segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Lembrar-me de mim

(e de uns velhos All Star demasiado grandes)


 
Nunca fui uma adolescente que ligasse muito a marcas até andar num colégio para meninos finos, quando fiz um ano de intercâmbio na Bélgica. A mania passou-me quando comecei a comprar roupa com o meu dinheiro (e a pensar pela minha própria cabeça). Mas ainda durou uns anos. O meu pai reclamava, questionava, indignava-se, mas acabava sempre por ceder. Uma das compras que mais discussão deu foram os primeiros ténis-bota All Star em pele que foram lançados em Portugal. Custaram uma fortuna e tive de esperar semanas pela encomenda feita um pouco às cegas, na loja do costume. Infelizmente, o número mais pequeno que chegou era um 38. Durante largos meses, fui uma adolescente feliz e trapalhona, sempre a cair, porque andava feita palhaça com uns pés enormes.

Lembrei-me desta história no outro dia, quando me passei e fui comprar calçado para o Diogo. Depois de um braço de ferro que me deixou desgastada. Andávamos desde o Natal a discutir, todos os dias. Ele insistia em ir para a escola de ténis no meio da neve, eu tentava convencê-lo a comprar um par de botas quentes e impermeáveis. Até que chegou a casa, num final de tarde, com os pés completamente encharcados e cheio de tosse. E eu atingi o meu limite. Deixei-o no solfejo e, sem admitir discussões, fui ao Luxemburgo comprar umas botas. Fui sozinha de propósito, para evitar as cenas do costume. Porque botas da neve é o que usam os miúdos da Primária. Porque botas de pele é coisa de velho. Porque as botas da Decathlon são “outdoor”. E já se sabe que ninguém pode ir para a escola com aquilo nos pés que arruína por completo a imagem. Porque ténis-bota é coisa de pessoal das barracas. Porque sapatos é o que usam os profs e também não serve. É pior que à velho. Porque, porque, porque…

Cheguei à loja furiosa, disposta a comprar um bom par de botas. Afinal de contas a mãe sou eu, ele tem mais é de fazer o que eu mando. Se a única coisa que sobrasse no armário fossem umas botas, ele teria mesmo de calçar aquilo se quisesse ir para a escola. Ou, então, que fosse descalço, porque a porcaria dos ténis só voltariam a aparecer aos fins-de-semana. A minha paciência para esquisitices de adolescente mimado tinha-se esgotado.

Mas depois vi uns ténis-bota All Star em pele. Caros. Muito caros. Com pêlo de ovelha por dentro e impermeáveis. Termo-coisos, isto é, que conservam o calor do corpo. Com uma sola grossa para esmagar a neve. E lembrei-me de mim, adolescente mimada. Lembrei-me de mim, a discutir com o meu pai que nunca me disse que não. Lembrei-me de mim, a tentar enquadrar-me num colégio de meninos finos. No mesmo colégio onde o Diogo anda, um Sacré-Coeur. De repente, tentei olhar em volta… não com os meus olhos de mãe, mas com os olhos de filho. E, de facto, todos os outros pares de sapatos me pareceram feios e desadequados. Só aqueles brilhavam. Peguei na caixa e, antes que me arrependesse, paguei sem ver.

O Diogo foi amoroso, quando cheguei a casa já mais calma com os sapatos novos. Devia estar a tremer de medo quando lhe entreguei o saco, mas agradeceu e prometeu calçar o que eu tivesse comprado. E depois viu os All Star. Tão adolescente. Tão giros. Tão fora do vulgar. Um piscar de olho à miúda mimada que eu também fui. Que me permitiram ser até ter maturidade para deixar de dar importâncias às aparências. Um justo compromisso entre o que ele gostaria e o que eu queria. Que tiveram o sucesso esperado na escola. E que o fizeram pôr completamente de lado os ténis, inclusivamente ao fim-de-semana. Que me arruinaram o mês, mas que o encheram de felicidade.
 


[ Estou a aprender a ser mãe de um adolescente. E isto não é fácil, tenho sempre muitas dúvidas. Não tenho outro ponto de comparação, excepto a minha própria adolescência. Há muita coisa que gostaria de transmitir ao Diogo mas, às vezes, também sabe bem apenas mimá-lo. ]

6 comentários:

  1. Uma história muito enternecedora. Às vezes, temos de nos colocar nos "sapatos" dos outros. É um pequeno esforço (de vontade e financeiro), mas que vai dar muitos frutos. Um dia, ele vai relembrar esta história.

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    1. Não tinha pensado nisso, Miss Smile... talvez um dia um neto meu também receba uns All Star fantásticos! :)

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  2. Ainda bem que a adolescente que foste não deixa de conversar com a mãe que és. Afinal, quem é que é dono de verdades absolutas? Espero seguir esse exemplo.

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  3. Ohhh... às vezes, acho que ainda sou um bocadito adolescente, Gralha... ;)

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  4. Concordo com a compra e com a explicação.
    Mas tu disseste: "Lembrei-me de mim, a discutir com o meu pai que nunca me disse que não."
    Ora tenho para mim que o problema foi mesmo esse pateta não te ter dito que não algumas vezes que lhe apeteceu... Olha para começar, e para dar só um exemplo, não tinhas ido de intercâmbio para a Bélgica com 15 anos. A ires para algum lado, era depois de teres 18 anos e seres adulta... E com uma declaração assinada por ti de que ele ficava desobrigado de quaisquer responsabilidades emergentes da tua decisão.
    [E já viste como depois tudo (todo o futuro, digo, o actual presente) seria diferente?...] [Aliás, acho que isto é uma aplicação da "teoria do caos", de onde Prigogine deduziu a "flecha do tempo", ou seja, a irreversibilidade. Fazes, está feito. Terá sempre consequências. Mas voltar atrás e fazer diferente NÃO É opção... ]

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  5. Sim, sim... o bater das asinhas da borboleta e tal...

    Apesar de tudo, acho que tive um bom pai. Vá... um pai bonzinho, para retomar a discussão do outro dia. ;)

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