quinta-feira, 25 de setembro de 2014

As palavras dos outros

(porque tropeçamos naquilo que gostaríamos de dizer)


Por vezes, as palavras dos outros aparecem no momento certo. E fazem todo o sentido. Traduzem os nossos pensamentos, os nossos sentimentos, as nossas crenças mais profundas. Espelham o caminho que escolhemos percorrer.
Quando temos uma bússola e um porto seguro, quando temos a fé e a serenidade, quando temos as pessoas certas do lado esquerdo do peito, quando temos um amor para a vida inteira, quando temos a mão dada incondicionalmente à pessoa que somos, quando temos uma família que é o nosso equilíbrio, quando temos os amigos certos, quando temos a vontade, a energia e o optimismo, quando sabemos a importância de perdoar e agradecer, não precisamos mesmo de mais nada.
Se em cada dia renovarmos os mesmos desejos - saúde, amor, fé, trabalho, força, coragem, serenidade, humildade, gratidão e capacidade de perdoar (a nós e aos outros) - não há nada, absolutamente nada, que nos roube aquilo que na vida é  mais importante «ter»: paz.

 
 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sabemos que encontrámos o homem perfeito quando…

(sempre que um diz “mata”, o outro diz “esfola”)

 

Ele: Hoje, apanhei o D. Fuas no sofá.
Eu: Assim que começa a ficar frio, tenta sempre a sorte...
Ele: Pois é, coitado.
Eu: E ralhaste-lhe?
Ele: Não, tapei-o com uma mantinha.
Eu: Hein?! Havia de ser jeitoso se concordasses em ter um cachorro…
Ele: Outra vez essa história do cão? Quando é que tiras essa ideia estapafúrdia da cabeça?
Eu: Queria tanto ter um cachorrinho…
Ele: Mas nós já temos o D. Fuas! Acho mal termos outro cão. Mais trabalho, mais despesa... É uma prisão muito grande. Nunca temos onde o deixar, quando queremos ir a algum lado.
Eu: Eu sei, tens razão.
Ele: É um compromisso que se assume para os próximos 15 ou 20 anos, já pensaste?
Eu: Pois é. Pronto, esquece.
Ele: Eu acho que devíamos era ter um cavalo.
Eu: Outra vez essa história do cavalo? Quando é que tiras essa ideia estapafúrdia da cabeça?
Ele: Devíamos começar a pensar seriamente em adoptar um cavalo…
Eu: Podia dar-te exactamente os mesmo argumentos que tu me dás para não termos um cachorro. Exactamente os mesmos!
Ele: Eu sei. A diferença é que tu também queres um cavalo…




[ Não é que ele tenha mais jeito do que eu para fotografar… mas, na primeira, íamos a trote e, na segunda, a passo numa subida íngreme. ]

sábado, 20 de setembro de 2014

Passeios de fim-de-semana – Bouillon, Bélgica

(onde se mostra que vale a pena conquistar um adolescente arisco)


Não é fácil arranjar programas de fim-de-semana que agradem a todos. Programas low-cost, bem entendido.

Pronto, eu reformulo… não é fácil arranjar programas de fim-de-semana low-cost que agradem ao adolescente cá da casa. Primeiro, porque os nossos programas são uma seca. Segundo, porque é uma seca percorrer grandes distâncias de automóvel. Terceiro, porque é uma seca ter de anular os seus próprios planos, muitíssimo mais interessantes. Quarto, porque nós somos uma seca e o envergonhamos frequentemente em público. Quinto, porque o Vasco é uma seca e não se cala um minuto. Sexto, porque tem de estudar. Este último argumento só é utilizado em casos de extrema necessidade, dado ser passível de prova cabal. E toda a gente sabe que uma tarde de estudo intenso é uma seca.

O grande desafio é conseguir arrancá-lo de casa sem rosnar. Morder, o Diogo não morde. Mas rosna. Ou seja, nunca se recusa a vir passear connosco, mas protesta imenso e faz questão de mostrar que vai contrariado. Cara fechada, braços cruzados, pés de chumbo. Fones enterrados nas orelhas e respostas monossilábicas. E isso irrita-nos de sobremaneira, porque ele acaba sempre por gostar dos passeios que fazemos. Invariavelmente, terminamos o dia com um abraço efusivo e um agradecimento sentido. Parece um bocadinho esquizofrénico, mas já percebemos que não há nada a fazer. Adolescência oblige.

Embora eu esteja plenamente consciente desta particularidade adolescentezóide, custa-me sempre um bocadinho esgrimir argumentos e tentar convencê-lo. Portanto, esforço-me por desencantar programas que o façam sair de casa já de sorriso estampado na carantonha borbulhosa. É muito mais agradável para todos, porque quando o Diogo está entusiasmado é um companheiro de aventuras divertidíssimo. Embora seja absolutamente esgotante para nós… Quando gosta de uma coisa, é tudo maravilhoso. Até a merda de cão que pisa. E não se cansa de o repetir até à exaustão para quem o quiser ouvir. E mesmo para quem não quiser. Ri-se a bandeiras despregadas. Dá abraços de urso. Tem uma fome de leão. Anda a uma velocidade louca. Fala sem parar do que vê, do que quer ver, do que ainda não viu, do que se calhar não vai ter tempo para ver. É extenuante, mas delicioso. Um adolescente feliz é como uma aberta de sol num dia de tempestade. Um arco-íris perfeito, muito bem desenhado de uma ponta à outra.

E, no fim-de-semana passado, atingimos o nosso objectivo com um passeio a Bouillon. O meu amor conseguiu misturar os ingredientes todos necessários com sabedoria de alquimista: um local não muito longe de nós, um castelo medieval no cimo das nuvens, uma personagem histórica envolta em mistério, um espectáculo de aves de rapina num cenário feérico. E um jantar no chinês para finalizar, claro. Diz-se que foi desta terra pequenina que partiu Godefroy de Bouillon, um dos líderes da Primeira Cruzada, que recusou o título de primeiro soberano do Reino Latino de Jerusalém para dedicar a sua vida a proteger o Santo Sepulcro. Tantos séculos depois, o castelo está impecavelmente conservado: muralhas, caves, masmorras, torreões, passagens secretas, túneis, câmaras e antecâmaras. Passámos horas a calcorrear o castelo, a ver a paisagem de cortar a respiração, a subir e a descer escadas. Principalmente, a vê-los correr por ali felizes. Porque esta é uma das características mais engraçadas da adolescência: perante o cenário perfeito, aquela cabeça mergulha de imediato em histórias de cavaleiros e desata a brincar como um miúdo.

Acho que as imagens falam por si…

























quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Parentalidade defensiva

(já não sei se ria, se chore)


 
Eis o resumo do dia de ontem:

Levei o Vasco à escola às 8h30. Deixei as tartarugas dele a apanhar banhos de sol no quintal. Passeei o cão.

Como era quarta-feira, fui buscar o Vasco às 12h. Vinha com a mochila (mais) rasgada. Fez mais um amigo.

Fui com o Diogo à psicóloga às 13h. Dissemos tudo o que tínhamos a dizer um ao outro e saímos de lá a rir. Temos um exercício para fazer, mas já não me lembro bem qual é.

Segui o trajecto do sol e fui pôr o aquário das tartarugas no parapeito da janela.

Fomos ver um espectáculo de piano a quatro mãos às 15h, que substituía a aula de solfejo do Vasco. Fiquei fascinada a olhar para os dedos da minha coisa pequena, que se mexiam de forma involuntária para seguir o ritmo. O grande aconchegou-se a mim.

Deixei o Diogo no solfejo às 16h30 e trouxe o Vasco para casa. Mas antes fui comprar-lhe um casaco de motoqueiro.

Fui buscar o Diogo às 17h20 e seguimos a voar para o dentista. O Diogo ligou a dizer que íamos chegar atrasados, mas eu descobri um novo atalho e chegámos a horas.

Fomos os três ao supermercado, à hora do fecho. O Vasco comeu gomas que apanhou no chão. O Diogo só bebe leite de soja, desde que vimos um documentário sobre a indústria alimentar nos EUA (mas se eu deixasse, continuaria a comer hambúrgueres).

Chegámos a tempo de ir à mediateca itinerante encomendar o “Billy Elliot”. O Diogo trouxe um CD dos Dire Straits e o Vasco um jogo do Star Wars para a Nintendo DS.

Fiz feijoada para o jantar. Houve uma enorme discussão à mesa por causa da divisão não equitativa da farinheira. Procurei o resto da tarte de amoras que tinha feito no dia anterior, mas não a encontrei. São umas marabuntas. Comemos uvas.

Lavei a loiça e arrumei a cozinha, enquanto o meu amor acabava o ditado do Vasco.

Preparei as coisas para o dia seguinte. O Vasco perdeu mais um casaco. E esta semana as bolachas dos lanches sumiram-se mais depressa.

Supervisionei discretamente um banho. Enchi o Vasco de beijos e deitei-o.

Desabei no sofá. O Diogo alapou-se a mim. Mandei-o para a cama. Ele disse que a psicóloga nos tinha mandado comunicar mais. Desatámos a rir.

O Diogo foi finalmente tomar banho, mas fez tanto barulho que o Vasco não conseguia adormecer.

Subi para ralhar com eles. As coisas acalmaram. Desabei no sofá.

O meu amor disse “Finalmente, sós”.

Os zunzuns lá em cima recomeçaram. O meu amor subiu para ralhar com eles, mas imitou os meus passos zangados nas escadas e isso fê-los rir.

Ligámos a televisão, mas preferimos ficar a falar. Temos sempre tanto que falar e tão pouco tempo. Comi caramelos. Vimos uma série, mas adormecemos os dois a meio.

Levantámo-nos para ir passear o cão. O meu amor disse: “Fica, estás com febre. O médico disse que tinhas de ficar de repouso.” Demos uma gargalhada, o dia foi tudo menos repousante. Um dia igual a tantos, tantos outros.

Aproveitei para ler os e-mails na tablet. “Os meninos têm pediatra? Com que frequência têm consultas? Reparaste que o Vasco não cresceu este ano? Vê-se nas fotografias.” Não sei se ria, se chore.

O meu amor riu-se, quando chegou. Eu não. Mas também já não choro. Fui dormir, que é sempre a melhor solução para todos os males.

 

[ O crescimento do Vasco abrandou há dois anos. Mas teve uma anemia pelo meio. Não preciso do excelente método científico da fotografia para ver isso. Nem de um pediatra. Muito menos de uma fita métrica. Bastam-me os meus olhos de mãe. Aqueles que me fizeram marcar uma consulta num endocrinologista pediátrico há meses atrás. Por puro descargo de consciência. A coisa pequena é a minha cópia conforme. E eu tenho 1.52m. Não há milagres. Só acusações. Infundadas, pois claro. Porque eu tornei-me excelente no exercício quotidiano da parentalidade defensiva. ]

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Cabeleireiro-vidente

(e as suas outras mil facetas, todas elas cruelmente sinceras)


 
Entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.

É preciso que se diga que detesto gastar dinheiro em futilidades, por isso, não sou uma cliente fiel. Nos primeiros tempos na Bélgica, nem sequer havia verba para cortes de cabelos. Mas, com dois rapazes em casa, tive mesmo de arranjar uma solução. Íamos todos a Liège cortar o cabelo numa escola de cabeleireiros, a custo zero. Foi graças a essa escola que o meu amor arranjou coragem para me convidar para sair, pelo que estou imensamente grata àquelas miúdas tagarelas. O convite acabou por se transformar num jantar lá em casa com os miúdos. Romantismo zero, mas o cabelo estava impecavelmente cortado e com madeixas.

Entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.

Desde que nos mudámos, ainda ninguém cortou o cabelo. Felizmente os miúdos deixaram de precisar. Agora, é a primeira coisa que fazem, quando chegam a Portugal, para ficarem apresentáveis e sem ar de campónios parolos que vivem com uma desleixada. E eu parei de cortar o cabelo, desde que o meu amor se apaixonou pelas minhas longas madeixas. Entretanto, deixei de ter madeixas, porque deixei de cortar o cabelo. A escola de cabeleireiros exige cobaias que dêem livre-trânsito à imaginação das alunas. Não se pode chegar ali e pedir só para cortar as pontas, que as miúdas tagarelas entram em desespero. Portanto, acabou-se o cabeleireiro gratuito e tive de encontrar outra solução.

Entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.

Mas, antes, conheci a Glória. A tchía Glória para os minínus. Que além de nos cortar o cabeuo em tempo recorde, servia um cafezínhu e matava a saudadji da língua-mãe. Vá… da língua-irmã, no caso dela. Enquanto o Vasquinhiu estava na aula de solfejo em Barvaux, ela cortava o cabelo ao Djiôgo. Depois, invertíamos. Pelo meio, ainda havia um tempinhu para dar um jeicthinhu nas minhas pontas. Eu gostava muito da Glória, que me tratava por quirida e ainda me fazia um díscontchinhu às escondidas da patroa, porque éramos compatríôtas. Uma espécie de pátria unida pelo Atlântico, que ficou para trás quando os rapazes deixaram de ter aulas em Barvaux.

Entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.

A última vez que cortei o cabelo foi em Malempré, há muitos meses atrás. A minha vizinha cabeleireira aproveitava as folgas para desenrascar o mulherio e a miudagem lá da aldeia. O corte era quase sempre o mesmo, o que fazia com que o Diogo fugisse dela como o diabo da cruz. O Vasco ainda tentava convencê-la a fazer-lhe cristas e outras modernices, mas saía de lá igual aos outros rapazes todos de Malempré. Eu gostava da Leticia, que me recebia de cabelo ainda molhado, depois de deixarmos os miúdos na escola, e me cortava as pontas por 10 euros. E, no fim, nem sequer me chateava cá com brushings e coisas do estilo. Mas Malempré agora fica fora de mão.

Por isso, entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm. Apenas porque passei à porta e estava vazio. E o meu amor não estava comigo para zelar pelo comprimento do meu cabelo. Fiquei imenso tempo à espera que aparecesse alguém. Ainda pensei vir-me embora, quando me pus a olhar em volta para passar o tempo. Aquele salão era um bocado estranho. Não tinha aquele tipo de sacadores-capacete, nem expositores, nem posters nas paredes. Tinha dois lavatórios e três cadeiras em frente a um espelho. Um sofá com uma mesinha sem revistas nenhumas. O balcão à entrada estava vazio. Nem sombra de multibanco. Estava a fazer contas por alto para ver quanto dinheiro teria na carteira, quando finalmente apareceu um homem. Um homem com ar de trolha. Ténis velhos, calças de ganga rotas, pólo desbotado a tapar a barriga de cerveja… e meia dúzia de cabelos grisalhos no cimo da cabeça.


Eu: Bom-dia. Queria cortar o cabelo…
Trolha: Pois, só lhe posso fazer mesmo isso.
Eu: Não faz mal, eu só quero cortar o cabelo. Nada de muito complicado.
Cabeleireiro: Espero bem, no estado em que tem o cabelo não lhe posso fazer mais nada. De qualquer modo, nós aqui não fazemos permanentes nem nada dessas coisas que estragam o cabelo em nome da beleza. Salvo seja... Sente-se lá aqui.
Eu: Tenho perdido imenso cabelo. Muito, mesmo. Por isso, pensei que era melhor cortar um bom bocado.
Cabeleireiro: Hum, hum…
Eu: O que lhe parece?
Vidente: Que o pior já passou.
Eu: Como?
Vidente: Não se preocupe, o pior já passou. Isso foi um choque emocional que você sofreu há uns… uns… eu diria, uns dois ou três meses atrás. Caiu muito, mas já está a passar.
Eu: Ah, bom…
Vidente: Quer dizer, não ajudou muito estar com um problema de saúde. Isso deixa sempre uma pessoa mais fragilizada. Nesses casos, não há muito que se possa fazer. É esperar que passe.
Eu: E não ajuda comprar aqueles produtos anti-queda na farmácia?
Farmacêutico: Normalmente, não. No seu caso específico, como há um problema de saúde subjacente, pode comprar um complexo vitamínico. Vai ajudá-la.
Eu: Desculpe lá… mas como é que sabe isso tudo, só de mexer no meu cabelo?!
Vidente: O cabelo é a parte morta do nosso corpo. O seu cabelo mostra-me o seu passado, é simples.
Eu: Dito assim, parece um bocadinho estranho…
Vidente: Não, nem por isso. É só uma questão de se saber analisar o que o cabelo diz.
Eu: É que nunca ninguém me tinha dito isso.
Director de Recursos Humanos: Cada um nasce para o que nasce. Ser cabeleireiro é também saber analisar o cabelo que temos entre mãos. Você faz o quê?
Eu: Muitas coisas. Sou tradutora.
Director de Recursos Humanos: Devia era ir trabalhar para o Luxemburgo. Os salários são muito mais elevados.
Eu: Pois, mas eu não sei falar luxemburguês.
Linguista: O luxemburguês é apenas uma espécie de dialecto local. Uma mistura de alemão de má qualidade com francês. O essencial é falar outras línguas. E português, claro.
Eu: Como é que sabe que eu sou portuguesa?
Linguista: Tenho várias clientes portuguesas. Nota-se no vosso sotaque.
Eu: Há mais portugueses em Vielsalm?!
Cabeleireiro de renome: Que eu saiba, não. As minhas clientes vêm de Trois Vierges, no Luxemburgo.
Eu: Ah…
Cabeleireiro de renome: Então, como é que vamos cortar?
Eu: Não sei. Corte o que achar que é preciso. Não faz mal se tiver de cortar curto.
Consultor de imagem: Isso, não. Você tem uma cara toda redonda, fica-lhe mal o cabelo curto.
Eu: Eu também acho! É por isso que tenho sempre o cabelo comprido.
Consultor de imagem: Mas não lhe fica nada bem, sabe? Você é muito pequena e o cabelo comprido só piora.
Eu: Ah, pronto…
Consultor de imagem: E também não ajuda nada ter o cabelo comprido nessa desgraça... Mais vale tê-lo mais curto, mas bem cuidado.
Eu: Olhe, então, corte como quiser.
Vidente: Era o que eu ia fazer de qualquer modo. Temos de cortar aí uns bons 15 centímetros do seu passado.
Eu: Tanto?
Vidente: Eu faço o meu trabalho. Vou deixá-la com uns cabelos saudáveis. Primeiro que tudo, saudáveis. Você trate da sua saúde e deixe de viver sob esse stress permanente, está bem?
Eu: Ok…
Consultor de imagem: E pare lá de fazer experiências com a cor, sim? O que lhe fica bem é o seu castanho claro natural. Não se ponha a inventar, está bem?
Eu: Não são bem experiências… às vezes, compro o que está em promoção. Outras vezes, deixo os miúdos escolherem a cor. Ah… e também já me aconteceu não chegar às caixas que estão lá mais em cima e trazer uma qualquer da prateleira mais baixa…
Consultor de imagem: Hein?! Olhe, concentre-se no tom da cor e não na marca, sim? Sempre fica mais fácil e faz menos disparates.
Eu: Ok…
Psicólogo: Afinal, o que se passa na sua vida?
Eu: Tenho um filho adolescente. É complicado.
Pedopsiquiatra: Isso é exactamente a mesma coisa que com a queda de cabelo. É acalmar-se, manter-se saudável e esperar que passe. Passa sempre, sabe? Eles um dia voltam ao normal. Parece grave, mas é sempre passageiro.
 
E, pronto... Uma hora depois, saí de lá mais leve. O cabelo ficou pelos ombros, escadeado. O meu amor diz que adora, mas acho que é só para me animar. Os miúdos nem notaram. Não fosse o caso de o cabelo curto me ficar tão mal porque tenho uma cara de lua-cheia, ainda um dia experimentava chegar a casa careca para ser se eles reparavam. Desconfio que enquanto a comida estiver na mesa a horas (e em abundância), nenhum dos meus filhos dá pela diferença. Quando reclamei, o Vasco veio a correr abraçar-me. Disse-me que para ele sou sempre bonita porque sou mãe. É o que interessa. Isso e a comida na mesa, claro.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

E o que me apraz dizer, depois da primeira aula de ballet?

(ou como entrar com um elefante numa loja de porcelanas

e sair de lá surpreendido)


Este ano decidi fazer uma exigência não negociável no que toca às actividades extracurriculares dos rapazes: podiam escolher o que quisessem, desde que fosse perto de casa. Acabou-se aquela correria louca contra o tempo dos anos anteriores. Mantiveram o solfejo e os instrumentos. Trompete para o Diogo, violino para o Vasco. O Diogo decidiu começar a tocar outro instrumento e escolheu o violoncelo. Desconfio que o Vasco vai querer imitá-lo... Quanto ao desporto, também mantiveram a equitação. Mas lá consegui convencê-los a terem aulas a sério num picadeiro. Assim, já não estamos condicionados pelo clima e o Vasco pode começar a andar sozinho num pónei, porque estão num circuito fechado. Nada nos impede de darmos uns passeios a cavalo pelos bosques de Malempré com a Myriam, quando tivermos saudades.

Como o Diogo escolheu a opção de desporto na escola, achei que já chegava de actividades desportivas. Também há que dar descanso ao corpo. Excepto no caso do Vasco, claro. Nada parece cansá-lo. É imparável e inesgotável. Um poço sem fundo de energia bruta. Literalmente bruta. Portanto, decidi inscrevê-lo em mais uma actividade desportiva. Algo que o obrigasse a concentrar-se e a canalizar aquela energia toda. Que o deixasse de rastos. É verdade que ele adorou a esgrima, no ano passado… mas tenho sempre medo que ele vaze um olho a alguém, quando o vejo a esbracejar com as espadas improvisadas que vai desencantar sabe-se lá onde. E, tendo em conta a sua paixão assolapada por duelos e lutas e guerra e batalhas, estava fora de questão qualquer tipo de arte marcial. Ainda me dava cabo de um colega antes de chegarmos ao Natal. Tinha de ser algo exigente fisicamente, mas calmo. Muito calmo. As opções, na zona de Vielsalm, não eram enormes. Mas havia o ballet…

No ano passado chegámos a falar nisso, só que o Vasco teve vergonha e acabou por não querer ir. Mas depois arrependeu-se, quando viu que o filho do professor de violino andava no ballet e gostava muito. É de dizer que o Matteo é um miúdo tão reguila como o Vasco. Por isso, este ano voltei à carga. Para vencer o preconceito e ver se o interessava, mostrei-lhe no YouTube uns vídeos do Marcelino Sambé, um miúdo que sigo com interesse. O Vasco gostou muito e quis experimentar. E hoje lá fomos os dois, com ele todo contente de leggings pretos. À chegada, só meninas de maillots e saias cor-de-rosa. E uma professora imponente. O Vasco fez-se pequenino e escondeu-se nas minhas costas, envergonhado. Perguntou à professora se eu podia ficar a assistir. E ainda bem, porque passei uma hora absolutamente deliciosa. Nunca na minha vida tinha visto algo assim. Sempre imaginei que dar aulas de ballet a miúdos pequenos devia ser como ensinar um bando de elefantes desengonçados a dançar harmoniosamente. Mas, não. Aos poucos há uma espécie de transformação qualquer que se opera sem nos darmos bem conta. O corpo endireita-se, alonga-se. Ganha plasticidade e doçura. Os movimentos tornam-se fluídos. Ao fim de uma hora, a minha coisa pequena já conseguia seguir as meninas. Meio desengonçado, meio desastrado. Mas… como explicar… contido. Concentrado. Calmo. Bonito.

Não sei se o Vasco vai querer continuar as aulas de ballet, só ele pode decidir. Eu gostava muito que continuasse, adorei vê-lo. Fiquei absolutamente fascinada com o que aquela mulher conseguiu fazer em tão pouco tempo. Por enquanto, ele diz que quer voltar. Para experimentar mais uma vez. Só espero que lhe volte a dar um ataque de vergonha e peça para eu ficar…
 
E, para quem não conhece, eis o Marcelino Sambé...

 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Setembro é o mês da raiva

(porque há meses em que o sentimento de injustiça é maior)


O Verão está definitivamente morto e enterrado, na Bélgica. É preciso comprar já a roupa de meia-estação. Não há malabarismo possível. Não dá para pensar que este mês compro o material escolar e, no próximo, a roupa. De manhã, quando os miúdos saem para a escola as temperaturas já estão bastante baixas. Chove. São precisos casacos, botas. Roupa quente. Nem vale a pena ir buscar a roupa do ano passado, ambos cresceram demasiado. O Diogo já se veste na secção de homem, onde tudo é mais caro. O Vasco rasga calças, mete nódoas nas camisolas, perde casacos, estraga ténis. O Diogo já pede roupa de marca. Da H&M, podia ser pior. O Vasco não é esquisito no que toca a indumentária. Roupa dada, sem ser de marca ou comprada em segunda mão. Qualquer coisa é boa para arruinar usar. Mesmo assim, tanta roupa para ambos, de uma só vez, custa dinheiro. Muito.

Além disso, há o equipamento de desporto que é preciso comprar logo no início do ano lectivo. Todas as actividades recomeçam em Setembro. Novos fatos de banho, chinelos e óculos, que os últimos desapareceram para parte incerta. É o que dá a natação ser dada na escola. Ténis e sapatilhas para educação física. Mais os calções e as t-shirts oficiais das escolas de ambos, pagas a preço de ouro. Um saco novo de ginástica que durou, nas mãos do Vasco, um dia. Um dia inteirinho de 6 horas, atenção. As botas da equitação felizmente ainda servem, mas as calças já não. E, agora, há ainda o equipamento de ballet do Vasco. Não faço ideia o que hei-de comprar, mas talvez seja melhor esperar mais um bocadinho, para ver se ele não se assusta com os tutus cor-de-rosa da meninada. Enfim, este ano não é preciso comprar nada muito caro. Mas mesmo assim, tantas coisas para ambos, de uma só vez, custam dinheiro. Muito.

Depois, há que pagar as inscrições e as próprias actividades extracurriculares. A educação física está incluída nas aulas, mas a natação é paga à parte. E, infelizmente, é tudo pago anualmente. De uma só vez. Equitação numa nova escola. Ballet. As aulas de solfejo e de instrumento. Este ano, o Diogo decidiu que, além do trompete, também queria aprender violoncelo. Cheira-me que o Vasco vai querer imitá-lo, que o amor pelo violino foi um paliativo até haver violoncelos da sua altura. O preço mantém-se, independentemente do número de aulas. E os violoncelos são cedidos pela academia. Só assim é possível fazer-lhes a vontade. Até porque as academias de música são incomparavelmente mais baratas do que em Portugal, graças aos subsídios estatais que recebem. Mesmo assim, tantas actividades para ambos, de uma só vez, custam dinheiro. Muito.

Setembro é também o mês de correr as capelinhas todas, no que toca a médicos. Ortodontista para o Vasco, que vai finalmente tirar o parelho. Dentista para ambos. Dermatologista para o Diogo. As consultas de oftalmologia terão de ficar para o mês que vem. Mas a consulta de psicologia do Diogo não pode ser adiada. O otorrino e o cardiologista infantil têm meses de espera. Felizmente, no sistema de saúde semi-privado belga, as consultas médicas mais comuns são completamente gratuitas até aos 18 anos. Quer sejam no centro hospitalar ou no privado. O único senão é que são reembolsadas posteriormente, ou seja, é mesmo preciso avançar o dinheiro. E avançar tanto dinheiro, este mês, não é fácil…

A escola também é gratuita na Bélgica. Ambos os rapazes andam em escolas privadas, cujo custo é assumido pelo Estado. Sendo nós ateus, o ensino católico não seria a minha primeira escolha, mas a qualidade de ensino é efectivamente superior. Infelizmente, não têm os mesmos apoios municipais das outras escolas e as facturas são sempre bastante elevadas. Os manuais escolares são, na sua maioria, emprestados pela escola. Tal como os dicionários e as gramáticas. Mas há alguns livros que temos de mesmo comprar, principalmente, os livros de leitura obrigatória. Na primária, há também a anuidade de várias revistas infantis… que são pagas em Setembro, claro. A lista de material escolar a levar no primeiro dia de aulas é enorme. E sente-se a pressão dos meninos mais abastados, que só usam coisas de marca. Caras, muitooo caras. Tento contrariar isso, por uma questão de princípio, mas nem sempre é possível. Como os meus filhos são uns vândalos, o material é comprado por atacado logo em Setembro, para nunca ser apanhada desprevenida. Estamos no final da primeira semana de aulas do Vasco, a mochila já está rasgada e a caneta de tinta permanente já jorra tinta. Este ano avizinha-se como o anterior, em que comprei 6 mochilas para ambos. Não, perdão… uma teve o patrocínio paterno. Porque há pais que pagam e há pais que oferecem. Para uns, é uma obrigação indelével e imediata. Para outros, um pequeno gesto displicente de generosidade para com os mais necessitados.

Eu vim viver para a Bélgica exactamente para poder oferecer aos meus rapazes esta educação. Uma educação em colégios privados, com um ensino de qualidade, de proximidade. Adaptado e individualizado. Uma educação que passa pela mente, mas também pelo corpo. Que envolve conhecimentos, desporto, música. Cultura. Uma educação de luxo, não tenho pejo nenhum em dizê-lo. Que me sai do corpo, quando faço de motorista/piloto de F1 para os levar a horas a todo o lado. Que exige paciência e doses de perseverança para os obrigar a estudar e a tocar todos os dias. Que me custa anualmente muito dinheiro, em Setembro. E, semanalmente, em gasolina. Que me obriga a trabalhar menos horas para os poder acompanhar. Posso, em consciência, afirmar que os meus filhos não têm apenas uma educação de luxo, têm também uma mãe muito presente. E o paradoxo de tudo isto é que eu sou penalizada por ter emigrado em busca de condições melhores para os meus filhos. O meu castigo é ter de assumir financeiramente tudo sozinha. Ter de pagar tudo integralmente sozinha. Da comida à escola. Dos médicos às actividades extracurriculares. Do material escolar ao lazer. Tudo. Sozinha. Por pura vingança.

Às vezes, quando não tenho ninguém por perto, choro. Não são lágrimas de tristeza, são lágrimas de raiva. Raiva pura que eu calo e que acaba por sair, assim, em forma de rio. Depois, passa. Obrigo-me a fazer o exercício da gratidão. Digo para mim mesma que não estou sozinha. Que tenho muita sorte. Onde uma única criatura falha, há imensas pessoas que me estendem a mão sem sequer ser preciso pedir. Tenho vizinhos que me dão roupa. Tenho colegas que me dão material escolar que os filhos já não precisam. Tenho família que manda coisas de Portugal. Que me ajuda a pagar contas. Tenho o meu amor que assume dois filhos que não desejou, nem fez. Mas que ama incondicionalmente. Não assume financeiramente, porque eu não deixo. Tenho o meu orgulho próprio. Mas ele arranja sempre maneira de me dar a mão discretamente, quase sem se fazer notar. E isso não muda a situação de extrema injustiça que vivo há dois anos, mas sara as feridas internas e dá força para continuar.

Setembro é o mês da raiva. Da raiva cega e surda e muda. Da raiva que há demasiado tempo guardo apenas para mim, mas que me corrói por dentro. E que não pára de crescer, qual monstro insaciável. Da raiva que se alimenta de todas as facturas que tenho de pagar este mês. Raramente me queixo. Tenho muito orgulho em sustentar sozinha os meus filhos. Mas em Setembro… bolas, em Setembro, custa muito.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

(onde se mostra que, mesmo à distância,

o coração consegue sempre arranjar espacinho para mais um)

 
Bem-vindo a esta família, querido sobrinho. Uma família feita de muitas pessoas, muito diferentes. Uma família que é feita de laços de amor que se transformam em rios de sangue igual que nos corre a todos nas veias. Aqui, serás sem dúvida amado. Não garanto que sejas totalmente compreendido. Não garanto que não tenhas de lutar para conquistar o teu lugar. Que isto é gente de ideias fixas, gente teimosa com a mania que sabe tudo. Mas garanto-te que serás amado como em mais lugar nenhum no mundo.

Bem-vindo a esta família, onde cada um mora para seu lado. Onde passamos muito tempo sem nos vermos. E, às vezes, quase tanto sem nos falarmos. Não garanto que consigas de imediato associar as muitas caras aos nomes. Não garanto que consigas ter uma relação muito próxima com todos nós. Mas uma coisa te garanto, querido sobrinho, sempre que precisares, estaremos todos presentes. Porque esta família tem essa capacidade mágica de se materializar quando menos se espera, onde menos se espera, sempre que for preciso. Por isso, já sabes… se precisares, estaremos todos lá para ti.

Bem-vindo a esta família onde há poucas crianças e muitos adultos. Demasiados adultos. Não garanto que não tentem fazer de ti um adulto antes da hora. Que isto é gente com muita cabeça, gente séria. Mas garanto-te que connosco se passa uma coisa muito engraçada. Nesta família, os adultos são sempre um bocadinho crianças. Apesar das rugas, vais ver-nos chorar e rir a bandeiras despregadas. É que nesta família ninguém se esquece de ser pateta, de vez em quando.

Por isso, querido sobrinho, tenho a dizer-te que és um menino cheio de sorte. Não sei que caminhos te trouxeram até nós, mas não tenho dúvidas de que vieste parar ao sítio certo. Ainda não sabes – e provavelmente hás-de negá-lo pela vida fora, como todos nós – mas vieste parar à melhor família do mundo. E tens os melhores pais do mundo. Na maior parte das vezes, não hão-de saber bem o que fazer, vão ter muitas dúvidas e cometer muitos erros. Tem paciência, que isto de ser pai e mãe é coisa que não vem nos livros e demora o seu tempo a aprender. Nós vamos estar por aqui para os ajudar, não te preocupes. Quando tiveres 16 anos e estiveres farto deles, podes ligar à tia que eu mando-te um bilhete de avião para vires passar uma temporada comigo. Nessa altura, querido sobrinho, já terei os meus cavalos e iremos os dois dar longos passeios. Vamos encher-nos de chocolates e dizer mal do mundo inteiro. E prometo contar-te todos os disparates que a tua mãe fez quando tinha a tua idade, que é para isso que as tias servem.

Ainda não te conheço, querido sobrinho. Ainda não ouvi a tua voz. Ainda não pus os meus olhos em cima desses teus olhos enormes. Mas posso dizer-te que já tens um cantinho do meu coração que é só teu, onde serás sempre rei.

Os teus primos têm todos músicas só deles. Músicas que foram escritas especialmente para eles, mesmo que o cantor não saiba. Mas eu sei e, quando as ouço, penso neles. E o meu coração fica mais quentinho. Esta é a tua música, querido sobrinho. Porque foi escrita para ti e porque foi a tua mãe que me deu a conhecer o Sérgio Godinho.
 

 

[ Tia em francês diz-se “tante”. Vá… “tati”, para ser mais simples. Só para me distinguir da outra tia, grande e feiosa, que te vai encher de beijos e te vai apertar muito. E que te vai dizer que é a tua tia preferida. Diz-lhe que sim só para a fazeres feliz, mas não acredites nela, está bem? ]