sábado, 31 de janeiro de 2015

Verdade ou Consequência

(onde se percebe que esta que vos escreve não tem perfil de blogger)


 
Gosto muito de dar aulas à noite. Tenho praticamente o mesmo grupo do ano passado. Gente mais velha, numa fase engraçada da vida… filhos crescidos, tempo livre para viajar, namorar, estudar, divertirem-se. É bonito de se ver. Dar aulas a esta malta é muito mais do que um trabalho. É o meu momento de descompressão da semana. Farto-me de rir. Até porque, aos poucos, fomos criando laços que extravasam a sala de aula. Debatemos ideias e problemas. Idealizamos viagens. Trocamos livros, filmes e CDs. Enviamos mensagens uns ao outros. Acho que já nos conhecemos todos bastante bem. Mas, depois, há sempre um lado lunar, secreto, que nos apanha completamente desprevenidos…

Na última aula, jogámos a uma versão aldrabada do “Verdade ou Consequência”, que eu inventei para eles treinarem os tempos verbais. Neste caso, o pretérito perfeito. Claro que a consequência é conjugar um verbo irregular, cantar uma canção em espanhol, dizer cinco advérbios de lugar, etc.

Fiquei, então, a saber que:

O machão da turma passou um ano a escrever poemas de amor para conquistar a amada. Estão juntos há 25 anos.
A dona de casa típica dança o tango aos fins-de-semana. E diz que aquilo reavivou o casamento.
A colega do lado, diz que foi a viagem que fez no Verão passado com o marido pela América do Sul.
A stressada crónica já fez um périplo pela selva, na Tailândia. E gostou.
O nosso holandês de serviço decidiu aprender espanhol para conseguir ler a “Hola”, que compra religiosamente todas as semanas.
A mãe de cinco tem aulas de rock n’roll aos domingos à tarde. Com o cunhado.
A nossa testemunha de jeová admitiu que ia sacar material para os nossos debates mensais num site dos jeovás que está traduzido em várias línguas. E garantiu que aquilo é melhor do que a wikipedia.
A misteriosa da turma vai aos Açores na Páscoa. Mas teve de dizer ao marido que também falam espanhol por lá, para “rentabilizar” o serão semanal que passa na escola.
A outra holandesa confessou que insulta os colegas de trabalho em holandês. Depois de demorada troca de ofensas, chegámos à conclusão que, de facto, o flamengo da Flandres e da Holanda também difere nesse ponto.

Depois, chegou a minha vez de lançar a dúvida: He escrito un blog el año que pasó. Desatou tudo a gritar: “Mentira!”, “Não escreves nada!”, “Consequência, consequência!”, “Vais ter de cantar!”... Sinceramente, não percebo. Eles contaram as coisas mais estapafúrdias e a maioria era mesmo verdade, mas acharam impossível que eu escrevesse um blog…

 

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Da genética, dos equívocos e das epifanias

(porque a neve também tem coisas muito boas)



Infelizmente, o meu filho Vasco herdou a minha péssima relação com o tempo. Como pareço tê-la herdado da minha tia, a culpa não será inteiramente minha. É mal de família. Aliás, a definição científica de ‘mal de família’ é mesmo essa: problema que corre no sangue de, pelo menos, três gerações. Confirma-se.

Ora esta manhã foi um daqueles dias em que o Vasco perdeu completamente a noção do tempo. Segundo ele, porque tem noção de que não tem noção do tempo. Eu explico. Quando foi lavar os dentes, decidiu que era melhor pôr a ampulheta para garantir que respeitava o tempo de escovagem definido pela instância materna. O problema é que a ampulheta estava há semanas desaparecida em parte incerta. A parte incerta em questão consiste num buraco negro, entre o lavatório e a parede, onde tudo o que cai, nunca mais aparece. E vai de começar a procurá-la. Quinze minutos antes do toque. Quando ainda nem sequer estava vestido. Quando dei por ele, já tinha conseguido sacar a dita ampulheta, um creme das mãos e a embalagem do fio dental. E sabe Deus que mais não teria conseguido calmamente apanhar, não fosse o grito que lhe dei. Fui pôr o lanche na mochila e, quando voltei, lá estava ele, ainda de pijama, com a escova numa mão e a ampulheta na outra a lavar esforçadamente os dentes. Aparentemente, as regras da instância materna não podem ser quebradas por motivos de força maior, nem sequer pela própria.

Como as estradas estavam caóticas, porque desde ontem não pára de nevar, achei melhor enviar uma mensagem ao meu chefe a dizer que ia chegar atrasada. Obviamente fiz isto com um dos meus tentáculos de polvo. Os outros estavam ocupados a escovar os dentes (sem ampulheta) e a ajudar a vestir camadas de roupa. Resultado, o sms partiu como mms. Estava a abrir a garagem, quando recebo a resposta: “Não consigo ler a tua mensagem, mas calculo que deva ser para avisares que estás presa na neve. Eu também! Fica em casa e vemo-nos na segunda-feira. Bom fim-de-semana!”. Agradeci com todas as minhas forças o equívoco ao deus dos tradutores atrasados (expressão algo tautológica, mas enfim…).

Fui levar o meu adorável atraso de vida à escola e, segundo ordens do chefe, voltei para casa. D. Fuas esperava por mim à porta, de orelhas caídas. Ontem nevava tanto, que não foi passear. Decidi aproveitar umas breves tréguas para irmos dar uma volta rápida ao lago. Nevava de mansinho. Não se via vivalma. À minha volta, um manto branco. Luz. Uma paz tão grande. E os nossos passos a desbravar caminho na neve, com aquele barulho tão característico. Soube tão bem. Senti aquela espécie de felicidade que o Zezé descrevia em O meu pé de laranja lima… um passarinho a cantar dentro do meu peito. Às vezes, é mesmo preciso perdermos tempo para a felicidade acontecer.

 
 







quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Fazer o essencial

(onde também se dá a conhecer

uma certa forma de coaching profissional)


 
Estou longe de ser a mãe que um dia sonhei que seria. Porque as minhas expectativas eram irrealistas. Porque não sou mesmo capaz. Porque estou ocupada a viver a vida, não a “vidinha”. Porque me falta o tempo. A disponibilidade mental. Porque um dia tudo se desmoronou e tive de recomeçar do zero. Porque tive de me reconstruir do zero. E isto é um work in progress, onde muitas vezes não há espaço para mais. Porque aprendi que uma mãe não é um lugar estanque e seguro, também está em constante crescimento. Porque abri mão das certezas absolutas em prol de um questionamento permanente. Porque aceito que faço o melhor que posso. Não podendo fazer as coisas todas bem feitas, pelo menos faço-as benzinho.

Vem isto a propósito do fundo de ecrã do meu computador. Nesta casa, há uma competição renhida pelo meu fundo de ecrã, que vai mudando segundo o estado de espírito do momento. Ontem, a trabalhar perto dos meus filhos, mas com umas saudades sem fim dentro do peito, escolhi uma fotografia nossa. Uma imagem que me arranca um sorriso ternurento sempre que faço uma pausa.

O Diogo viu-a, numa das vezes em que veio controlar muito pouco discretamente o avanço dos trabalhos, isto é, quantas páginas tinha eu conseguido traduzir enquanto ele fez o jantar com o meu amor. E disse: “É pá… até fiquei bem nesta fotografia. Estou mesmo giro!”. O Vasco também a viu, quando me veio perguntar quantas páginas faltavam para acabar o livro, para actualizar a sua contabilidade diária antes de ir para a cama. E disse: “Eu sou tão bonito!”. Além de serem especialistas precoces em coaching profissional, os meus filhos têm auto-estima para dar e vender. Acredito profundamente que isto advém do facto de se saberem amados.

Estou longe de ser a mãe que um dia sonhei que seria, mas sou muito mais feliz agora. E uma coisa é certa, tenho os filhos com que sempre sonhei. Portanto, alguma coisa hei-de estar a fazer bem...
 
 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A arte da fuga

(onde se apresenta o flagrante delito, a criminosa

e a poderosa arma do crime)



Lembram-se da Belle?
 


Contei a história do aparecimento deste animal demoníaco aqui. Quatro gaiolas depois, voltei a falar do monstro quando tive esta ideia luminosa.  Durante uns tempos, houve paz.

Ontem à noite, ouvimos uns barulhos suspeitos e fomos espreitar. A desgraçada tinha-se empoleirado no bebedouro da água e vai de abrir furiosamente mais um buraco. Avançamos, portanto, para a sexta gaiola/caixa/local de contenção. Desconfio que não vamos ficar por aqui. Relembrem-me lá a esperança média de vida destes bichos…


 


 

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Fonética voraz

(isto até merecia um post exaustivo, mas fica só o desabafo…)


 
Eu aguento o excesso de trabalho, a privação de sono, a ausência de momentos de ócio ou de lazer. Eu até aguento a falta de tempo para me dedicar aos meus filhos, as saudades de namorar a dois.

O que eu não aguento mesmo é traduzir livros que falam de espetadores otimistas e de atores hiperativos. De gente que não para um segundo, com pelo na venta. Que vivem em casas com tetos cor-de-rosa e não cor de laranja. Cujos atos dizem muito sobre os valores éticos adotados. Isto há de ter uma fatura a pagar.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Epicentro

(zona à superfície que mais sofre com os abalos sísmicos)




À coordenação do centro de documentação e às aulas à noite, juntou-se este mês a tradução de um livro. Salto de trabalho em trabalho, de uma língua para outra. Por vezes, o meu dia divide-se entre três actividades opostas, em quatro línguas diferentes, num horário que se estende madrugada adentro. Ando absolutamente exausta.

O meu amor tenta compensar a minha ausência. Ou a minha presença ausente, o que ainda é pior. Estou aqui, mas é como se não estivesse. Acode a todos os “mãeeeee”, tentando formar uma barreira protectora à minha volta, que me permite ir gerindo o trabalho quotidiano sem desabar. Está sempre um passo à minha frente, para me tentar aligeirar o mais possível a carga.

Ataca as tarefas domésticas com espírito de missão. Gere as idas e vindas de todas as actividades dos rapazes. Trata da bicharada. O dinheiro que é preciso meter na mochila. E os lanches. Os trabalhos de casa e os testes. Os sacos da piscina, da ginástica, do ballet, do solfejo. E o violino. Mais o trompete. Trata da roupa. O livro que tem de ser devolvido à biblioteca. Faz as compras e as refeições. Mete mais um cartucho de tinta ou um lápis novo no estojo. Descomplica. Principalmente, descomplica. E traz-me café e beijos.

Mas o Vasco, ao fim de três semanas, esgotou a sua paciência. Passa os dias à minha volta, a tentar encontrar uma brecha. Acorda já de mau humor. Faz birras e chora. Anda respondão. Tem-se portado mal em casa e na escola. Não obedece a ninguém. Anda desleixado, de cabeça no ar. Parte-me o coração vê-lo neste estado de desolação. Pensei que com oito anos já não precisasse tanto de mim. Que já não estivéssemos tão ligados. Voltou a pedir-me para eu o vestir de manhã, dizendo que tem frio. Quer que o leve à escola. Pede ajuda para calçar as botas e para cortar a comida. Quer fazer tudo colado a mim, como quando era pequenino. Trepa para o meu colo, mete-se entre o meu amor e eu. Édipo parece estar de regresso, meio trapalhão, e eu voltei a ser “a minha mãe”. A que recebe abraços apertados e beijos melados.

Até o grande parece mais tolinho, nos últimos tempos. Manda-me sms parvos, com corações e smileys… “Posso fazer uns ovos?” “Posso comer um dióspiro?” Liga-me para me perguntar as coisas mais disparatadas, quando sabe que chego a casa vinte minutos depois dele. Pede para ver filmes, dizendo que também tenho de fazer uma pausa. Já vai tendo argumentos de gente grande. Mas, depois, pede para me sentar ao lado dele. Enrosca-se. E, no outro dia, disse-me: “Amo-te muito, mãe”. Já não ouvia isto há tanto tempo! “Gosto de ti” e “Adoro-te” ainda tenho a sorte de ouvir várias vezes por dia. Agora declarações de amor a sério já vão sendo raras…

O meu amor sorri. Também está cansado, ele. Mas não se queixa. Diz-me que sou o alicerce desta casa. Destes filhos. Que o desnorteio dos últimos tempos mostra que nenhum dos rapazes conseguiria viver longe de mim. Que a relação que temos os três ultrapassa a relação normal mãe-filhos. Somos uma tribo. É verdade, sei bem que sim. Mas, pela primeira vez na nossa vida, somos uma tribo de quatro. E estamos muito melhor assim.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Aaaah... a bela vida nas Ardenas!

(descobri este delicioso texto anónimo na Net,

que traduzo para que vejam bem o que é a nossa vida)


  
"Diário de um habitante das Ardenas"

 
12 Agosto:
Mudámo-nos hoje para a nossa nova casa, nas Ardenas solarengas. Esta região é verdadeiramente magnífica. Os vales são tão majestosos! Estou desejoso de ter oportunidade de os ver cobertos de neve. Adoro esta terra.
 
14 Outubro:
As Ardenas são o lugar mais bonito do mundo. As copas das árvores passam por todas as tonalidades, do vermelho ao cor-de-laranja. Fomos dar um passeio pelos bosques e vislumbrámos veados. São tão graciosos! São sem dúvida os animais mais maravilhosos que existem à face da terra. Sinto que estou no paraíso. Adoro esta terra.
 
11 Novembro:
Em breve, vai começar a época da caça ao veado. Custa-me imaginar que alguém possa matar estas criaturas tão adoráveis. Espero que comece depressa a nevar. Adoro esta terra.
 
2 Dezembro:
Nevou esta noite. Quando acordámos, estava tudo coberto de neve. Parecia mesmo um postal. Saímos para limpar a neve das escadas e desimpedir o caminho de acesso à casa com uma pá. Fizemos uma batalha de bolas de neve (eu ganhei) mas, quando o limpa-neves passou, tivemos de pegar outra vez nas pás para tirar a neve. Que lugar magnífico. Adoro as Ardenas.
12 Dezembro:
Voltou a nevar esta noite. Adoro. O limpa-neves voltou a fazer a mesma brincadeira e encheu-nos o caminho de acesso de neve. Adoro esta terra.
 
19 Dezembro:
Mais neve esta noite. Não pude ir trabalhar. O caminho estava obstruído com montanhas de neve. Estou exausto à conta de tanta pazada. Estupor do limpa-neves.
 
22 Dezembro:
A merda branca voltou a cair em força esta noite. Tenho as mãos cheias de bolhas por causa da pá. Tenho a certeza absoluta de que o limpa-neves se esconde na curva à espera que eu desobstrua o caminho de acesso. Cabrão!
 
25 Dezembro:
Feliz Natal de merda! Outra vez esta porcaria da neve. Se, pelo menos, conseguisse deitar a mão ao filha da puta que conduz o limpa-neves! Palavra de honra que dou cabo dele, estupor! Pergunto-me por que raio ainda não espalharam sal nas estradas para derreter esta porcaria toda.
 
27 Dezembro:
Outra vez montes de merda branca, na noite passada. Fiquei fechado três dias em casa. Só saí para libertar o caminho de acesso, a cada passagem do limpa-neves. Já não posso ir a lado nenhum. O carro está soterrado debaixo de uma montanha de neve. Segundo o tipo da meteorologia, prevê-se mais 25 cm desta merda, esta noite. Fazem ideia do que representam 25 cm de neve em pazadas?!
 
28 Dezembro:
O tipo da meteorologia enganou-se redondamente. Desta vez, caíram mais de 80 cm de neve. Por este andar, antes do Verão isto não vai derreter. O limpa-neves ficou preso na estrada e veio bater-me à porta a pedir uma pá. Depois de lhe ter dito que já dei cabo de seis pás para limpar a neve que ele faz questão de atirar para a minha porta de entrada, parti-lhe a última que me restava nas fuças.
 
4 Janeiro:
Hoje consegui, finalmente, sair de casa. Fui ao supermercado comprar comida e, no caminho de regresso, o filho da mãe de um veado enfiou-se no pára-choques do meu carro. Foram 3000 euros de estragos. Deviam chacinar a porcaria destes bichos. Pensei que os caçadores tinham dado cabo deles todos em Novembro.
 
3 Maio:
Levei o carro ao mecânico, na cidade. Podem não acreditar…mas a carroçaria do carro está toda enferrujada, às custas da merda do sal que espalharam nas estradas para derreter a neve.
 
10 Maio:
Chegaram os homens das mudanças. Vamos voltar para Chastre. Não consigo acreditar que alguém são de espírito consiga gostar de viver nesta região perdida.
 

[ No nosso primeiro Inverno em Malempré, em 2012. Nunca vi tanta neve na minha vida... ]

  
 
[ O velho saxo todo limpinho, parado à porta. Havia dias em que chegávamos a casa e parecia que só tinha nevado naquela terra. A pá, sempre à mão de semear. O parqueamento ao lado da casa, completamente atolado de neve, onde foi impossível estacionar durante meses a fio. ]

 


[ A escola dos miúdos. ]





[ No dia em passou um maluco por mim a alta velocidade em sentido contrário e, para me deviar, encostei-me à berma... que afinal não era berma nenhuma, era um buraco tapado por muitooooos centímetros de neve! ]


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Métodos pouco ortodoxos

(onde se apresentam os dois novos habitantes desta casa)


 
No Verão, o meu amor prometeu um passarinho ao Vasco como prenda de passagem de ano. Foi uma daquelas promessas que ele fez porque não percebe nada disto e se deixa facilmente endrominar na minha ausência. Vá… e porque gosta tanto de bicharada como a coisa pequena. Mas eu, que já ando a virar frangos há quase 14 anos, achei que o desgraçado do animal arriscava-se a morrer de ataque cardíaco. Se ficasse no andar de baixo, o feroz cão de caça dava cabo dele. Se ficasse no quarto do Vasco, a chinfrineira dava cabo dele. E rapidamente, troquei a promessa do passarinho por duas belas tartarugas. A coisa pequena ficou toda encantada e acabou-se a conversa. Claro que o encantamento acabou assim que percebeu que as tartarugas não são um animal muito… Como dizer? Interactivo. Diria mesmo, inerte. Seja como for, continuam vivas e de boa saúde. O que é um verdadeiro milagre, tendo em conta que estão -5º lá fora e que o aquário não é aquecido (e, por enquanto, os nossos quartos também não).

Entretanto, o Vasco foi ao otorrino. Era suposto ser apenas uma consulta de rotina, só para preencher o requerimento a autorizar a terapia da fala gratuita. Pois… Que se via que era um rapaz cheio de vida. Que de certeza que andava no futebol. Que devia gritar imenso nos jogos e na escola e em casa. Hum… duvido que grite no ballet, mas em casa e na escola confirma-se. Ah… e aquilo de ter muita vida também. Embora nunca tenha achado que isso fosse um problema, não gosto de filhos-tartaruga. Enfim, fosse como fosse, é verdade que o Vasco está sempre rouco. Diagnóstico: vários nódulos nas cordas vocais. Motivo: gritaria constante. Tratamento: parar de gritar. Possíveis consequências a longo-termo: voz de bagaço crónica.

Tentámos tudo. Explicar calmamente a situação. Explicar menos calmamente a situação. Explicar sem calma rigorosamente nenhuma a situação. Castigo. Reforço positivo. Explicar novamente a situação. Até que desistimos.

A história podia ter acabado aqui, não fosse eu uma mãe bastante teimosa engenhosa. Vai daí, lembrei-me que o tal passarinho talvez não fosse uma má ideia, tendo em conta a situação actual. Explicámos bem ao Vasco que podia ter um pássaro se prometesse não gritar, nem falar alto no quarto, para não o assustar. Promessa feita, no Natal oferecemos-lhe um cartão-cheque de 50 euros do Tom&Co, a nossa loja de animais preferida. A ideia também era obrigá-lo a gerir o orçamento, para comprar o animal, a gaiola e a comida. Uns dias antes, ainda apanhei um susto. Disse-me que tinha feito bem as contas e que, afinal, era muito mais vantajoso comprar animais para os quais já tivéssemos gaiola. Que sempre economizava, eliminando da equação o custo mais elevado. Que com 50 euros podia trazer um hamster anão, um coelho e um gerbilo. Fiquei tão impressionada com a destreza contabilística que até me engasguei. Mas, depois, disse claramente que não. Era o que mais faltava. A cota de animais roedores nesta casa já foi largamente ultrapassada. E eu quero mesmo que o Vasco pare de gritar, pelo menos, em casa.

No domingo, lá fomos nós ao Luxemburgo, ao Tom&Co. Desta vez, até o adolescente rezingão quis ir, para dizer de sua justiça. Deixei-os na zona dos pássaros e fui comprar comida para o resto da bicharada. Quando voltei, estavam as três almas completamente apaixonadas por um periquito azul todo bexigoso e pulguento, gordo como um papagaio. Impunha-se uma solução urgente. Bati com os olhos num periquito amoroso, todo branquinho, que estava a dar beijinhos a outro. Ora ali estava o candidato ideal! Deixei os três a apaixonarem-se novamente e fui à procura de uma gaiola em conta. Quando voltei, verifiquei estupefacta que se tinham apaixonado em demasia. E que o meu amor já tinha dito que podíamos trazer o casal de pássaros apaixonados. À conta do romantismo masculino, viemos para casa com dois piriquitos, uma gaiola bem maior do que inicialmente previsto, areia para pôr no fundo, comida, barras de cereais e mais uma catrefada de merdas que ainda não sei muito bem para que servem. Evidentemente que o cartão de 50 euros não deu para pagar a totalidade do estrago e tive de entregar um outro cartão, da minha conta bancária, evidentemente.

E aqui estamos... O Vasco nunca mais se ouviu. O Diogo, infelizmente, ouve-se bastante, porque passa o dia a assobiar numa tentativa de comunicar com os bichos. O meu amor sorri parvamente, enquanto trabalha no seu computador, porque acha o piar dos pássaros relaxante. E eu… eu estou em stress. Não consigo ver pássaros fechados numa gaiola. Dá-me dó de alma. Apesar de parecerem muito felizes e bem adaptados ao novo ambiente. Continuam apaixonadíssimos um pelo outro e passam o dia colados, aos beijinhos. (Espero sinceramente que seja um amor homossexual, que eu não quero cá mais pássaros em casa.) Entretanto, apesar do trabalho, das aulas e do livro que tenho de traduzir até ao final do mês, passo os meus dias na Net. A tentar perceber como se domesticam periquitos. Já vi dezenas de vídeos no YouTube, já li imensos artigos. Já fiz tudo o que era suposto e nada. A porcaria dos bichos continuam agarrados um ao outro, não me ligam nenhuma. Eu, que só queria que pousassem no meu dedo para os poder tirar da gaiola, para os poder deixar andar em liberdade durante o dia. E, já agora, para os poder voltar a pôr na gaiola, à noite. É que faz mesmo confusão vê-los ali fechados. Até agora, a pessoa que tem passado mais tempo com os passarinhos sou eu, claro. Como, aliás, acontece com o resto da bicharada. Tantos anos a virar frangos e ainda não aprendi que sobra sempre para mim…



quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

E assim se conquista uma reputação

(por esta altura, a minha vizinha já pensa

que viemos de Eldorado do Sul, lá nos confins do Brasil)



Um belo dia de sol, em pleno Inverno, não pode ser encarado com ligeireza. Em estando um ventinho bom, talvez até dê para secar uma máquina de roupa no quintal. Vá… para secá-la e congelá-la ao mesmo tempo, num estranho efeito físico que me ultrapassou. Confesso que foi bastante complicado enfiar pilhas calças de gangas congeladas no cesto da roupa. Já as cuecas e as meias petrificadas foi bastante fácil. Até foi engraçado fazer tiro ao alvo para dentro do cesto. A vizinha observava-me da janela. Acenei-lhe e gritei que a vantagem é que, assim que descongelasse, já estava tudo passado a ferro. Ela limitou-se a abanar a cabeça, parece-me – mas não quero ser má-língua – com um ar um pouco desgostoso.

No final do dia, saio para ir buscar o Vasco à escola. De manhã, foi o meu amor que o levou e não voltámos a mexer no carro. Olho à minha volta, com a espátula na mão, a tentar perceber qual daquelas montanhas de neve é o Twingo. Felizmente, há apenas três carros parados à porta. Um parece-me demasiado grande. Sobram dois. Ambos pequenos. Decido começar a limpar um deles. A minha vizinha sai nesse momento para passear os cães. Olha para mim, incrédula. Diz-me que o meu carro é vermelho. Que o carro que eu estou a limpar é branco. Hum… cobertos de neve, parecem-me os dois brancos. “Não quando já chegou à chapa. Não vale a pena limpar mais, esse carro é mesmo branco. E não é o seu.” Largo o carro branco-mas-não-da-neve e dirijo-me ao outro. Pelos vistos, o meu. “Quando for assim, basta destrancar as portas carregando na chave. O carro que apitar é o seu. Ou pô-lo na garagem, que é para isso que ela serve.” E foi-se embora, a abanar a cabeça, parece-me – mas não quero ser má-língua – com um ar um pouco desgostoso.

Acho que lhe vou oferecer mais uma garrafa de vinho do Porto.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Um caminho a percorrer

(“enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar”)

 

Já te dei tantas prendas. Eu gosto muito de dar prendas. Gosto de te dar prendas. Nos dias certos, nos dias especiais, nos dias inesperados. Já te dei prendas despudoradamente úteis. Umas calças de ganga. Lenços de pano. Luvas de lã. Prendas inusitadas. Uma fotografia a sépia de uma biblioteca destruída na segunda Guerra Mundial. Prendas inventadas por mim. Um candeeiro feito com um ramo perfeito que encontrei num dos nossos passeios pelos bosques de Malempré. Prendas estranhas. Uma espécie de tupperware em forma de pintainho para fazer ovos cozidos no micro-ondas, que serviu de bibelot enquanto estiveste em Itália porque não percebeste para que servia. Prendas que te deixaram comovido. Quando te fiz um bolo de anos pelos teus 40 anos. Prendas que te arrancaram uma gargalhada. A série completa de V. Prendas que demorei muito, muito tempo a encontrar. Uma tradução bilingue de O Marinheiro, do Pessoa.

Hoje calçaste as botas que te dei. Como tens feito todos os dias, desde que as recebeste, espantado. Olhavas para mim e para a caixa. E para mim. Perguntaste: “Compraste-me umas botas?” Respondi apenas que estava a nevar. E hoje, pelo canto do olho, vi-te sorrir ao calçá-las. Percebi que estavas a pensar em mim. E corei. Levantaste os olhos e apanhaste-me. Disseste: “Nunca me tinham oferecido umas botas. Tu cuidas de mim. Sei que as escolheste especialmente para mim. São tão confortáveis! E sempre que as calço penso que vamos fazer muitos quilómetros juntos, tu e eu. Temos um caminho a percorrer.”


domingo, 18 de janeiro de 2015

Belgicismos

(que mudaram mesmo a minha forma de estar na vida)


 
Os miúdos não precisam de tomar banho todos os dias (excepto quando têm educação física). O cabelo é lavado de dois em dois dias. Não andam porcos, nem cheiram mal. Não morrem por isso.

Não é preciso mudar de roupa todos os dias (excepto a roupa interior). Não andam porcos, nem cheiram mal. Não vem mal ao mundo, a sério.

Não é preciso ter montanhas de roupa. Os belgas vivem com muito pouca roupa, mas a que têm é de qualidade. O mesmo se passa com o calçado. E com os agasalhos de inverno, claro.

Basta uma refeição cozinhada por dia, ao jantar. Ao almoço, pode-se comer sopa, sandes, iogurtes e fruta. O pão é sempre integral. Leva manteiga, queijo e carnes frias. Ou azeite, ervas aromáticas e rodelas de chouriço assado, no caso do meu filho mais velho gourmet. Toda a gente leva marmita para o trabalho há muitos, muitos anos.

Aos fins-de-semana, quando acordamos tarde, fazemos uma espécie de brunch com ovos, bacon, baked beans, panquecas, fatias douradas, scones, etc. Não há aquela obrigação de passar a vida à roda dos tachos. As refeições (e a comida, em geral) são encaradas com outra descontracção.

Gastar dinheiro em cafés e pastelarias é um desperdício. Quando fazemos um passeio, levo sempre lanche reforçado. E água.

Não é preciso andar com muito dinheiro na carteira. Quanto menos se tem, menos se gasta. O cartão multibanco serve perfeitamente. Aliás, também já adquiri o costume belga de pedir nas caixas do supermercado para acrescentarem mais 10 ou 15 euros ao valor final, quando pago as compras, para ficar com algum dinheiro “vivo”, por assim dizer. Sempre evito uma ida ao banco, onde normalmente levantaria mais dinheiro no ATM.

Preferencialmente, faço compras no comércio local. Nas lojas em segunda-mão (roupa, brinquedos, livros, móveis, coisas para a casa, etc.). Na semana passada, por exemplo, comprei oito copos na loja da Cruz Vermelha por 2 euros. O edifício foi cedido pela Câmara e é gerido por voluntários simpatiquíssimos. Os artigos foram todos doados. Quem tem dinheiro paga, quem não tem, pode levar o que precisa segundo um sistema de pontos. Os 2 euros que gastei vão directamente para ajudar alguém. Economizo na gasolina e não encho os bolsos do senhor sueco, que não conheço de lado nenhum.

Os médicos atendem sempre a horas. Se chegamos dez minutos atrasados às consultas, corremos o risco de já não sermos atendidos. Todas as consultas das principais especialidades são gratuitas até aos 18 anos. E os miúdos são muito vigiados através da escola, embora no início possa parecer estranho. Se estivermos mesmo muito doentes, o médico de família vem a casa, sem cobrar mais pela consulta. Aliás, há uma tabela muito rígida de valores. Os preços andam entre os 25 e os 60 euros no máximo por consulta (e é preciso ser uma especialidade mesmo muito especial!).

A rede de bibliotecas públicas é muito boa, por isso, tornou-se passeio familiar obrigatório todas as semanas. Paga-se apenas uma quantia irrisória pelos direitos de autor e livros para adultos. Normalmente, têm também uma ludoteca repleta de jogos que os miúdos podem trazer para casa, uma mediateca bastante completa com filmes recentes, computadores com acesso gratuito à internet, actividades várias, encontros, etc. Acaba por ser um sítio onde se podem conhecer pessoas interessantes. Além disso, costumam ter livros em segunda-mão para venda em óptimo estado, onde às vezes me desgraço. Também já nos habituámos a ir a livrarias que só vendem livros usados, mas não são bem alfarrabistas. Têm sempre imensas novidades, a preços bem mais baratos. O Vasco adora lá ir, porque encontra sempre bandas desenhadas como novas por 3 euros.
 
Vale a pena ir até ao Luxemburgo todos os fins-de-semana encher o depósito do carro. Aproveito para comprar alguns produtos que são mais baratos do outro lado da fronteira (e produtos portugueses, claro).

Tudo o que não queremos, pode sempre ser útil a alguém. Estou desconfiada que a nossa vizinha do lado nos detesta, dada a nossa… efusividade mediterrânea, digamos assim. Mas isso não a impede de me dar a roupa que já não serve ao filho para o Diogo. Tal como eu levo a roupa do Vasco para distribuir pelas minhas colegas do trabalho, embora a maior parte ganhe mais do que eu. A mais pequena coisa é aproveitada. O Diogo este ano herdou a calculadora que a filha da secretária já não precisava. Não é tanto uma questão de poupança económica, como de gentileza entre as pessoas. Simpatia pura. De defesa de um modo de vida mais ecológico, em que se dá uma enorme importância ao reaproveitamento.

Os cães entram em todo o lado, nos transportes públicos e nos cafés. Nas farmácias, nas lojas, no supermercado. Não se vê animais abandonados, mas também não é permitido vender cães ou gatos nas lojas. E é obrigatório ter um seguro familiar que os inclua, porque de facto, aqui, são considerados parte integrante da família. E a verdade é que o D. Fuas já nos começou a acompanhar muito mais nas voltinhas diárias.

Há uma grande consciência cívica. O voto é obrigatório. As políticas sociais são inatacáveis, sob pena de o país se mobilizar. As escolas têm o cuidado de preparar os miúdos para a vida cívica, discute-se a actualidade política, ensina-se economia doméstica. As crianças são sempre chamadas a participar nos gastos escolares, seja através da boa utilização dos manuais escolares cedidos pela escola todos os anos, seja através da angariação de verbas para ajudar os pais a pagarem uma viagem, por exemplo.

Vale a pena distribuir simpatia à nossa volta, começamos mesmo a encarar a vida com outros olhos. Na Bélgica, as pessoas dão sempre os bons-dias quando entram num estabelecimento comercial. E, quando se despedem no final, desejam um resto de dia feliz. Em qualquer lado se mete conversa, se faz uma brincadeira, se troca um sorriso. Raras vezes, vi gente a reclamar. Há outra calma. Ninguém apita, por exemplo. As pessoas ajudam-se umas às outras. Há uma grande preocupação em facilitar a vida e ajudar o próximo. Há sempre miúdos a vender alguma coisa às portas para angariar dinheiro para um projecto da escola. E são sempre recebidos com um sorriso. Em Malempré, às vezes também eram recebidos com rebuçados.
 
 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Daquela coisa… como dizer? Auto-estima

(onde se serve um post a nu)

 

Como sempre, aproveitei a ida a Portugal para comprar lingerie. Não é que seja mais barata. Ou que haja mais variedade de escolha. Ou que seja mais bonita. Mas é mais pequena. Consideravelmente mais pequena.

Neste país, as mulheres são todas grandes. Quer dizer, não é só uma questão de tamanho. Até porque o meu ponto de comparação é – sejamos realistas – bastante diminuto. As mulheres nórdicas são não apenas grandes, como têm uma estrutura óssea que acompanha aquele tamanho todo. Dos pés à cabeça, literalmente. Depois de terem filhos (um, dois, três, quatro…), ficam ainda maiores. Não é exactamente gordas, é mesmo maiores, mais largas.

Encontrar roupa para mim, no meio deste amplo universo feminino, não é tarefa fácil. Calçado, muito menos. Sinto-me uma liliputiana no país do Gulliver. Eu, que sempre fui rechonchuda mas nem sempre tive uma relação pacífica com as gordurinhas, ainda me espanto com o tamanho da roupa que se vende por aqui. Pura e simplesmente, não há números 34. Mesmo o 36 é uma raridade, inclusivamente nos sapatos. Pior, por vezes até se encontram números mais pequenos… mas, depois, percebe-se que foram inflaccionados. Ou seja, o número indicado na etiqueta é pequeno, mas a roupa é grande. É uma coisa um bocado surreal, que faz milagres pela auto-estima de uma mulher.

Deve ser esta auto-estima adquirida juntamente com o estatuto de emigrante que me permite ficar em amena cavaqueira com o ginecologista, nos preparos diminutos que estas consultas normalmente exigem. Por aqui, não há cá batas, nem lençóis a tapar pudicamente aquilo que vai ser analisado com minúcia. Nem assistentes a velar pelo rigor científico do olhar. Uma pessoa fica para ali, tal como veio ao mundo. E é exactamente assim que, depois de inspeccionados os interiores, se senta na marquesa e continua a discussão. Tal como se estivesse no café, mas em trajes menores... muito menores. Ou sem trajes, vá...

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Uma estranha inversão de papéis

(felizmente, a reunião de pais resumiu-se a um único professor)


 
Professora: Estou muito satisfeita com o resultado do Diogo nos exames de Natal, mas continuo preocupada… Daí ter pedido para falar consigo.
Mãe: A sério? Viu bem as notas dele? Não haverá aí um excesso de exigência da sua parte?
Professora: Sinceramente, acho que não. Durante as semanas de estudo que antecederam o exame de matemática, notei que havia uma série de lacunas nos conhecimentos de base.
Mãe: Hein?! Como por exemplo?
Professora: Erros básicos de aritmética e nas operações de multiplicar, o Diogo ainda não domina bem a regra da prioridade de operações, erros na resolução de fracções…
Mãe: E acha que ele é o único?! Isso são erros menores, minha senhora. É mais distracção do que outra coisa.
Professora: Pois, compreendo que possa até ser um problema típico da idade, mas isso não invalida o facto de o Diogo ter de ser mais rigoroso! E o que me diz daquela letra hieroglífica?! Por vezes, engana-se nas contas apenas porque de uma linha para a outra, um - transforma-se milagrosamente num + …
Mãe: Olhe que eu até acho que ele tem feito um esforço para melhorar a letra.
Professora: Acha?! Metade das vezes, a meio da resolução do problema já não se percebe nada…
Mãe: Parece-me que está a ser derrotista. Nestas idades temos de ser positivos. O Diogo precisa de ser incentivado, não criticado.
Professora: Mas eu incentivo-o! Incentivo-o a estudar para ser um bom aluno.
Mãe: Mas ele é um excelente aluno! É dos melhores da turma. E já viu como ele é miúdo extremamente bem-educado?!
Professora: Mas ninguém diz o contrário! Sei bem que o Diogo é um miúdo bem-educado. O problema não é esse…
Mãe: Sabe como isso é raro, na idade dele? O Diogo não só é bem-educado, como tem uma excelente relação com os colegas. Tem noção da influência positiva que ele tem na sala de aula?
Professora: Sim, claro…
Mãe: Ele é muito bom colega, sempre pronto a ajudar os outros.
Professora: Pois, eu sei. E fico muito feliz por isso…
Mãe: É que nestas idades, isso é raro! O Diogo é um miúdo cativante. Inteligentíssimo.
Professora: Ouça, isso nunca esteve em causa. Eu conheço perfeitamente o Diogo. A minha preocupação prende-se apenas com a matemática. Quanto ao resto, não tenho quaisquer razões de queixa.
Mãe: Ah, bom! É que ele domina na perfeição três línguas… Três! Já viu os livros de inglês que ele anda a ler? É muito complicado…
Professora: Certo, mas talvez não seja muito normal que ele leia os livros de inglês nas aulas de Matemática…
Mãe: Não se trata disso. É que nestas idades é preciso ver a educação como um todo. Ter uma visão global das coisas. Temos de nos interessar pela vida deles, partilhar os seus centros de interesses, percebe?
Professora: Percebo, percebo. E tento fazer isso, claro. Mas, olhe, voltando à matemática… Não acha que o Diogo podia continuar a ter aulas de apoio só para consolidar os conhecimentos e manter o ritmo de estudo que o levou a ter estes resultados tão bons nos exames? Se ele se deita agora à sombra da bananeira, depois é mais difícil pô-lo na linha antes dos próximos exames.
Mãe: Mas a senhora viu bem a nota que ele teve no último teste?!
Professora: Vi, pois. E fiquei muito orgulhosa, claro. Mostra bem o trabalho que ele tem feito em casa. Mas é preciso continuar nessa linha, não? Em casa e na escola, temos de unir esforços…
Mãe: Olhe, tente ter mais confiança nas capacidades do Diogo, sim? E seja mais positiva. Nestas idades, não vale a pena apertar muito com eles. Só desmotiva. Esteja descansada, que ele está no bom caminho. O Diogo é um miúdo esperto, dócil, tão agradável… Isso é o mais importante, certo?
Professora: Certo…
Mãe: Pronto, então vá lá… Gostei muito desta conversa. Sempre que quiser falar comigo, esteja à-vontade. Liga para cá e pede para falar comigo, está bem? E muitos parabéns pelo trabalho que está a fazer com o Diogo, é um miúdo extraordinário! Eu gosto imenso dele!
 
[ E tudo isto seria perfeitamente normal, não fosse dar-se o caso de eu ter feito de professora e, a dita docente, ter feito de mãe. A clássica inversão dos papéis do polícia bom e do polícia mau, portanto. ]

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Tornar-se fundamentalista II

(porque me parece que ficaram algumas coisas por dizer)



Tornar-se adolescente é um processo complexo. Perfeitamente normal, absolutamente enternecedor. Ainda assim, complexo. Sobretudo quando cedo se apresenta um desenvolvimento bem acima da idade real. Uma capacidade de empatia e uma sensibilidade raras, que nos diferenciam de imediato dos pares.

Ser emigrante exige uma enorme capacidade de adaptação, que passa pela aceitação de novas referências culturais sem nunca perder de vista as nossas origens.

Ser vítima de uma constante tentativa de alienação parental por parte de um dos pais, que critica de forma profundamente fundamentalista o quadro de vida do outro, é dilacerante.

Se somarmos estes três factores, estamos perante um desafio considerável. Um desafio que poucos conseguiriam ultrapassar. O Diogo é um verdadeiro herói, que todos os dias dá mostras de uma coragem e de um equilíbrio sem precedentes. Sinto um orgulho imenso neste meu filho. O caminho que estamos a trilhar nem sempre é fácil, mas tenho a certeza absoluta que de terá um desfecho feliz.
 

[ No primeiro post que escrevi, pretendi também levantar o véu para o facto de que o tema da facilidade com que os adolescentes – os adolescentes emigrantes, em particular – podem ser seduzidos quando lhes acenam com certezas absolutas… a tal Verdade. E que isto é perigoso. Muitíssimo perigoso. E, infelizmente, actual. ]

sábado, 10 de janeiro de 2015

Os diplomatas

(é toda uma arte, minha gente)


Aqui há uns tempos, o Vasco chegou a casa muito aflito com um papel que tinha recebido na escola. Rezava assim:

Vasco, queres ser meu namorado? Rodeia sim ou não e, depois, entrega-mo. Se quiseres dizer-me mais alguma coisa, podes escrever também.

(a pontuação é da minha autoria, que a menina além de dar muitos erros também parece não gostar lá muito de sinais de pontuação.)

Perguntei-lhe se ele gostava da menina. Olhou para mim com ar de vómito, a revirar os olhos. “Pronto, então só tens de responder que ainda não estás interessado nessas coisas mas que, se estivesses, ela seria certamente a escolhida.” “Mas isso é mentira, mãe!”. Lá lhe expliquei que, às vezes, é preciso uma certa diplomacia para não magoar os sentimentos das raparigas.

Dias depois, ouvi-o suspirar. Que ainda tinha “aquele problema” por resolver. Aconselhei-o a despachar-se a dar uma resposta para não criar falsas expectativas à apaixonada.

Já me tinha esquecido da história, quando fui buscar o Vasco à escola e sinto alguém a puxar-me o casaco. “Olha lá, porque é que chamaste “vacheeecô” ao teu filho?!” Era a apaixonada pespineta.

Lembrei-me, então, de perguntar à coisa pequena pelos últimos desenvolvimentos. Que estava a dar um bocado de trabalho, mas que estava a correr tudo bem. Que não a tinha magoado, nem nada. Na verdade, nem sequer tinha chegado a dar-lhe uma resposta. Andava a evitá-la para ver se ela se esquecia. “Andas a evitá-la?! Mas ela não é tua colega de turma?” Pois, esse é exactamente o busílis da questão, não só a miúda é da turma dele, como está sentada mesmo na carteira do lado. Mas ele estava convicto de que andava a conseguir evitá-la muito bem.

 



Na semana passada, o Diogo contou-me que um colega tinha perguntado se podia vir dormir cá a casa este fim-de-semana. Sabendo o quanto ele detesta o miúdo em questão, ri-me. “Bem te disse que ele embirra contigo por inveja. O que ele queria mesmo era ser teu amigo.”

Lá me explicou que estava fora de questão, mas que tinha tentado ser diplomata. Disse-lhe que não era possível, porque na sexta-feira ia dormir a casa do Batiste. Mas o outro insistia. “E no sábado?” No sábado, vinha o Batiste dormir cá a casa. “E durante a semana?” Na segunda-feira, era a vez de o Sébastien vir dormir cá a casa. “Então, no próximo fim-de-semana?” Também não ia dar, infelizmente. Já estava combinado que o Théo vinha cá ficar na sexta-feira.

“Alto lá! Eu não sabia dessa! Que história é essa do Théo?! Não estarás a exagerar um bocadinho? Isto mais parece uma pousada da juventude, pá...” Largou a rir. Que era só para ver se pegava. Respondeu aquilo para se libertar do outro chato, mas que já agora estava a ver se o último arranjo pegava… diplomaticamente.


[ Entretanto, o Vasco decidiu tomar medidas mais drásticas em relação aos pedidos de namoro. Quando troquei a mochila, no início deste período – não preciso de dizer que a outra foi directamente para o lixo, pois não? – descobri vários papelinhos com corações fechados com fita-cola e envelopes coloridos por abrir. Perguntei-lhe o que raio era aquilo. “Não são meus, mãe! De certeza que são do Diogo, é melhor não abrirmos!” ]

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Tornar-se fundamentalista I

(porque é assim que começa o extremismo)


Olho para o meu filho crescido. Cada vez mais crescido. O Diogo mudou muito no último ano. Já tem tamanho de gente grande, mas a maturidade tarda. Um pé na infância, outro na adolescência. Ambos ainda longe da idade adulta, apesar de já calçar o 43.

Não é fácil crescer. É um processo feito de avanços e recuos, aos solavancos. Prego a fundo nas rectas. Curvas apertadas. Ponto morto. Terreno acidentado e obstáculos inesperados que é preciso driblar.

As borbulhas que se transformam em cadeias montanhosas intransponíveis. O mau cheiro que teima em aparecer, à prova de todos os desodorizantes. O cabelo indomável capaz de estragar o melhor despertar. Os movimentos que se tornam bruscos. A voz grossa que agride sem querer. As lágrimas que não se conseguem evitar. O riso descontrolado. E, por vezes, uma vontade enorme de fugir dali para fora. Daquele corpo que agora é dele, mas que não lhe pertence totalmente.

O meu filho já crescido começou a olhar para mim com outros olhos. A questionar o que antes era um dado adquirido. Eu e o meu modo de vida. Eu e a minha filosofia de vida. As minhas escolhas. E ainda bem, é sinal de que está a construir a sua própria personalidade. Por oposição à minha, num movimento de perpétuo desafio e conflito que é bastante saudável. Que reflecte o vínculo seguro que fomos construindo ao longo destes anos. Como um novo vértice daquela fase em que as crianças pequenas nos dizem que não gostam de nós quando são contrariadas. Um adolescente que se revolta contra o poder paterno instituído é um adolescente que está suficientemente seguro do amor que os pais lhe têm.

Mas é complicado estruturar uma identidade num país que não é o nosso. Aprender a dominar uma nova língua. Mergulhar noutra cultura. Aceitar outro povo. Uma nova geografia, clima, gastronomia. Hábitos. Uma outra forma de ser e de estar. Ser emigrante exige uma capacidade de adaptação que não se coaduna com as vistas curtas de um adolescente. Com a sua insegurança natural. O mundo é tão grande que dá medo. Os primeiros voos a solo pedem um ninho seguro no regresso. Quando esse ninho é dúplice, o processo de crescimento torna-se mais complexo.

Aos poucos, o Diogo começou a revoltar-se também contra o país que nos acolheu. Porque tudo é diferente, quando ele gostava mesmo era de conseguir ser o mais igual possível. Confundir-se com a massa. Porque a língua dele não é esta. Porque a cultura dele é diferente. Porque aqui está frio, muito frio. Lá, calor. Aos 13 anos, cinco graus de diferença é como opor a Antártida ao Sahara. Portugal ganhou uma áurea de Terra Prometida. E ele está disposto a fazer todos os sacrifícios para lá chegar. Até porque é lá que está Deus, todo-poderoso, cuja aprovação ainda precisa de conquistar.

Tudo isto seria perfeitamente normal se o discurso fosse o mesmo em ambos os lados da barricada. Se todos os adultos à sua volta tivessem uma posição coesa que servisse de rede de segurança. O mundo é imenso. A nossa nacionalidade é imutável, mas a nossa cidadania é cambiante. Aquilo que somos não se define pelo sítio onde vivemos. O racismo, a intolerância de qualquer espécie, a xenofobia, a segregação, nascem quando se semeia uma certeza absoluta no espírito de uma pessoa em formação. Uma Verdade. Tu e os teus são melhores do que todos os outros. Quem te disser o contrário está errado e precisa de ser convencido. Convertido. Pelo uso da força, se preciso for. Por todos os meios ao teu alcance. Porque os meios justificam sempre os fins em nome de um ideal inquestionável.

Por isso, quando dizem ao Diogo que ser imigrante é uma vergonha, tenho medo. Muito medo. Quando cospem um total desprezo pelo país que nos acolheu, porque fica no fim do mundo, porque é frio e cinzento, porque é pequenino e não tem História digna desse nome. Quando gozam com o facto de falarmos duas línguas em permanência. Quando lançam a dúvida sobre a minha competência parental para escolher o melhor país para vivermos. Como se houvesse um único país possível para se viver. Quando dizem que eu não trabalho onde há trabalho bem remunerado como tantos dos nossos compatriotas. Só esta última palavra já me dá arrepios. Quando tentam convencê-lo de que vivemos longe da nossa pátria porque não temos coragem nem capacidade para aproveitar as oportunidades magníficas que o nosso país está disposto a dar a quem se esforça. Transformando-nos, assim, em ratos em fuga, em cobardes, em seres inferiores. Quando lhe mostram que a roupa que vestimos espelha a vida miserável que temos. Que os gadgets que não compramos ilustram a nossa parca capacidade financeira. Confundindo atabalhoadamente ser e ter.

Tenho muito medo desta conversa de jihadista. Da Verdade. Da Luta. Desta chantagem sentimental que impinge uma filosofia de vida inquestionável e divina em troca da aprovação unânime do grupo. Como pode um adolescente opor-se a esta militância cerrada? Como pode qualquer adolescente imigrante não se deixar seduzir pelo apelo de uma causa nobre enraizada na sua cultura de origem tida como superior? O que podemos nós fazer, enquanto sociedade que assiste a actos bárbaros contra a liberdade, enquanto família que ficou na rectaguarda e que gere a imagem que a segunda geração de emigrantes tem do seu país, enquanto pais que emigraram em busca de outras oportunidades de vida? Nem melhores, nem piores. Por que raio se ficou com a ideia de que as pessoas emigram sempre em busca de melhores oportunidades? Pode-se partir apenas – ou também, ou ainda assim – à procura de experiências de vida diferentes. E isto é algo que também devemos explicar aos nossos adolescentes. Nunca se é demasiado velho para viver, para recomeçar. Nunca se é demasiado diferente do outro. Seja lá o que o “outro” for, será sempre o nosso semelhante.