quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Brinquedos para adultos

(onde se tenta mostrar uma espécie de OVNI)


 
Embora o seu verdadeiro nome seja Veículo Aéreo Não Tripulado (VANT) ou Veículo Aéreo Remotamente Pilotado (VARP), é mais conhecido como drone. Pode ter asas fixas como um avião ou asas giratórias, semelhantes às de um helicóptero. Inicialmente utilizado para fins militares, o seu uso alargou-se a diversas áreas. Alguns drones são especialmente concebidos para desenvolverem trabalhos específicos, outros são usados apenas como fonte de diversão. Os drones são actualmente muito utilizados para recolha de imagens aéreas em zonas de difícil acesso. Só para dar um exemplo, foram usados no Japão para filmar o interior dos reactores danificados durante o acidente de Fukushima e, no Brasil, durante o mundial de futebol.

O meu amor herdou esta paixão do pai, que tem diversos drones. No mês passado, inscreveu-se no curso para tirar a licença exigida na Bélgica para pilotar estes engenhos. Tem colegas de turma oriundos de universos são díspares como os Bombeiros, a Polícia, operadores de câmara de canais de televisão, agricultores, entrepreneurs, etc.

A febre dos drones também já chegou a nossa casa, embora eu tenha um bocado de medo daqueles bichos. O meu amor ofereceu um drone ao Vasco nos anos e foi amor à primeira vista. Na verdade, foi à segunda, porque o Diogo conseguiu dar logo cabo do primeiro drone. Vá... do "droninho", que aquilo não é bem um drone a sério. Apesar de tudo, além de caro, é um objecto extremamente sensível. E bastante perigoso. Não é de todo um brinquedo para crianças. Bom… pelos vistos, também não é um brinquedo para jovens. Portanto, eu apelidei-o de brinquedo para adultos. Aliás, os rapazes não estão autorizados a utilizá-lo sem a presença do meu amor. E no exterior.

Ora tentem lá encontrar o OVNI…


 


 
 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Alguns truques

(aprendidos a duras penas nos últimos três Invernos)


 
No Inverno, tentar sair de casa de casa com tempo. Muito tempo. Ou muita paciência. Nunca se sabe o que se pode encontrar pela frente. 


Até prova em contrário, a estrada é toda nossa. Ou seja, circular o mais possível no meio da via para maior segurança. Excepto se vier um carro na direcção contrária. Nesse caso, é melhor desviarmo-nos. Mas devagarinho.

 
Contrariar aquele instinto de condutor sabiamente desenvolvido ao longo dos anos: na dúvida, trava-se. Nunca travar. Nunca. Mesmo. Sob risco de assistirmos a uma cena altamente aterradora que é ver o nosso carro ganhar vida própria. E continuar a derrapar até ao monte de neve mais próximo, ignorando ostensivamente o nosso pé pesado no travão. Ou fazer peões no meio da estrada, o que é muito pior. Ou galgar uma rotunda, o que também não deixa de ser assustador. Neste caso, quem vinha em direcção contrária foi parar ao campo das vacas...

 

O ideal é manter uma grande distância do carro da frente. E, em caso de extrema necessidade, travar muito ligeiramente. Com a caixa de velocidades. Aliás, a velocidade é o segredo da condução na neve. Nas subidas, usa-se uma mudança acima do necessário. Nas descidas, uma mudança abaixo. Ou seja, o melhor é nunca deixar o carro muito à vontade. Caso contrário, ele pode sentir que está à vontadinha e perde-se o controlo do bicho. Em gíria equestre, dir-se-ia “não dar muita rédea”.


Tentar sempre seguir o trilho dos carros precedentes. O nosso carro não é um limpa-neves, é melhor não nos pormos a desbravar caminho. Uma auto-estrada de três vias reduz-se simplesmente a uma e segue tudo em filinha até ao destino. Calmamente. E, sim... por incrível que pareça, isto é mesmo uma auto-estrada de três vias...
 
 
Ah… por último, tentar resistir à tentação de tirar fotografias enquanto se conduz. Apesar dos 20 km/hora. Apesar de sabermos que somos perfeitamente capazes de segurar no volante e no telemóvel ao mesmo tempo. É só para evitar figuras tristes de emigrante tuga subjugado pelo cenário dantesco…

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Um adeus sentido

(após uma vida recheada de aventuras)


 

Ontem à noite, fechei a tampa da ventilação da caixa da Belle, quando o Vasco se foi deitar. Reparei que já tinha começado a roer aquele canto, o único ponto fraco desta nova caixa que desencantei há tão pouco tempo. Por isso, afastei a roda para ela não poder trepar. Enchi o comedouro com os seus cereais de cenoura preferidos. São uma guloseima dura como pedra, pensei que a manteria ocupada boa parte da noite. Fechei bem a tampa. E disse para mim mesma que, no dia seguinte, tinha de reparar o novo ponto de fuga em perspectiva.

Por volta da meia-noite, começámos a ouvir uns barulhos estranhos. Uma espécie de arranhadelas que pareciam vir do interior da parede da sala. Pensámos que estávamos a alucinar e procurámos uma explicação plausível. Eu achei que eram os cães da vizinha do lado a brincar. O meu amor pensou logo que era a Belle a roer a caixa. Foi espreitar o quarto do Vasco, mas não se ouvia barulho nenhum. Os ruídos esquisitos acabaram por acalmar. Fomos deitar-nos e fechámos o D. Fuas na sala de jantar, como sempre. Agora que está frio, ele deita-se na cama dele e temos de o tapar com uma manta. Faz sempre um grunhido de satisfação que dá vontade de rir.

Esta manhã, fui acordar o Vasco. Vi a tampa da ventilação da caixa da Belle escancarada. E um buraco suficientemente grande para ela passar. A caixa estava vazia. O Vasco começou logo a chorar. Recordei aquela vez em que a Belle fugiu e passou a noite roubar Sugos da mochila do Diogo. Ele riu-se. “É verdade, mãe. Acabámos por encontrá-la ferrada a dormir na gaveta das camisolas da minha cómoda”, lembrou-se. Tinha feito um ninho com etiquetas ratadas das camisolas do Vasco e dormia rodeada de pedaços de Sugos meio comidos.

Desta vez, não estava em nenhuma gaveta. Nem atrás dos móveis, nem dentro das caixas dos brinquedos. Revirámos o quarto e nada da Belle. O Vasco já não chorava, convencido de que o seu hamster tinha encontrado um esconderijo ainda mais ardiloso. O tempo passava. Mandei-o vestir-se e fui preparar o almoço para ele levar para a escola.

Quando cheguei à cozinha, vi-a. Estava morta, numa pequena poça de sangue. Em frente ao frigorífico. No andar de baixo. O cão nem lhe tocou, apesar de terem ficado fechados a noite toda nas mesmas duas divisões da casa. O que nos levou a pensar que morreu por envenenamento. Deve ter conseguido descer pela antiga chaminé ou por um tubo qualquer até cá abaixo. Os ruídos estranhos atrás da parede da sala, ontem à noite, devia ser ela a desbravar caminho. Sabe-se lá como. O proprietário avisou-nos que a casa era velha, que havia veneno para ratos escondido um pouco por toda a parte.

A Belle sobreviveu à queda da caixa até ao chão. Sobreviveu à passagem por trás das paredes, do segundo para o primeiro andar. Sobreviveu ao emaranhado das ligações eléctricas do fogão e do frigorífico encastrados. Sobreviveu a tudo, menos à gulodice que lhe era tão característica. Viveu uma vida longa, repleta de aventuras. Deu cabo de sete gaiolas, no total. Por vezes, fazia um barulho desgraçado durante a noite. Mas nós gostávamos muito dela e estamos tristes. Devia ter um ano quando a adoptámos, passou perto de dois connosco. Deixou de ser aquele animal arisco que mordia e guinchava sempre que lhe pegávamos. Tornou-se um ratinho dócil, que todos adoravam. Dava beijinhos. Passava a vida enfiada nos meus cachecóis e lenços, andava comigo para todo o lado. Fazia companhia ao Vasco, quando ele lia as suas BD antes de dormir. Trepava pelas páginas dos livros e metia-se na cama com ele, fazendo-lhe cócegas nos pés. Fazia companhia ao meu amor, que de vez em quando trabalhava no computador com a Belle enfiada no bolso da camisa. Fazia companhia ao Diogo, que volta e meia a enfiava na manga das camisolas. A Belle era apenas um hamster. Mas vai deixar muitas saudades.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Outra liberdade

(e as despedidas no passeio que improvisámos de carro,

 a caminho do aeroporto)

 

Decidimos sair de casa com muito tempo de antecedência. Tempo para experimentar novos caminhos. Para fazer turismo. Tempo para parar onde nos apetecesse. Para nos irmos despedindo devagarinho.

O Diogo quis despedir-se depressa, à porta de casa de um amigo. Não quis acompanhar-nos neste périplo pelas estradas nacionais do Luxemburgo até ao aeroporto. A idade já vai condicionando as demonstrações de afecto.

“Vais fazer-me falta”, disse o Vasco à avó. Eu ri-me da tradução literal do francês. “Vou sentir a tua falta”, corrigi.

Falámos do que sentimos mais falta. Acho importante falarmos sobre isso. Das saudades. Eu também digo que sinto saudades.

O Vasco sente saudades de comer pão com chouriço. E eu de beber uma bica. Sentimos falta do nosso peixe e de marisco. Somos dois bons apreciadores. Sinto falta de ler um jornal, em papel que se vira com o vento e mancha as mãos. Gostava que o Vasco lesse mais livros em português, mas ninguém lhos manda. Ele disse que também gostava de pastilhas Gorila. E de Sugos. Isso mandam-lhe, sortudo.

Falámos sobre a necessidade de falar as duas línguas em permanência. Por mais que as pessoas gozem connosco, por mais que seja difícil. Mas a minha madrasta concorda que o Vasco mantém um excelente domínio do português. E as notas, na escola, mostram que o francês dele está muito acima da média dos colegas. Mas é cansativo.

A minha madrasta queixava-se do frio. Disse que até podia sentir falta da gastronomia. Dos livros e dos jornais. Da nossa língua. Mas o que ia ser mesmo muito difícil, se fosse emigrante, seria suportar o clima. Os dias cinzentos, a falta de luz, o frio.

“Não”, disse eu. “Não é verdade. Acabamos por nos habituar a isso tudo, acredita.” E ela insistia que não. Que este frio matava uma pessoa. “O que me mata não é frio, a comida diferente. O que me mata não é a língua. Ou o facto de as pessoas serem tão diferentes. O que me mata são as saudades que sinto dos amigos e da família. Ninguém substitui a nossa própria família. Ninguém substitui os amigos de uma vida que deixámos para trás. A solidão é a única coisa que pesa verdadeiramente.”

À noite, fiquei à espera que o meu amor chegasse do curso. Fiquei quieta e enroscada, horas à espera. Sozinha, em silêncio. Quando ele  chegou, chorei finalmente. Nada consegue dissipar esta solidão negra que trago constantemente no coração, mas é muito bom poder chorá-la nos braços de alguém que amamos tanto. Adormeci assim, embalada. Com palavras meigas e festinhas no cabelo.
 
"Eu sei que te sentes sozinha, mas agora és livre. E as pessoas que mais amas estão, aqui, contigo", disse-me ele. É verdade. Mas ninguém me disse que a liberdade era tão pesada.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Liberdade à força

(onde se mostra que às vezes a falta de paciência também compensa)

 

Fiz tudo o que a literatura especializada aconselhava. Tentei seguir os magníficos tutoriais do YouTube. O raio dos pássaros nem vinham comer na minha mão, nem queriam aprender a voar. Bem podia deixar a gaiola aberta o dia todo, que nenhum se arriscava a sair dali pelo seu próprio pé. Vá, pela sua própria asa.

E, depois, perdi a paciência. Percebi que isto só ia lá com medidas drásticas. Decidi impor-lhes a liberdade que nunca tinham conhecido. Arranquei-os dos poleiros à força, com muitas bicadas à mistura. Passei horas com eles em pânico, enfiados no meu cachecol. Ensinei-os a voar à custa de muitas esborrachadelas contra a janela.

Ainda não vêm para a minha mão, mas já ficam quietos quando lhes pego para os tirar da gaiola. Ainda não saem sozinhos, mas já gostam de ficar nos meus ombros ou em cima da minha cabeça a namorar. Ainda não tentam voar por eles, mas quando dou um ligeiro impulso com a mão, já conseguem atravessar o quarto do Vasco. De vez em quando, ainda se esborracham contra a janela. Já caíram no aquário das tartarugas. Mas, agora, quando lhes estendo a mão para os salvar, já trepam para os meus dedos a piar baixinho. As bicadas tornaram-se meigas. O branco, o mais arisco, tenta dar-me beijinhos nas orelhas. Faz-me cócegas. O meu riso já não os assusta. Piam quando falo com eles.

Os homens da casa andam ciumentos, porque ainda não conseguiram ganhar a confiança dos pássaros. O D. Fuas cheira-me toda, meio desconfiado, e ignora-me, quando passo muito tempo com eles. Eu ando deliciada.
 

 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Um quarto

(ou um salto de fé)

 
Adiei este momento até onde pude. Nem sei bem porquê.
 
Em Malempré, dormia no sofá da sala. Muitas vezes me perguntaram com admiração: “Mas tu não tens quarto?!”. Não, não tinha. Propositadamente. Para mim, o quarto era símbolo de uma vida de casal infeliz e eu tinha decidido que esse era um capítulo completamente encerrado na minha vida. Mas, depois, apareceu o meu amor. Que foi ficando de mansinho, sem nunca se queixar da falta de privacidade. Do espaço exíguo. Que se ria e brincava, dizendo que compensávamos o que faltava com imaginação.
 
Adiei este momento até onde pude, mesmo quando nos mudámos para Vielsalm.
 
Era suposto o meu amor ficar por pouco tempo. Nenhum de nós queria saber quanto. Por isso, escolhemos o quarto mais pequenino da casa. O mais feio. Escuro. Uma espécie de câmara funerária claustrofóbica. Com papel de parede pintado de roxo a descascar. No chão, um velho linóleo amarelo.
 
Comprei um colchão de casal, mas não uma cama. Um suporte para cabides do Ikea servia de armário. Desencantei duas mesinhas de cabeceira por três euros numa venda de garagem. Improvisei uma cómoda com um móvel antigo que encontrei no sótão. Pintei tudo de branco, sem decapar. Uma só camada de tinta meio tosca para uniformizar aquele conjunto improvável.
 
Adiei este momento até onde pude e os meses foram passando. Até que tropecei numa cama. Literalmente.
 
Tinha ido com o Vasco à nossa loja preferida de coisas em segunda mão. Íamos em missão para o projecto do Home Cinema, porque nos delegaram a parte decorativa da coisa. Desencantámos um tapete de corda enorme e dois cadeirões de verga todos catitas. Deixei o Vasco a guardar os achados e fui chamar um homem para me ajudar a meter aquilo tudo no carro. E, nisto, tropecei numa cama. De madeira maciça, com as medidas exactas. Impecável. Linda. Fiquei ali especada a olhar para a cama. Até que o homem disse: “Faço-lhe 120 euros por tudo. Vá... 100, se levar isto tudo hoje.” Decidi aproveitar.
 
O meu amor foi buscar a cama, mais tarde. Insistiu em pagá-la. E depois deixámo-la desmontada vários dias à entrada.
 
Adiei este momento até onde pude. Nem sei bem porquê. Pensando bem, se calhar até sei. Adiei este momento até onde pude, porque me recuso a pensar em nós enquanto casal. Gosto de pensar que somos apenas namorados. E os namorados partilham espaços, não dividem o quarto. Partilham momentos, não uma vida.
 
Adiei este momento até onde pude também pelo meu amor. Que nunca partilhou nem vida, nem casa, nem quarto. Muito menos filhos.
 
Adiei este momento até onde pude porque ambos precisámos de tempo para combater os nossos fantasmas, em silêncio. Para aceitar que o facto de sermos namorados – namorados que dividem quarto – não nos torna menos livres. O amor continua a não ser uma obrigação, uma amarra, uma prisão. Uma fonte de infelicidade. O amor continua a ser eterno enquanto dura, como dizia Vinícius. Mas agora tem um poiso.
 
O meu amor passou dois dias fora, porque anda a fazer uma formação. Achei que era o momento ideal, embora não tivesse muito tempo. Mas eu precisava de fazer isto sozinha. Era o meu projecto. Pedi emprestado o escadote e material de obras ao proprietário. Lavei paredes e tectos e janelas. Pintei o quarto de cor de amêndoa. Era o que dizia na lata e é verdade. É bem bonita. E suave. Arranquei três camadas de linóleo. E centenas de pregos minúsculos sem cabeça. Deixei à vista o chão de tábua corrida. Lindíssimo. Lixei e dei outra demão no móvel antigo. Envernizei um dos troncos que vieram de Malempré. Comprei outra mesinha de cabeceira. Pus umas cortinas...
 
No meio disto, fui com o Diogo ao tribunal e passámos uma tarde deliciosa os dois juntos. O melhor amigo dele foi lá dormir a casa. Desenrasquei o jantar no turco da esquina. Fui buscar a minha madrasta ao aeroporto do Luxemburgo e apanhei um trânsito medonho. E o meu amor apareceu. Trazia sushi para o jantar e a quarta série da “Guerra dos Tronos” para o serão. Era dia dos namorados.
 
Mostrei-lhe a surpresa incompleta. Ajudou-me a montar a cama, ainda meio surpreendido. A fazê-la de lavado com um novo edredão, nos mesmos tons da decoração do nosso quarto. O nosso quarto... Tão bonito. Perfeito.“Como é que conseguiste fazer isto tudo sozinha em tão pouco tempo?!”, repetia o meu amor a rir. Eu não lhe disse, mas acho que dois anos é muito tempo.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O projecto

(cuja folha de encargos não pára de crescer)




Se há coisa que os belgas prezam é um bom projecto. Não conheço um único belga que não tenha um projecto em curso. De maior ou menor dimensão. A longo, médio ou curto prazo. Mais ou menos dispendioso. São fervorosos adeptos do “faça você mesmo”. Normalmente, um projecto não tem apenas um objectivo construtivo, ou seja, não se destina somente a construir ou a recuperar algo. Tem igualmente um objectivo englobante. À volta de um determinado projecto, unem-se alegremente casais, filhos, família e até mesmo, se preciso for, amigos e vizinhos. O projecto é, então, uma espécie de ocupação de tempos livres colectiva e unificadora. Pode passar pela construção de toda uma casa ou apenas pela reparação de um simples telhado, pela recuperação de um carro ou apenas de um motor, pela instalação de um sistema de energia alimentado por painéis solares, pela construção de uma horta biológica, etc.

Lá em casa ainda não tinha aparecido nenhum projecto à séria. Não por falta de ideias estapafúrdias do belga de serviço, mas por falta de quórum. Desde que nos mudámos para Vielsalm que o meu amor anda cheio de vontade de iniciar um “projecto familiar”. Felizmente, nenhuma das suas ideias mirabolantes conseguiu conquistar a unanimidade da família. Ou uma maioria absoluta, vá… O Vasco adorou a ideia da construção de um lago de patos, mas o Diogo vetou categoricamente. E eu, que já estava a imaginar a carnificina quando o D. Fuas apanhasse os pobres patos a jeito, suspirei de alívio. O Diogo aprovou entusiasticamente o projecto de criação de coelhos para vender, mas eu avisei logo que seria incapaz de criar animais para comer. E o Vasco ficou com os olhos cheios de lágrimas só de pensar nisso. Todos os projectos do meu amor foram, então, sucessivamente recusados. E eu comecei a pensar que ele tinha finalmente desistido.

Infelizmente, a última reunião familiar ocorreu estrategicamente na minha ausência e o novo projecto conquistou a maioria presente. Quando cheguei, já a ideia tinha germinado e não consegui impor o meu poder de veto. A bem dizer da verdade, até já havia uma lista de tarefas bem definidas onde eu estava incluída. O meu amor achou que o adolescente resmungão precisava de um projecto “de homens”, que o obrigasse a arregaçar as mangas e a meter mãos à obra. Que substituísse o mundo virtual por uma carga de trabalhos bem real. Que o ensinasse que o esforço compensa. E, assim, nasceu o “Projecto Home Cinema”. No sótão. Onde eu jurei ao proprietário que não ia fazer nada, porque não está coberto pelo seguro. Bom… também tinha jurado que só tínhamos um cãozinho velhote e, entretanto, a casa foi sendo ocupada por diferentes espécies animais.

O projecto foi-me inicialmente apresentado como sendo “muito simples”. E económico. Bastava limpar o sótão, meter umas placas isolantes, um projector e uma tela. E pronto! Ah… e um leitor DVD. Um leitor DVD altamente sofisticado, claro. Já agora, um sistema de som de qualidade. Cinco colunas espalhadas estrategicamente. Talvez um tapete grande que cobrisse o soalho de madeira antigo e que isolasse ainda mais o sótão. Bom, talvez fosse melhor começar por isolar a única janela que… hum… parece que… hum… deixa entrar alguma chuva. Muita chuva. Depois, seria preciso arranjar uns assentos. Não muito altos. Mas confortáveis. Quatro. Cinco, já a contar com as visitas. Umas almofadas aqui e ali. Não esquecer os armários para arrumar a máquina das pipocas e os DVD. Uns armários a condizer com a decoração kitsch da sala de cinema, bem entendido. Uns posters grandes de filmes ficavam mesmo a matar. Talvez até mesmo forrar o sótão todo com posters. Giro, giro, era começar logo nas escadas do terceiro andar que conduzem à nossa futura sala de cinema.

Os trabalhos começaram há duas semanas. Por mera coincidência, quando eu estava distraída na recta final da tradução do livro. O projecto megalómano parece estar longe do fim. Muito longe. Mas já tenho um poster gigante do Hobbit no cimo das escadas. E amanhã vêm entregar as placas isolantes. Um camião vem fazer a entrega, porque diz que o volume é considerável. Estou seriamente a pensar numa maneira de os denunciar anonimamente ao meu senhorio antes que seja tarde demais...

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Lembrar-me de mim

(e de uns velhos All Star demasiado grandes)


 
Nunca fui uma adolescente que ligasse muito a marcas até andar num colégio para meninos finos, quando fiz um ano de intercâmbio na Bélgica. A mania passou-me quando comecei a comprar roupa com o meu dinheiro (e a pensar pela minha própria cabeça). Mas ainda durou uns anos. O meu pai reclamava, questionava, indignava-se, mas acabava sempre por ceder. Uma das compras que mais discussão deu foram os primeiros ténis-bota All Star em pele que foram lançados em Portugal. Custaram uma fortuna e tive de esperar semanas pela encomenda feita um pouco às cegas, na loja do costume. Infelizmente, o número mais pequeno que chegou era um 38. Durante largos meses, fui uma adolescente feliz e trapalhona, sempre a cair, porque andava feita palhaça com uns pés enormes.

Lembrei-me desta história no outro dia, quando me passei e fui comprar calçado para o Diogo. Depois de um braço de ferro que me deixou desgastada. Andávamos desde o Natal a discutir, todos os dias. Ele insistia em ir para a escola de ténis no meio da neve, eu tentava convencê-lo a comprar um par de botas quentes e impermeáveis. Até que chegou a casa, num final de tarde, com os pés completamente encharcados e cheio de tosse. E eu atingi o meu limite. Deixei-o no solfejo e, sem admitir discussões, fui ao Luxemburgo comprar umas botas. Fui sozinha de propósito, para evitar as cenas do costume. Porque botas da neve é o que usam os miúdos da Primária. Porque botas de pele é coisa de velho. Porque as botas da Decathlon são “outdoor”. E já se sabe que ninguém pode ir para a escola com aquilo nos pés que arruína por completo a imagem. Porque ténis-bota é coisa de pessoal das barracas. Porque sapatos é o que usam os profs e também não serve. É pior que à velho. Porque, porque, porque…

Cheguei à loja furiosa, disposta a comprar um bom par de botas. Afinal de contas a mãe sou eu, ele tem mais é de fazer o que eu mando. Se a única coisa que sobrasse no armário fossem umas botas, ele teria mesmo de calçar aquilo se quisesse ir para a escola. Ou, então, que fosse descalço, porque a porcaria dos ténis só voltariam a aparecer aos fins-de-semana. A minha paciência para esquisitices de adolescente mimado tinha-se esgotado.

Mas depois vi uns ténis-bota All Star em pele. Caros. Muito caros. Com pêlo de ovelha por dentro e impermeáveis. Termo-coisos, isto é, que conservam o calor do corpo. Com uma sola grossa para esmagar a neve. E lembrei-me de mim, adolescente mimada. Lembrei-me de mim, a discutir com o meu pai que nunca me disse que não. Lembrei-me de mim, a tentar enquadrar-me num colégio de meninos finos. No mesmo colégio onde o Diogo anda, um Sacré-Coeur. De repente, tentei olhar em volta… não com os meus olhos de mãe, mas com os olhos de filho. E, de facto, todos os outros pares de sapatos me pareceram feios e desadequados. Só aqueles brilhavam. Peguei na caixa e, antes que me arrependesse, paguei sem ver.

O Diogo foi amoroso, quando cheguei a casa já mais calma com os sapatos novos. Devia estar a tremer de medo quando lhe entreguei o saco, mas agradeceu e prometeu calçar o que eu tivesse comprado. E depois viu os All Star. Tão adolescente. Tão giros. Tão fora do vulgar. Um piscar de olho à miúda mimada que eu também fui. Que me permitiram ser até ter maturidade para deixar de dar importâncias às aparências. Um justo compromisso entre o que ele gostaria e o que eu queria. Que tiveram o sucesso esperado na escola. E que o fizeram pôr completamente de lado os ténis, inclusivamente ao fim-de-semana. Que me arruinaram o mês, mas que o encheram de felicidade.
 


[ Estou a aprender a ser mãe de um adolescente. E isto não é fácil, tenho sempre muitas dúvidas. Não tenho outro ponto de comparação, excepto a minha própria adolescência. Há muita coisa que gostaria de transmitir ao Diogo mas, às vezes, também sabe bem apenas mimá-lo. ]

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Lobo e raposa na neve

(onde se apresenta gente do bem)


 
Tenho passado os meus dias (e noites) atrás do computador, a trabalhar. Mas não queria deixar de assinalar o nosso aniversário. Até porque nunca conseguiria fazer todos estes malabarismos se não fosse o meu amor, a minha rede de segurança que me impede de vacilar. Não queria nada de espectacular, apenas um pequeno gesto de gratidão.

E foi exactamente atrás do computador que encontrei a prenda ideal para o meu amor. Eu, que sou contra os cartões de crédito e que nunca compro nada pela internet. Mas uma amiga partilhou há uns tempos uma aguarela do ‘Mirtilo for Babies’ no Facebook. E fiquei encantada com a doçura daquelas imagens. Lembrei-me de lhes mandar um pedido de ajuda na segunda-feira passada. Um bocadinho em cima da hora, é certo. Tenho vivido mais ao sabor do número de páginas que consigo traduzir diariamente do que ao sabor do calendário.

Propus pagar uma taxa pela urgência do meu pedido, que tinha de chegar até sexta-feira. Passei tantos anos a trabalhar sobre pressão para clientes que se lembravam sempre de pedir trabalhos para ontem, como se pudéssemos pôr a nossa vida em pausa para ceder às necessidades e urgências alheias, que me apeteceu mesmo oferecer esta justa recompensa. Trocámos breves e-mails. Acho que fiz um pedido simples. Uma aguarela de um lobo e de uma raposa apaixonados, apenas isso. E mandei-lhes o link do post onde contava o início deste amor. Se fosse preciso inspiração, se houvesse paciência, se sobrasse tempo... Mal eu sabia que tempo era coisa que o casal por trás do 'Mirtilo for Babies' não tinha mesmo.

Fiz o pagamento nessa mesma noite. No dia seguinte, recebi por e-mail uma fotografia da minha aguarela. E fiquei derretida, tinham captado exactamente o que eu pretendia, mas não tinha conseguido verbalizar: o instante mágico em que nos apaixonámos. Estava aprovadíssimo. Seguiu de imediato pelo correio. No dia seguinte, nascia a Teresa, a “baby mirtilo”.

Na sexta-feira, chegou a minha aguarela. Numa embalagem lindíssima, cheia de pormenores amorosos. E ainda era mais bonita ao vivo. Delicada. Os bosques sob a neve, o caminho que fizemos, o amor que surgia… Até tiveram o cuidado de pintar umas clementinas, num piscar de olho ao post que eu tinha escrito.

Passei o dia em casa a trabalhar, com a aguarela pousada ao meu lado, à espera que o meu amor chegasse. Não consegui esperar por Domingo. E ele quando a viu, não sabendo do que se tratava, percebeu de imediato… nós, há dois anos atrás, a passear naquela longa noite pelos bosques cheios de neve de Malempré. O lobo e a raposa na neve.

Não há palavras de agradecimento, nem dinheiro que pague o amor que se põe num trabalho. O cuidado. O talento de transporem as minhas palavras em imagens. Não os conheço pessoalmente, mas só pode ser gente do bem.



domingo, 1 de fevereiro de 2015

Do amor espantado

(quando dois anos representam toda uma nova vida)

 

Quando nos conhecemos, ele estava prestes a iniciar a viagem da sua vida. Só por isso o deixei entrar na minha. Porque pensei que era por pouco tempo. Mas, por mim, acabou por ficar.

Quando nos conhecemos, ele não gostava de crianças. Só por isso lhe apresentei os meus filhos sem medo. Mas, por mim, aprendeu a conhecê-los. Apaixonou-se também por eles, que trata como se fossem seus. Porque são seus no coração. Porque são “os rapazes”, únicos no mundo. No nosso mundo.

Quando nos conhecemos, ele era um solitário. Vivia sem tripulação, sem carga, sem amarras, ao sabor das marés. Mas, por nós, lançou âncora pela primeira vez. Não deve ser fácil, nós não somos fáceis. A nossa vida não é fácil. E, no entanto, ele aqui está. É o homem do leme, com os pés bem assentes em terra firme.

Faz hoje dois anos que lhe abri a porta da minha casa, da minha família, do meu coração. Abri-a devagarinho, com cuidado. E ele entrou. Com a discrição que lhe é característica. E fechou-a docemente, mas com firmeza. Sarou feridas. Reconstruiu. Transformou a nossa vida. Somos hoje, todos nós, pessoas infinitamente melhores. Graças a este amor imenso que não cessa de me espantar.