe.

Dia de um anjo da guarda. Um empregado solícito da Belgacom que decidiu, por sua própria iniciativa, vir cá a casa resolver finalmente o problema da internet. Que sabe-se lá como desencantou a tomada maléfica na cave e a arranjou. E ainda me ofereceu quilómetros de cabos, para finalmente ligarmos a internet sem termos fios a atravessarem a sala e a enrolarem-se nas patas do D. Fuas.

Dia de bolo de chocolate fondant com chantilly para o menino do coro mais terrível do mundo. Que arrancou um sorriso ao adolescente comilão. Que fez o meu amor surripiar comida às escondidas na cozinha como um miúdo traquinas. Que me encheu o coração.
 
Dia simples. Dia bom.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Adiar as férias

(onde se percebe que talvez não seja bem assim…)


Mais um ano que vamos adiar as férias de Verão. Há três anos que não temos férias grandes todos juntos. Estou um bocadinho zangada. Porque não é justo. Não por mim, mas por eles. 

No Verão de 2012, estava a trabalhar sem receber há nove meses. A tentar encaixar um casamento que subitamente chegava ao fim, com uma peça de roupa íntima de outra mulher no meu cesto da roupa suja. E um aborto espontâneo ao volante, algures na A1. Viemos para a Bélgica. Eu sonhava com a paz da casa dos meus “pais belgas” para começar a reconstruir-me e voltar às traduções. Deparei-me com um caos muito pior do que o que tinha ficado para trás. Voltámos a Portugal. Eles foram passar as primeiras férias longe de mim. Eu morri um bocadinho. E fui encaixotar 18 anos de vida. Percebi que afinal tudo se resume a pouco, muito pouco. Fiz a viagem de carro rumo à nossa nova vida. Arranjei uma casa, esperei por eles. 

Passou-se um ano. Um ano de adaptação, de reconstrução, de organização. De trabalho árduo. De muita neve. De um novo amor, de um amor maior e inesperado. No Verão de 2013, as aulas em Spa chegavam ao fim e eu não sabia o que me esperava nos meses seguintes. A única coisa que sabia era que ainda não tinha direito ao subsídio de desemprego. Por isso, aproveitei o mês de Julho para trabalhar como animadora na colónia de férias da nossa Commune. Os miúdos vieram comigo e divertiram-se, mas não foram férias. Depois, eles foram para Portugal. Eu fui para Itália, despedir-me do meu amor que tinha ido viver para Perugia. Pensava eu. Na mala, levava um livro para traduzir. Estava exausta, mas sentia que precisava de amealhar. O tempo acabou por me dar razão. Em Setembro, ganhei a guarda dos meninos e, como retaliação, perdi a pensão de alimentos e qualquer tipo de contribuição financeira. 

Passou-me mais um ano. Quase. Um ano em que demorei algum tempo a voltar a arranjar trabalho. A viver do que tinha economizado, que diminuía assustadoramente com as facturas da escola, do material escolar, das actividades, da música, da equitação, das centenas de quilómetros feitos para chegar a todo o lado. Roupa e sapatos que deixam de servir de um momento para outro. E o diabo das calças sempre rasgadas nos joelhos. Um carro morto que é preciso substituir depressa. Comida que parece nunca chegar. Alguns sustos a nível de saúde: um pé partido, uma mononucleose, um palato demasiado pequeno a exigir um aparelho dos dentes todo catita. E as maleitas habituais de Inverno que atacam o meu filho grande. As minhas entranhas podres. Uma mudança de casa. E depois começaram a aparecer as facturas de uma vida já instituída num país onde o custo de vida acompanha os salários normalmente elevados e todas as ajudas sociais… 

Em 2014, não consegui economizar. Ganhei menos e gastei mais. Preocupei-me muito mais. Mas os rapazes mantiveram o seu estilo de vida. E eu continuo fiel à minha máxima de viver sem cartões de crédito, ao sabor das oscilações reais da minha conta bancária. Cheguei a sonhar com as férias em segredo, mas percebi que mudarmos de casa foi a melhor opção. Ainda não é desta que vamos de férias juntos no Verão sem trabalho atrás. Ainda não é desta que deixo de ser a mãe-que-ralha-porque-tem-a-cargo-o-quotidiano-exigente para passar a ser a mãe-divertida-que-quebra-regras-e-rotinas-nas-férias. Ainda não é desta que criamos um balão de oxigénio que nos permita aguentar as discussões normais do dia-a-dia. Ainda não é desta que posso viver os dias que antecedem a partida deles a enchê-los de mimo e experiências inesquecíveis. Por isso, estou um bocadinho zangada. Porque não é justo. Fartei-me de trabalhar este ano. 

Mas, depois, penso melhor… O que lhes proporciono não fica a dever nada a ninguém! No Verão de 2012, acabámos por conseguir passar uns dias em casa do meu irmão, em Amesterdão. Eles adoraram. No Verão de 2013, passámos um fim-de-semana em Paris. Num “Formule 1” nos arredores, é certo. Sem visitarmos museus, sem fazermos compras. Mas realizei o sonho da vida do Vasco e subimos à Torre Eiffel. E vi os olhos do Diogo a brilhar quando viu a Notre-Dame. Até a avodrasta se deliciou com um crepe em Montmartre. Este ano, a melhor tia do mundo ofereceu-nos um Natal em Inglaterra e o meu amor um Carnaval em Portugal para eles estarem com a minha família. Este Verão, eu tenho de trabalhar. Trabalho novo assim o exige. O que, nos dias que correm, é uma sorte. Poder trabalhar. Eles vão ficar em casa com o meu amor. A tratar do quintal, a fazerem uma horta. A passearem. A fazerem experiências malucas. E torneios de xadrez. Desconfio que, antes de o Verão acabar, temos mais um animal qualquer nesta casa. E o meu pai vem a caminho, finalmente. Estamos rodeados por pessoas que nos amam e que lutam por nós. Com as quais temos tanto a aprender e às quais estamos tão gratos… E isso é tal e qual como o meu cartão do banco, que nem sequer me permite ter um saldo negativo.

domingo, 22 de junho de 2014

Às vezes

(ou os efeitos secundários) 


Às vezes gostava que tudo fosse mais fácil. Gostava que isto de ser mãe não fosse tão complicado. Que isto de agora sermos dois não me deixasse tão insegura. Às vezes gostava de conseguir ser mais feliz. Ou durante mais tempo. Ser mais feliz durante mais tempo. Porque sinto que só sou feliz por momentos. Mas se calhar toda a gente sente isso e eu não sei. 

Às vezes queria que as coisas corressem bem. Ou melhor. Queria não ter de contar os dias que faltam para o final do mês. Queria gostar de receber elogios por ser inventiva na cozinha. É só no final do mês, mas eles não notam. Tenho mais imaginação à medida que tenho menos. Mas eles não notam. E ainda bem. Mas eu gostava de não me sentir envergonhada com o elogio. 

Às vezes queria poder falar sobre isto de não ter mais filhos. Da esterilidade. Não gosto desta palavra e nunca a digo. Mas talvez devesse dizê-la. A alguém. O meu amor não gosta de crianças, nunca quis tê-las. Não percebe a diferença entre algo que não queremos mas podemos escolher e algo que não queremos e não podemos escolher. A diferença é subtil, mas está lá. E dói. No outro dia, tentei explicar-lhe. Ele franziu o sobrolho. Eu chorei. E ele pediu desculpa. Disse que era um hipopótamo. Não percebi a metáfora, mas percebi a ideia. E chorei mais. Às vezes apetecia-me falar sobre isto com alguém que não fosse um hipopótamo. 

Às vezes a vida corre muito depressa. E eu queria que parasse um bocadinho. Porque hoje são 13 e amanhã são 18 e ele vai poder conduzir. E beber. Quer dizer, eu sei que ele vai beber antes disso, mas finjo que não. Às vezes penso nisso e sinto um remoinho. E hoje ele diz-me que eu sou o sol e que vai levar-me com ele para a América. E eu sei lá se ele me vai levar mesmo. E diz que nunca vai deixar o violino. Mas um dia pode trocar o violino por uma miúda qualquer que lhe parta o coração. Às vezes penso nisso. Espero que não. Quer dizer, espero que a miúda não lhe parta o coração. 

Às vezes pergunto-me o que raio estou aqui a fazer. Longe de casa. Da família. E do sol de Lisboa. Depois olho em volta e vejo uma casa. E um menino a brincar ao longe no quintal. Sei que tenho um carro lá fora à nossa espera. Lá fora, não. Está na garagem. Um carro que comprei este ano. É vermelho. Nunca pensei ter um carro vermelho que adoro. É graças ao meu trabalho na biblioteca. Na biblioteca, não. Na Unidade de Documentação, porque tenho um jornal para editar esta semana. E o trabalho na escola que já acabou. Para o ano vou ter mais uma turma. Penso que consegui fazer aquilo a que me propunha, quando o chão me fugiu debaixo dos pés: sustentar sozinha duas crianças. Aulas de solfejo, instrumento, equitação, natação. Livros. Médicos. Passeios. Sozinha. Às vezes pergunto-me por que faço esta pergunta cuja resposta é mais do que evidente e está à nossa volta. Temos o coração cheio. E uma nova máquina de fazer pipocas.

Às vezes tenho medo. E tenho pesadelos. E depois tenho medo de ter pesadelos. Tento ficar no escuro de olhos muito abertos para não adormecer. Adormeço sempre. Às vezes sem pesadelos. Mas acordo exausta. Não gosto do meu novo quarto com paredes carmesins. Gosto de ter a cama ao lado da janela para ver o céu. Gosto de ter pesadelos e de esticar a mão para encontrar outra maior. E de me aninhar a ver o céu no escuro. 

Às vezes estamos a falar de coisas várias e questiono-me. Porque o meu amor é a pessoa mais inteligente que eles conhecem. Estão sempre a dizer isso. E eu gosto de ver quantidade de coisas que aprendem. Gosto de ver que são curiosos e querem saber sempre mais. Mas às vezes pergunto-me se não seria melhor falarmos de nós, do que sentimos, do que desejamos, do que receamos. Porque de nada serve sabermos muito se não conseguirmos olhar para dentro. 

E depois lembro-me da lista infindável de efeitos secundários do novo medicamento. Penso que já estou na fase final. Um quarto a cada dois dias. Nunca é bem um quarto, o comprimido é tão pequeno. Desfaz-se todo. Mesmo muito pouco dá vómitos. Sabe a fel. Talvez seja o novo medicamento que me faz sentir assim. Meia chorona e meia sensível. Permanentemente a questionar-me. E depois digo a mim mesma que sempre fui assim. Sempre tive pesadelos, mas nunca tive uma mão maior que me trouxesse de volta com tanta segurança.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Exames

(primeiro estranha-se, depois entranha-se)

 
Por aqui, terminou hoje a sessão de exames. Foram duas longas semanas de estudo intenso para todos os miúdos deste país, do ensino primário à universidade. Duas semanas em que não houve festas, nem saídas. Nem fins-de-semana de folga. Duas semanas em que não foram brincar para casa de amigos e as horas de lazer eram muito reduzidas. Televisão e consolas, nem vê-las. Foram duas semanas de revisões, resumos, exercícios. Na escola e em casa. Uma e outra vez. E, por estranho que pareça, as criancinhas sobreviveram todas.
 
Não foi fácil, admito. Andamos nisto há dois anos e nunca é. O ambiente que se vive em casa é tenso e os eles explodem ao mínimo problema. Acordamos com os gritos do Diogo, porque os nervos deixam-no sempre desaustinado logo pela manhã. E com a choraminguice birrenta do Vasco, a acusar cansaço.

Na Primária, os miúdos continuam a ter aulas durante a época de exames, embora a matéria já esteja toda dada. Normalmente, fazem os exames de manhã e as revisões à tarde. Na escola de Malempré também aproveitaram o bom tempo para se dedicarem à horta. Pessoalmente, acho que é um excelente exercício para descomprimir (embora dispensasse a família de caracóis que o Vasco trouxe para casa). Excepto à 3ª feira, quando têm piscina, fizeram exames todos os dias. Todos. Uma média de dois ou três exames por dia, nas três disciplinas leccionadas: Matemática, Francês ou Éveil (uma miscelânea entre História, Geografia e Ciências). Mais Moral e Natação, no caso do Vasco. A matéria do ano todo é subdividida por temas para facilitar: “Tratamento de Dados”, “Saber ler”, “Saber ouvir”, “Números e Operações”, “Conjugação”, “Ortografia”, etc. Na escola, reina a seriedade por estes dias. Mesmo se eles ainda são pequeninos.

A mochila, que durante todo o ano anda praticamente vazia pois os livros e o material ficam sempre na escola, passa a andar carregada com os dossiers para estudar em casa. Todos os dias quando chega, tem pelo menos mais uma hora e meia de estudo pela frente. E nem é preciso dizer nada. É engraçado ver que um miúdo de sete anos já tem autonomia e hábitos de estudo bem consolidados. É raro pedir ajuda para tirar dúvidas, porque esse trabalho é feito nas aulas. Em casa, pega no pacote de leite e nas bolachas e vai sentar-se no quintal ao sol a reler as folhas com os resumos que fizeram nessa tarde. Depois disso, ainda estuda o solfejo e violino. No fim, brinca do quintal ou sozinho no quarto, enquanto fazemos o jantar. Há tempo para tudo. Nada de muito complicado, traumatizante ou polémico, portanto.

Com o Diogo, as coisas já são mais a sério. Os exames no ensino secundário não são brincadeira nenhuma. Fazem-se a horas precisas, em locais gigantescos para comportarem aquele mar de gente nervosa do mesmo ano. E ainda há as orais, onde têm de se apresentar bem vestidos. Durante a sessão de exames, não há aulas. De manhã são feitas as avaliações, à tarde prepara-se o exame do dia seguinte. Em casa ou na escola, como os pais preferirem. Eu deixo-o sempre ficar mais quatro horas à tarde na escola. Fica no “Étude”, acompanhado por professores, a fazer revisões. Assim, quando chega a casa, basta reler os resumos que fez anteriormente e tirar as dúvidas que ainda subsistirem.

No final do dia, para descomprimir, dedica-se à sua nova paixão. O meu filho grande descobriu as maravilhas da electrónica, graças à prenda de anos que o meu amor lhe deu. Honestamente, acho estranho o rapaz tirar os olhos do estudo para se concentrar em circuitos fechados com o ferro de soldar na mão, mas admito que podia ser pior…

No meio de tudo isto, ainda houve tempo para os exames de Natação, Solfejo, trompete e violino. E para as aulas de equitação. Custou-me vê-los gradualmente mais rezingões e cansados, ao longo destas duas semanas. Mas não consigo deixar de pensar que estão a receber uma excelente preparação para a vida. Quer em termos de hábitos de estudo, quer na aprendizagem da gestão do stress. Saber controlar os nervos é essencial. Que o diga a malta da minha faculdade que fazia aqueles exames traumatizantes de Latim, aos Sábados de manhã, quando nem sequer conseguíamos dizer  “bom-dia”, quanto mais escrever…

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Mis alumnos

(onde se mostra que é possível entrar-se cansado e sair-se refeito,

como diria o Sérgio Godinho)


Já tinha dado aulas no ensino recorrente nocturno. Também já tinha dado aulas de iniciação a uma língua estrangeira. Portanto, sabia o que me esperava quando iniciei este ano lectivo as aulas de Espanhol I, com um grupo de 18 adultos. Enfim, 17 adultos e meio. Um ainda tem borbulhas na cara e vem com a mãe.

Sempre me senti grata pelas horas roubadas ao descanso e à família que consagravam a ouvir-me sem qualquer obrigação. Por isso, esforçava-me para que as aulas fossem eficazes, mas divertidas. Se tínhamos de dar gramática, compensava com um trecho de um filme ou uma canção no final. Se havia muitos exercícios aborrecidos a fazer, intercalava com notícias e curiosidades sobre o mundo hispânico que ia buscar à Net todas as semanas. Se o texto a analisar era de difícil compreensão, fazia concursos de rapidez a consultar o dicionário. Tive o cuidado de ir adaptando os conteúdos aos seus interesses pessoais e profissionais, de modo a que a aprendizagem da língua fosse também útil.

Houve poucas desistências ao longo do ano e eram todos assíduos. E trabalhadores incansáveis, bolas! Era raro sairmos mais cedo, porque achavam que havia sempre tempo para fazermos mais um exercício. Os progressos impressionantes que fizeram espelhavam este trabalho. O feedback que recebi ao longo do ano foi bastante positivo. E a boa disposição reinante era prova disso mesmo. Aliás, ainda as aulas não tinham acabado, já me andavam a perguntar se ia dar Espanhol II para o ano.

Mas acho que nada me tinha preparado para o que vivi ontem à noite. Depois de 8 penosas horas de trabalho, 2 intermináveis horas de caminho e um iogurte comido à pressa, fui a correr dar a minha última aula de Espanhol. Dia de exame oral e de avaliações finais. Tinha pedido para fazerem apresentações simples de 10 minutos, individuais ou em grupos de dois. O tema era completamente livre. Podiam utilizar os suportes que quisessem. No fim, teriam de responder a algumas perguntas.

Sentei-me no fundo da sala, com a minha grelha de avaliação e uma caneta. Era suposto ser apenas trabalho. Foi puro prazer. Passei 3 horas deliciada a ouvi-los dissertar sobre diferentes temas. Com tanto à-vontade! Receitas de pratos complicados que tinham finalmente conseguido fazer. Canções que ouviam há anos e que já eram capazes de traduzir. Relatos de viagens por Espanha onde tinham posto em prática o que tinham aprendido. Projectos ambiciosos de voluntariado na América do Sul que sonhavam fazer. Imitações perfeitas das minhas aulas, que me fizeram rir à gargalhada. E, por fim, uma encenação de uma conversa telefónica com um novo cliente espanhol. No meio de tudo isto, houve música, bolinhos... e licores. Esta foi, sem dúvida, a parte mais difícil porque eu não bebo álcool, mas não fui capaz de recusar. Ainda bem que agora já posso vir a pé para casa!

No final, deram-me uma prenda. Uma maçã. Simplesmente, uma maçã. Símbolo da sapiência e do respeito pelo professor, explicaram-me. Eu fiquei comovida, mas felizmente pude meter as culpas nos copos…

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Se calhar, não foi a melhor prenda

(eu juro que tentei ficar-me pela máquina de fazer bebidas gaseificadas)


Ontem à noite, desabámos de cansaço no sofá. Desde que mudámos de casa, há quase duas semanas, foi a primeira vez que nos sentámos calmamente os dois, sem miúdos tagarelas à nossa volta a exigir atenção. As coisas estão finalmente a compor-se. É bom parar um bocadinho para respirar. Para descansar. E dar tempo ao tempo para que cada objecto encontre, aos poucos, o seu lugar. Já percebi que uma casa é algo que demora a construir-se. É muito mais do que a soma de armários montados e de conteúdos de caixotes arrumados.

Por isso, ontem decidimos parar. Ligámos a televisão e percebemos que estamos em pleno Mundial. Nenhum de nós liga ao futebol e nem tínhamos dado pelo início das festividades (que o espectáculo de desportivo tem muito pouco…). Fomos fazendo zapping e acabámos por apanhar o início de um filme, cuja estreia nos escapou há uns anos atrás: We Need to Talk About Kevin. É verdade que é perturbador. Um murro no estômago. Mas, sinceramente, gostei. Gostámos. Sobretudo das interpretações, absolutamente brilhantes. E estávamos a falar sobre isso quando a mesma ideia nos passou, de repente, pela cabeça… a prenda de anos do Diogo foi um arco e flechas! E agora, pá?!

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Há 13 anos

(e literalmente uma vida atrás)


Há 13 anos, acabava de acordar de uma noite mal dormida. De uma primeira noite de vigília que – mal eu sabia – nunca mais teria fim. Acordei e olhei para o estranho que dormia a sono solto ao meu lado. Senti uma espécie de incredulidade. De religiosidade. Era tão perfeito. Meu. Horas depois, continuava a não conseguir acreditar que fosse mesmo verdade. Que ele estava finalmente ali. Que era mesmo meu, nascido da minha imaginação, do meu coração, do meu corpo. E um amor imenso. O mais surpreendente era o amor imenso que me apertava garganta e me impedia de respirar. O sentimento de responsabilidade solene. Sim, era um sentimento de solenidade que eu nunca tinha sentido antes. Como se tivesse sido investida por um qualquer poder transcendente de uma missão que me ultrapassava, para a qual tinha consciência de que nunca estaria devidamente preparada, sem direito a erro, cujo caminho não tinha retorno possível. Tantas dúvidas. Tantas incertezas. E um medo enorme de falhar. De o perder. Senti-me adulta pela primeira vez na vida. Responsável por outra existência que não a minha. Por outro futuro que não o meu. Unida para sempre por um amor maior a outra pessoa. Com dois corações. E, no entanto, tão sozinha.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Em mudanças!

(e com um exame de violino pelo meio...)



Esta semana, mudámos finalmente de casa! Sendo que chegámos à Bélgica apenas com o que cabia no meu boguinhas, há ano e meio atrás, pergunto-me como raio é que entretanto as nossas tralhas se multiplicaram exponencialmente… Perdi a conta às viagens que tivemos de fazer entre Malempré e Vielsalm na carrinha de mudanças que alugámos, no Jipe da minha “mãe” belga com o atrelado e no meu Twingo. Caixotes, caixas e caixinhas. Sacões, sacos e saquinhos. Móveis montados, desmontados e ainda por montar. E brinquedos. Toneladas de brinquedos.

Têm sido uns dias estafantes e ainda estamos a viver no meio do caos. À cata de meias limpas para calçar no dia seguinte. Com pacotes de lenços de papel a substituir o papel higiénico na casa de banho. Com uma única chávena de café que usamos à vez. Com duas toalhas de banho e uma escova de dentes. A rezar para que o bom tempo perdure, porque os casacos desapareceram para parte incerta. E saco com o calçado também ainda não deu sinal de vida.

Cada um tem as suas prioridades: o Vasco não descansou enquanto não pôs o vaso com a sua rosa no parapeito da janela do novo quarto; o Diogo procura desesperado os cabos dos seus mil e um aparelhos electrónicos; o meu amor não larga o portátil com medo de o ver desaparecer no meio da montanha instável de coisas que ainda estão por arrumar; D. Fuas tenta passar despercebido para poder experimentar todas as almofadas espalhadas pelo chão da casa. Eu... eu fiquei feliz por encontrar o saco das echarpes, para disfarçar o facto de andar com a mesma roupa há quase uma semana.

Não temos net, mas temos luz. Ainda não vieram encher a cisterna de gaz para a água quente, mas milagrosamente temos televisão por cabo. Não temos os tachos à mão, mas temos uma churrasqueira mesmo à porta de casa. Aos poucos isto vai. Ainda não sei muito bem como, mas isto há-de ir tudo ao sítio um dia destes...

 
[ Entretanto, o Vasco fez o seu primeiro exame de violino na Academia. Como era o mais pequenino, foi logo o primeiro. Perguntaram-lhe a idade. Disse que tinha 7 anos. 7 anos e 3/4, para ser mais exacto. Que estava quase a fazer 8. Em Novembro. No final de Novembro. Já faltava pouco, portanto. Depois, perguntaram-lhe se estava nervoso. E ele aproveitou para dizer que tinha mudado de casa, que tinha ido viver para Vielsalm, numa casa muito grande, com jardim, que não tinha conseguido estudar porque andava a viver no meio de caixotes há semanas, que só tinha aquele par de ténis, que os CD’s para poder tocar acompanhado ainda não tinham aparecido, os casacos também não, mas que eu tinha revirado a casa para encontrar o corta-unhas para ele ter umas mãos apresentáveis… enfim, acho que as desculpas demoraram mais do que o exame propriamente dito. Teve 80% e foi muito aplaudido. Desconfio que foi mais pela eloquência do que pela música… ]

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Uma prenda atrasada no dia da Criança

(com um beijinho muito especial para a filha da minha baleia preferida)


Escrevi esta história para o meu filho Diogo quando ele tinha 3 anos. Há uma década atrás, portanto. Não sei bem porquê, tenho-lhe um carinho muito especial. Deve ter a ver com o facto de ter sido a primeira coisa que escrevi, depois de ter despachado a tese de mestrado e de ter jurado que nunca mais escreveria uma única linha na vida. Há séculos que não lhe pegava, acho mesmo que nunca a li ao Vasco. Descobri-a no fundo de um caixote, quando estava a arrumar as tralhas para mudarmos de casa este fim-de-semana. E aqui fica, para os vossos filhos também. Ou para a criança que habita em vós. Feliz dia da Criança atrasado!

[ Por ironia do destino, na Bélgica, ontem não foi dia da Criança, mas sim do pai. Um beijinho muito especial ao melhor pai do (meu) mundo. Um pai que continua a defender a cria, apesar de ela ter vindo viver para o Pólo Norte. ]

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Ursoleia

Esta é a história de Ursoleia, um animal único no Pólo Norte. Um animal único, ao que se sabe, no mundo inteiro. O seu problema era exactamente esse – ser um exemplar único da sua espécie. Nem sequer a sua própria família era igual a ela, pois os seus pais eram dois animais de espécies muito diferentes. Ursoleia nasceu de um primeiro olhar trocado entre um urso polar e uma baleia.

Certo dia, estava a baleia a dar o seu passeio matinal pelas águas geladas do Pólo Norte quando, feliz da vida, lançou um enorme repuxo de água, suspirando de contentamento:
– Hum!| A água hoje está mesmo fresquinha...

Quem não achou graça nenhuma à brincadeira foi o urso, que estava debruçado na ponta do icebergue à espera de ver saltar um peixe gorducho que lhe servisse de pequeno-almoço. Quando se viu repentinamente encharcado por aquele gigantesco repuxo, virou-se muito depressa para ralhar com a baleia:
– Ora! Com franqueza, D. Baleia! Tem de ver por onde anda! Não pode estar para aí a molhar todos os animais com quem se cruza...

Surpreendida, a baleia parou para lhe pedir desculpa. Mas, quando os olhos zangados do urso se encontraram com os olhos doces da baleia, o amor aconteceu. Olharam-se durante muito tempo, sem conseguirem dizer uma palavra. O olhar do urso perdido no da baleia. O olhar da baleia encontrado no do urso. Assim nasceu a bela Ursoleia.

Todos os habitantes do Pólo Norte se apressaram a vir cumprimentar os pais e a conhecer a cria recém-nascida. Nunca se tinha ouvido por ali uma história daquelas e a vizinhança andava toda num alvoroço. Antigas inimizades foram mesmo esquecidas, só para poderem comentar o nascimento de Ursoleia.
 
– Mas que bebé tão fofinho! Tem um pêlo todo branco como o do pai, não acha D. Foca? – perguntou a raposa branca com um ar embevecido.
– Ah... Sim. Mas olhe que ela parece ser muito graciosa como a baleia – respondeu a foca um bocadinho a medo, não fosse a raposa esquecer de repente o motivo da visita e decidir que lhe estava mesmo a apetecer um lanchezinho.
– Tem razão, sim senhora, D. Foca – assentiu a morsa. – É como se fosse um urso polar com corpo de baleia. Mas é muito bonita, não é?
– Não, não! – intrometeu-se logo o pinguim empertigado. – Desculpe lá, D. Morsa, mas eu não concordo consigo. Vê-se perfeitamente que é uma baleia com um corpo de urso. Até tem umas barbatanas pequeninas...
– Então e o que me diz daquele adorável focinho de urso? E as orelhitas de urso? Já para não falar do manto de pêlo branco que tanto encantou a D. Raposa... – comentou por sua vez a orca, que gostava de semear a discórdia.
– Eu cá gosto mesmo é do nome: Ursoleia! Ursoleia! – cantou a otária, encerrando de vez a questão das parecenças porque, quanto ao nome, todos estavam de acordo – era mesmo bonito!

Os pais também andavam encantados com a sua cria metade baleia, metade urso, que cada dia lhes parecia mais encantadora.
 
– Não lambuzes a rapariga toda! Mas para que é que andas sempre a lamber-lhe o pêlo? Que exagero! Ainda acaba por ficar toda pegajosa e depois tenho de lhe dar outra vez banho! – ralhou a baleia, enquanto dava leves empurrões ao urso com a barbatana.
– Pára quieta! Estás-me a fazer cócegas! – riu-se o urso, afastando-a com a pata – Não vês que é para manter o pêlo limpo e brilhante? Não te metas! Tu cuidas da tua metade, porque eu de baleias não percebo nada, que eu cá cuido da minha, está bem?

E assim foi. Um e outro ensinaram-lhe tudo o que sabiam sobre a sua própria espécie. Ursoleia cedo aprendeu a sentir-se tão à vontade no meio das baleias no mar alto, como em terra com os ursos. A mãe ensinou Ursoleia a ser uma verdadeira baleia, a passar muito tempo debaixo de água para apanhar os deliciosos camarões que as baleias tanto apreciam e a comunicar com os restantes membros da sua numerosa família. O pai dedicou-se a ensinar Ursoleia a manter o seu pêlo sempre limpinho para se confundir com a neve branca e poder caçar melhor, a lançar rugidos ferozes para afugentar os inimigos, a abrigar-se do frio glaciar escavando buracos atrás dos montes de neve.

Ursoleia era um animal tão especial e de tão rara beleza, que tinha conseguido conquistar todos os outros habitantes que viviam naquela região do Pólo Norte. Foi rapidamente adoptada pelas diferentes famílias, sendo sempre muito bem recebida quando decidia fazer-lhes uma visita. Os filhotes de foca, otária, orca, morsa, pinguim e raposa depressa se tornaram companheiros inseparáveis de brincadeira. Agora, em vez de os seus pais serem caçadores e presas com sempre tinham sido, conviviam amigavelmente. Tão amigavelmente quanto possível, tendo em conta as antigas rivalidades.

Ursoleia cresceu e fez-se um bonito animal. Era muito engraçada e divertida, conseguindo arrancar sempre uma gargalhada por onde passava. A sua constante boa disposição tornou-se lendária e, aos poucos, os habitantes do Pólo Norte habituaram-se às suas partidas. O pinguim já não se assustava quando olhava para as suas patas e, em vez do ovo reluzente que andava a chocar, via uma bola de neve. A raposa branca tinha aprendido a desatar os nós do cordel com conchas que Ursoleia lhe atava à cauda quando a apanhava distraída. A morsa deixou de se irritar quando a via aparecer a bambolear-se muito vagarosa, com dois finos blocos de gelo presos na boca para a imitar. Passados tantos anos, a convivência entre a vizinhança mantinha-se e passavam a vida a comentar as últimas traquinices de Ursoleia.
 
– Ó Sr. Pinguim, quer ouvir o que aquela malandra se lembrou de fazer à D. Foca? – perguntou uma tarde a orca a rir.
– Então não hei-de querer saber, D. Orca! Eu gosto sempre muito de ouvir essas histórias... Até para saber o que a Ursoleia anda a tramar e não ser apanhado desprevenido!
– Bem pensado, bem pensado, Sr. Pinguim! O que eu tenho a certeza é que os pais da Ursoleia não vão achar muita piada... – deixou escapar a orca baixinho, com a barbatana a tapar a boca.
– Acha mesmo que não?! Coitadinha! – suspirou o pinguim, abanando a cabeça entristecido.
– Pois claro que não, que disparate o seu! Se fosse a sua filha o senhor provavelmente também não gostava, pois não? – recriminou a orca. – Afinal nós podemos rir porque somos tios, mas os pais não. Os pais têm de tentar educá-la. Olhe, até o senhor acha muito menos piada quando ela lhe prega partidas a si...
– Isso é diferente! Tenha paciência, D. Orca. Lembra-se da última que a velhaca me pregou, lembra-se? – atacou o pinguim furioso. – Queria ver se fosse consigo! Agora já me consigo ir rindo quando penso no assunto, mas na altura fiquei muito zangado! Pintar a minha filha mais nova toda de branco e convencê-la de que era uma Pinguleia! Sinceramente! Demorámos semanas para conseguir tirar a tinta e aquela ideia estapafúrdia da cabeça da miúda!
– Ah, foi?! – atacou novamente a orca. – Mas parece que se esqueceu, já a estava a defender! Está a ver como nem sempre tem assim tanta piada?! Quer dizer, essa última que se passou consigo foi muito bem pensada, disso não há dúvida nenhuma!
– Sabe que mais? Vou-me embora! Afinal veio contar a história ou veio implicar comigo?! Vou-me embora! – repetiu o pinguim exaltado, voltando as costas à orca. – Vossemecê, vá mas é pentear macacos para África e deixe-me em paz!

Os problemas mais sérios começaram quando Ursoleia quis arranjar um namorado e finalmente se apercebeu de que era um animal único no Pólo Norte. Os seus amigos já tinham todos encontrado o par ideal: a filha do pinguim estava casada com o primo a quem estava prometida desde que os dois eram ovos, a filha da raposa andava apaixonadíssima por um raposo tão branco como ela, o filho da morsa tinha-se encantado pela gordura da morsa do icebergue vizinho, o filho da foca, depois de uma paixão assolapada pela filha da otária que só tinha olhos para o otário do colega, tinha finalmente conhecido uma foca que, como tinha crescido num jardim zoológico, o tinha conquistado com as suas acrobacias.

E Ursoleia? Fosse porque a sua alma gémea ainda não tinha aparecido por aqueles lados, fosse porque o Cupido não tinha voltado a passar por aquelas frias paragens, a verdade é que Ursoleia ainda nunca se tinha apaixonado. Como tinha crescido a ouvir falar daquele amor à primeira vista entre os seus pais, sonhava com o dia em que isso também lhe aconteceria.

As ideias malucas e as partidas de que Ursoleia se lembrava eram tantas que, quando começou a dizer que estava a ficar farta de estar sozinha no mundo, ninguém lhe ligou nenhuma. Os animais riram-se muito no dia em que ela resolveu reuni-los para lhes comunicar que ia percorrer o mundo de lés a lés até encontrar a sua cara-metade.

– Eu sei que ele anda por aí à minha procura... – suspirou Ursoleia. – Tenho a certeza absoluta de que o meu par ideal está algures a passear por estes oceanos. Deve sentir-se tão sozinho como eu, porque nunca viu um animal igual a ele. Porque nunca encontrou um animal capaz de lhe aquecer o coração nas noites escuras e geladas, como todos vocês têm.

Ao ouvir isto, os habitantes do Pólo Norte sentiram que um vento cortante se tinha de repente levantado. Sem sequer se darem conta, chegaram-se um bocadinho mais para junto do seu par, à procura de calor e conforto. Perceberam que apesar de ter uns pais que a adoravam, uma enorme família de ursos polares e de baleias de todas as espécies e uma conflituosa vizinhança que a tinha igualmente adoptado, Ursoleia sentia falta de um companheiro. De alguém igual a ela, se é que tal animal existia mesmo.

A baleia recordou-se daquele primeiro olhar que tinha trocado com o urso, há tantos anos atrás. E o urso, que de imediato lhe adivinhou o pensamento, sussurrou-lhe baixinho:
– Está descansada. Havemos de encontrar o filho de outro casal diferente que se tenha apaixonado à primeira vista. Nem que tenhamos de ir a nado até ao Pólo Sul à procura.
– Sim, quem nos garante que não há mais nenhuma Ursoleia a pregar partidas por esse mundo fora? – respondeu-lhe a otária que estava ali perto e tinha ouvido a conversa.

Um murmúrio de aprovação percorreu os habitantes do Pólo Norte que se tinham reunido para ver partir Ursoleia em busca do seu estranho amor. Todos compreenderam que estava na altura de a deixarem crescer definitivamente. O tempo das partidas e das brincadeiras parecia ter acabado. Ursoleia tinha-se transformado numa jovem que queria encontrar alguém tão especial como ela.

– Não se preocupem comigo. Eu sei que ele anda por aí, só tenho de procurar. Se nunca tentar, não vou saber se ele existe ou não. Prometo-vos que, se daqui por um ano não tiver encontrado outro animal como eu, se não me tiver apaixonado por alguém, volto feliz para junto da minha família. Da minha família de ursos, baleias, morsas, focas, pinguins, orcas, otárias e raposas! Adeus, aproveitem bem! Tenho a certeza que este vai ser um ano muito descansado para todos vocês aqui no Pólo Norte, sem as minhas partidas para dar brilho aos vossos dias todos brancos, frios e iguais! – despediu-se Ursoleia a rir, abanando as suas barbatanas de baleia cobertas de pêlo de urso.
 
Para Ursoleia aquele ano passou depressa. Apesar de ter muitas saudades de casa, adorou conhecer novas paragens. Parecia-lhe que cada sítio por onde passava era ainda mais bonito do que o anterior. Uns locais mais frios, outros mais quentes. Uns mais brancos como a sua terra natal, outros de cores tão misteriosas que Ursoleia nem sequer sabia o nome. Brincalhona e divertida como era, conseguiu fazer inúmeros amigos e era raro o dia em que não se metia com um desconhecido. A todos relatava a sua história e perguntava se já tinham visto algum animal igual a ela. E todos lhe diziam a mesma coisa, mas Ursoleia estava decidida a percorrer o mundo de uma ponta à outra antes de desistir.

– Uma Ursoleia como a menina? Aqui na selva? Eu nunca vi! – rugiu o leão.
– Não, não vi. – assegurou-lhe o crocodilo dengoso. – Tenho a certeza absoluta, porque se tivesse visto outro animal assim tão bonito, não me esqueceria...
– De facto, agora que me fala nisso, é muito estranho! – comentou a gaivota que estava a descansar em cima de um farol. – Eu já atravessei tantos mares, tantas terras, tantos oceanos, e nunca encontrei um único bicho parecido consigo.
– Olhe, aqui pelas ruas do porto onde costumo vir à procura de restos de peixe, nunca vi. Mas também, não se pode dizer que seja um local muito frequentado por animais de grande porte, não é? – perguntou o gato vadio que andava a saltitar de barco em barco à procura de comida.

Quando se começou a aproximar o final do ano, Ursoleia decidiu que era tempo de regressar a casa. Enviou um postal a dizer que ia voltar em breve, que ia triste porque ainda não tinha encontrado o seu amor, mas a verdade é que tinha esperança de se cruzar com ele no caminho de regresso para o Pólo Norte. Ainda tinha muito oceano para percorrer antes voltar para junto da sua família.

– Como é que eles estarão? – pensava para com os seus botões. – Será que estão muito aborrecidos porque não têm ninguém para lhes pregar partidas e os fazer rir um bocado? Só de pensar nas coisas novas que tenho para lhes contar... Nem vão acreditar na quantidade de sítios e de animais estranhos que eu vi!

De facto, aquele ano tinha sido tudo menos calmo lá para os lados do Pólo Norte. Após a partida de Ursoleia, os habitantes tinham decidido que a iam ajudar na sua busca. Ela não lhes tinha pedido nada, é certo, mas era o mínimo que podiam fazer para a compensar por tantos anos de boa-disposição e alegria generosamente espalhadas à sua volta. Cada animal tinha tentado encontrar um familiar, um amigo ou um mero conhecido nos quatro cantos do mundo, a quem pudesse escrever a perguntar se já tinha ouvido falar de algum animal parecido, mesmo que remotamente, com Ursoleia. Para não haver quaisquer dúvidas, enviavam uma fotografia recente dela. Assim, durante todo aquele ano, várias fotografias de Ursoleia viajaram por esse mundo fora à procura de uma possível cara-metade.

Quando menos se esperava, já quase no final daquele ano, apareceu um estranho animal no Pólo Norte com uma fotografia de Ursoleia já muito gasta debaixo da pata. Tinha percorrido meio mundo à procura do animal de quem tinha ouvido falar pela prima do tubarão, que era vizinha da raia que tinha andado na escola com a cunhada do golfinho, cujo padrinho conhecia a empregada que a conflituosa da orca tinha despedido há três meses e que tinha imigrado para o Pólo Sul à procura de trabalho.

Era um animal único no Pólo Sul. Um animal único, ao que se sabe, no mundo inteiro. Era um animal nascido de um primeiro olhar trocado entre uma baleia macho e uma ursa polar que se tinham perdido de amores um pelo outro, para estranheza de todos os habitantes do Pólo Sul. Era nem mais, nem menos do que um Balurso!

– Quero lá saber que a Ursoleia já venha a caminho! Quero lá saber que o ano já esteja mesmo a acabar! Eu não posso esperar! Vou atrás dela! – exclamou muito aflito Balurso, quando lhe falaram do postal que Ursoleia tinha mandado. – Imaginem que ela dá de caras com outro Balurso qualquer ao virar de um icebergue? Não posso arriscar! Nem pensem! Vou-me já embora e encontro-me com ela pelo caminho.

Os habitantes do Pólo Norte ficaram muito preocupados por deixar partir aquele seu vizinho do Pólo Sul tão parecido com Ursoleia, mas não conseguiram detê-lo. Na sua correria desenfreada para encontrar a cara-metade, levava tudo à frente. E foi assim que chocou brutalmente com outro animal que nadava calmamente em sentido contrário, exactamente ao virar uma esquina de um icebergue.

– Então?! Não me digas que também reparaste que o Pólo Norte está a arder? – perguntou-lhe num tom brincalhão Ursoleia, quando conseguiu vir à tona da água depois do embate.
– A sério?! – exclamou Balurso muito assustado, virando-se aflito à espera de ver a casa da sua futura amada em chamas. – Não estou a ver nada!
– Ai, não?! Deve ser porque quem tem o fogo no rabo és tu! A correr dessa maneira, a chocar com tudo quanto é bicho marinho, mas onde é que isso já se viu?! Pareces maluco! – ralhou Ursoleia ainda um bocadinho afogueada.
– Desculpa! – apressou-se Balurso a dizer, voltando-se para ela ao perceber que estava a ser gozado e que, evidentemente, não havia fogo nenhum no horizonte.

E naquele instante, naquele preciso instante em que o olhar dos dois se cruzou, cada um deles viu no outro a metade que lhe faltava. O reconhecimento foi imediato. Finalmente tinham à sua frente um animal que não era igual, que não era da sua espécie – porque cada um deles era único – mas que se completava na perfeição. O que um tinha de baleia, o outro tinha de urso polar. Apaixonaram-se perdida e irremediavelmente. Balurso percebeu aliviado que tinha conseguido encontrá-la tempo. Ursoleia sentiu que a sua busca tinha finalmente terminado.