quarta-feira, 29 de abril de 2015

Sistema de troca local

(porque também há comércio sem dinheiro)


 
No Domingo passado, fomos a um mercado gratuito em Marche-en-Famenne, organizado pelo SEL - Système d'Echange Local. Já tinha andado a bisbilhotar os diferentes sites do grupo e queria muito vê-los em acção, antes de me inscrever no Sel da nossa região. Gostei do que li, porque cada vez mais me identifico com a ideia de um sistema de trocas local de bens e serviços que não envolva dinheiro e ponha em contacto os habitantes de zonas limítrofes… mas uma coisa é gostar da filosofia do grupo, outra coisa é gostar das pessoas envolvidas. Portanto, nada como fazer de cliente-mistério. E, de facto, fiquei encantada com a organização, a amabilidade das pessoas, a tolerância, a confiança no livre-arbítrio de cada um.

O mercado gratuito é uma espécie de venda de garagem gigantesca, onde cada um expõe produtos novos ou usados que já não quer e, em contrapartida, pode levar o que quiser. No entanto, não é obrigatório fazer trocas, ou seja, pode-se levar o que se precisar mesmo que não se tenha trazido nada para dar. A ideia é evitar o desperdício, incentivar a recuperação e provar que é possível fazer comércio sem usar dinheiro. Havia bancas de roupa, loiça, livros, brinquedos, electrodomésticos, material informático, plantas, comida, etc. No final, o que restar é entregue a instituições de solidariedade locais.

Obviamente, a experiência deixou o Vasco todo animado… e o Diogo bastante constrangido. Apesar de termos levado imensos livros, brinquedos e jogos da wii praticamente novos para dar, o Diogo não se sentia bem em “trazer o que lhe apetecesse”. Dizia que não era justo, que sentia que estava a roubar. “É como se fôssemos pobres!”, exclamava indignado. Isto só prova que, a partir de certa idade, já estamos completamente formatados para comprar, para gastar dinheiro. Trocar ainda é aceitável, mas aproveitar uma dádiva é inconcebível.

A vergonha do meu filho crescido foi passando à medida que ia encontrando livros que lhe interessavam. Montes e montes de livros, que não pareciam ter muita clientela interessada. Tanto ele como o meu amor só quiseram trazer livros. Eu ganhei o dia quando desencantei umas Levi’s novas do meu número. Há tantos anos que não tenho umas Levi’s! Ainda hesitei na banca dos candeeiros, mas acabei por não trazer nenhum. Não achei justo estar a trazer uma coisa que podia fazer falta a alguém, só para aproveitar os fios para fazer os meus próprios candeeiros. O Vasco foi toda uma outra história… A coisa pequena tem sempre olho para descobrir objectos estranhos nas vendas de garagem. Aliás, acho que o Diogo acabou por transferir para o irmão a vergonha que sentia por estar a ensacar livros como se não houvesse amanhã. Volta e meia, dizia-me: “Ó mãe, por favor, diz-lhe para parar! Já viste o que ele tem na mão?!” Sem nunca se afastar muito de nós, o Vasco conseguiu desencantar um manual antigo para aprender grego, uma pedra com um relógio embutido, um sol e uma lua em gesso e uma arca de folha para guardar os seus tesouros. Saiu de lá com um sorriso de felicidade estampado na cara imunda.

Penso que o Vasco andou tão entretido nas suas pesquisas, que nem ligou muito ao que se passava à sua volta. Mas o Diogo já tem maturidade para perceber que, além das pessoas que partilham a nossa filosofia de vida e que passeavam tranquilamente de banca em banca, havia ali gente verdadeiramente necessitada. Perto de Marche há dois centros de refugiados que aproveitaram a ocasião para levar gratuitamente objectos de primeira necessidade. E eu, que ainda há tão pouco tempo também estava a recomeçar uma vida do zero com duas crianças, sem dinheiro, sem nada, comovi-me ao ver mulheres com bebés às costas e um alguidar na cabeça cheio de tachos, toalhas e tupperwares. Arrependi-me de ter levado apenas os objectos que já não nos fazem falta, nesta fase da nossa vida. Arrependi-me de não ter levado também objectos que fizeram parte de uma outra fase da nossa história, que vou guardando num caixote sempre que os consigo substituir por outros melhores, mais novos. Foram coisas que me deram, aqui e ali, para desenrascar nos primeiros tempos e que guardo com carinho, porque nunca me esqueço do jeito que me fizeram. Por termos sempre tanto pudor em oferecer o que já não nos serve a nós, perdi uma boa oportunidade de ajudar alguém. Mais oportunidades virão certamente, pois inscrevi-me hoje no Sel’Ardenne. A minha conta está a zeros, mas espero em breve começar amealhar rebentos, a moeda de troca do grupo, oferecendo o meu tempo e conhecimentos. E tenho esperança de, em troca, conhecer alguém que me possa ajudar a fazer uma horta. Na pior das hipóteses, conheço pessoas novas... que também é um bem essencial que faz muita falta e não envolve dinheiro.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Lanches saudáveis para levar para a escola

(ou, no nosso caso, para o trabalho… :) )




Aos poucos, a vida retoma o seu curso habitual. A tempestade passou definitivamente. Em nossa casa, vivem-se novos tempos. Uma espécie de Primavera, dentro e fora de portas. Os dias são mais longos, mais quentes. Passamos muito tempo juntos, lá fora, a trabalhar no quintal. Há mais risos, mais alegria, mais conversa. Mais momentos a quatro. Sinto que começamos finalmente a aproveitar o ninho que fomos construindo aos poucos, durante estes difíceis meses de Inverno. Tem sido muito bom assistir ao crescimento desta família, onde cada um parece ter encontrado o seu lugar.

Agora que já posso concentrar a minha energia em problemas mais triviais, decidi mudar certos aspectos do nosso quotidiano com os quais não estava completamente satisfeita. A começar pela nossa alimentação. Acho que comemos de forma bastante saudável, mas gostaria de melhorar as refeições que fazemos fora de casa. Uma vez que, na Bélgica, se come apenas sandes e sopa ao almoço, os lanches ficam muito limitados. A verdade é que os miúdos acabam por comer mais bolachas do que o desejado, porque não há o hábito de comer pão a meio da manhã ou da tarde. Snacks, batatas-fritas e coca-colas são normalmente proibidos nas escolas primárias… mas já percebi que, depois, os miúdos tendem a vingar-se, quando entram no secundário e deixa de haver controlo sobre o que trazem de casa. Para todos os efeitos, as bolachas, por aqui, são consideradas um mal menor. Aliás, é alucinante a quantidade de marcas que vendem produtos já divididos em várias embalagens unitárias para facilitar o trabalho dos pais. Nos supermercados, há corredores inteiros de bolachas para levar para a escola. Infelizmente, é muito difícil impingir-lhes fruta, quando todos os outros miúdos só comem bolachas e outras porcarias do género. Portanto, decidi que, se não posso vencê-los, é melhor juntar-me a eles… à minha maneira, claro.

A partir de agora, vou passar a dedicar os fins de tarde de Domingo a preparar os lanches da semana. A ideia é fazer coisas doces, que não destoem muito daquilo que os colegas comem: bolos, bolachas, muffins, barras de cereais… a minha imaginação mirabolante é o limite. O segredo é diminuir drasticamente o consumo o açúcar refinado e, principalmente, substituí-lo por outras formas de adoçante mais saudáveis (mel, açúcar mascavado, fruta, etc.).

Antes de erradicar o consumo de bolachas, comecei por ler os rótulos com eles e trocar as indicações por miúdos, isto é, por pacotes de açúcar. A medida não é lá muito científica, mas eles visualizam-na mais facilmente. Fui buscar a caixa das bolachas e pedi a cada um que me dissesse o que tinha comido naquele dia. Juntámos um refrigerante, no caso do Diogo, e um pacote de leite, no caso do Vasco. Chegámos à conclusão que diariamente ultrapassavam os oito ou nove pacotes de açúcar… sem contar com os doces, propriamente ditos! Apesar de ser muito raro ter doces em casa, de vez em quando comem chocolate, gomas ou rebuçados. Até porque temos uma vizinha brasileira que é um amor de pessoa e que passa a vida a mimá-los. Acho que a minha demonstração os chocou um bocadinho, porque eles próprios começaram logo a pensar no que podiam fazer para reduzir o consumo de açúcar. Outra coisa que os marcou foi mostrar-lhe os pães-de-leite industrializados que por vezes também levam para a escola. A embalagem tinha sido aberta uma semana antes de irem de férias para Portugal. Um mês depois, os pães-de-leite continuavam fofos e prontos para consumo, sem quaisquer sinais de bolor. Ou seja, a quantidade de conservantes que eles andavam a consumir também deixava muito a desejar. Combinámos, então, que eu iria passar a fazer os lanches para levarem para a escola durante a semana.

Ontem, deitei mãos ao trabalho. Sinceramente, não demorei tanto tempo como inicialmente julguei que fosse demorar. E, pelo meio, ainda aproveitei para fazer o jantar. Depois de fazer as contas por alto, cheguei à conclusão que, em termos financeiros, também deve compensar fazer lanches caseiros. Tenho de confirmar melhor, nas próximas semanas. Desta vez, limitei-me a utilizar o que tinha em casa. Comecei por fazer 12 barras de cereais, adoçadas apenas com duas colheres de mel e uma banana. Acondicionadas em saquinhos individuais, mantém-se frescas durante uma semana. Enquanto coziam, fiz um bolo de limão com uma chávena e meia de açúcar amarelo. Este é para cortar às fatias e levar em caixinhas para a escola, nos primeiros dois dias. A seguir, fiz 12 muffins de banana, praticamente sem açúcar. Numa fornada, juntei pepitas de chocolate preto e, noutra, juntei nozes partidas. Vou congelá-los para poderem levar para a escola no final da semana (e evitar que desapareçam entretanto). Por fim, lembrei-me de fazer muffins de atum com cenoura, para levarem como almoço hoje. Não provei porque detesto atum, mas os homens da casa comeram logo uns quantos antes do jantar e elogiaram a invenção. Para a semana, hei-de voltar a fazer qualquer coisa do género. Por enquanto, resta-me ver quanto tempo dura esta comezaina toda nas mãos das minhas marabuntas preferidas…








quinta-feira, 23 de abril de 2015

Façamos um suponhamos…

(sonhei que tinha recebido um e-mail tão ridículo que nem resposta merecia, mas não podia desperdiçar o seu imenso potencial literário)


 

Ora, então, muito boa tarde!

Aguardo ansiosamente que te pronuncies sobre a sentença, como prometido… até porque pensava que apenas os juízes podiam fazê-lo. Sempre achei que a única forma que o comum dos mortais tinha de se pronunciar sobre uma decisão jurídica era interpondo recurso. Agradeço-te imenso a correcção.

Aproveito também para agradecer a sugestão de reprimenda que tenho de dar a minha advogada, que teve acesso à decisão do tribunal três dias depois de a acta do julgamento ter sido lavrada. Uma pessoa a pensar que está a lidar com uma profissional séria e vai-se a ver é uma malandra de primeira que tem acesso a informações confidenciais sabe-se lá como. Prometo que vou seguir a sugestão e passar a ter mais cuidado com estas questões legais.

Quando à viagem de regresso dos rapazes, estou perfeitamente de acordo: o Vasco não pode viajar de avião vestido de fato treino. É uma autêntica vergonha! A partir de agora, passarei a mandá-lo de fato e gravata para estar à altura de tão selecto meio de transporte. Agradeço o cuidado posto no envio do dito fato de treino, que vinha tão bem engomado. Sou uma desleixada de primeira! Não só mando o miúdo nesses preparos, como nem lhe sei engomar a roupa… pfff! Já agora, se me é permitido, gostaria apenas de esclarecer que as meias número 23-26 que o Vasco trazia calçadas não me pertencem. Sei que sou má mãe e que as meias que mandei não eram de marca… mas, pelo menos, eram um 34 e não lhe apertavam os pés.

Fico imensamente feliz por saber que os meus filhos passaram umas excelentes férias. De facto, como bem dizes, a batalha contra o vento que travei para pedir uma pensão de alimentos deve tê-los deixado completamente desnorteados. Pobres crianças, que injustiça! Garanto que nunca mais os farei passar por esse infortúnio. Graças a Deus, existe quem ponha o seu bem-estar em primeiro lugar, quem lhes dê o amor e respeito que, manifestamente, sou incapaz de lhes oferecer. Tenho a certeza de que a minha família agradecerá efusivamente quando souber que os consideras como membros da tua própria família. Haja amor! Fiquei muitíssimo espantada ao descobrir que a minha irmã do meio é bem-educada e manda cumprimentos! Afinal, sempre há esperança nessa rapariga! De facto, sinto-me muito triste e sozinha aqui, no exílio, longe dessa família unida, como tão bem explicaste. Prometo fazer o que pedes e tentar aprender que agir bem trás sempre bons resultados. Aliás, também tenho de aprender a escrever correctamente com urgência! E a usar o novo acordo ortográfico para poder justificar os meus erros (mesmo os sintácticos ou semânticos).

Não fazia ideia nenhuma que, no centro de Lisboa, se respirava ar puro do mar que tão bem faz aos pulmões… Aposto que também abre o apetite e que é por isso que os rapazes vão tantas vezes comer ao McDonalds! Ainda bem que vão intercalando essa alimentação saudável com a sopa de gengibre com que curaste a constipação do Diogo. Tens toda a razão, xaropes para a tosse e pingos no nariz são uma medicamentação completamente desnecessária nos dias que correm. Eu e a minha mania dos químicos! Por favor, manda-me já a receita. Já agora, a sopa de gengibre também serve para a tosse alérgica ou é só para tomar quando o Diogo estiver constipado?

Gostaria de aproveitar ainda para perguntar qual o comprimento de cabelos mais adequado. Certamente há uma medida ditada pela etiqueta que me escapa. Peço imensa desculpa pelo desleixo! Aliás, fiquei morta de vergonha quando disseste que o Vasco ia com as unhas enormes. Sacana do miúdo, pedi-lhe que as roesse no avião, mas ele deve ter-se esquecido! Pelo menos, isso permitiu-te conquistar o título de “melhor cortador de unhas do mundo”, que te deixou tão vaidoso! Por mais que me custe, vejo-me obrigada a dar-te os meus sinceros parabéns.

Agradeço-te a explicação dada sobre esse flagelo que tento infligir quotidianamente aos meus pobres filhos. Graças a ti, fiquei a saber que a alienação parental é uma das maiores variantes de violência psicológica. Prometo nunca mais ir por esse caminho, de modo a evitar mostrar quem verdadeiramente sou aos olhos de toda a humanidade (e até mesmo dos extraterrestres).

Dei pulos de alegria quando soube que leste um livro inteiro em português com o Vasco! Inteiro, hein?! Uau… deve ter sido um esforço inimaginável! E que felicidade ao ver que ele trouxe mais dois na mala para eu ler com ele! Infelizmente, não são o estilo de livro que o rapaz mais gosta, mas está descansado que vou obrigá-lo, nem que seja ao estalo. Aliás, aproveito para responder ao teu pedido urgente de informações: o Vasco vai passar a fazer duas horas diárias de exercícios nos livros escolares em português. Acho que as oito horas que passa na escola, mais os trabalhos que faz depois em casa, são claramente insuficientes. É um preguiçoso! A partir de agora, vai passar a trabalhar 11 horas por dia e acabou-se a conversa!

Lamento dizer que fiquei estupefacta com o grave problema que me colocas. O Vasco ainda não sabe nadar bem?! As aulas de natação na escola são insuficientes?! Apesar de saber que não o vês a nadar há mais de 8 meses, longe de mim duvidar. Pensava sinceramente que ele já sabia… no ano passado, recebeu um certificado a dizer que já conseguia nadar 50 metros. São uns gatunos! Fazes muito bem em não pagar o 1.10€ por semana que eles exigem! É um roubo! Proponho meter os três professores de natação que ele já teve aqui, na Bélgica, em tribunal. E, já agora, o Ministério da Educação, por ser cúmplice nesta vigarice. Mas não te preocupes, para além das 11 horas de estudo diárias, do solfejo, das aulas de violino e do ballet, o Vasco vai passar a ter aulas de natação também fora da escola. Nem que tenha de acordar às 6h da manhã… quem madruga, Deus ajuda, não é verdade? No pior dos casos, tiro-o do ballet. Tens toda a razão, aquilo são influências nefastas do Billy Elliot e mais nada! Escusas de te preocupar com míseros detalhes de ordem financeira, quem paga integralmente quatro actividades, também paga cinco! E o meu patrão tem de compreender que tenho de deixar de trabalhar para poder acompanhar este marinheiro de água doce. É que se não fosses tu, nem me lembraria do risco enorme que o Vasco corre por morarmos perto de um lago. Só andam por lá patos, mas nunca se sabe se o miúdo não se lembra de se mandar à água quando o calor infernal típico das Ardenas apertar!

O próximo problema que levantas é, sem dúvida, o mais vergonhoso para a minha pessoa. Sou obrigada a concordar contigo e a declarar que sou uma incompetente a educar o meu filho mais novo. Tens toda a razão, não lhe sei passar as regras mínimas. Eu tento, juro que sim… mas não consigo. Não tenho resposta para te dar, desculpa. Não consigo explicar o porquê de o Vasco ainda comer com as mãos, de meter os dedos dentro da boca e de falar com a boca cheia. E esqueceste-te de referir os puns à mesa. É um javardo, não há outra palavra. Eu até gosto do miúdo, mas é um autêntico porco. No entanto, lamento informar-te que a educação extremosa que lhe tentam dar nesse sentido em Portugal não surtiu grande efeito… Ainda ontem o vi tirar a cebola do prato com os dedos. Felizmente, usou apenas dois dedos, como manda a etiqueta. Mas, pronto, sei que é grave. Vou passar a flagelá-lo todos os dias à mesa. Olha… com um bocado de sorte, vai chegar a casa tão cansado das 11 horas de estudo seguidas e das suas inúmeras actividades, que adormece sem jantar e o problema fica automaticamente resolvido.

Já escrevi à ortodontista do Vasco a pedir explicações sobre a ausência do kit de higiene ortodôntico. Nunca tinha visto nada de tão sofisticado, muito obrigada pela generosa oferta do escovilhão! Não há dúvida que o mau profissionalismo grassa neste país! Peço imensa desculpa pelo meu desleixo, pensava que esses escovilhões eram usados apenas por quem tem aparelhos tipo caminho-de-ferro nos dentes. O do Vasco é amovível e lava-se com a escova de dentes. Aliás, a ortodontista disse que o Vasco devia mexer o mínimo possível no aparelho que une os dois dentes da frente para evitar voltar a parti-lo e eu, parva, acreditei! Agora que estou devidamente informada, prometo corroborar.

Embora, a principal preocupação seja com o selvagem pequeno que tenho aqui por casa, vejo que também há inquietação em relação ao Diogo. Concordo perfeitamente que a conexão que ele tem com Portugal é muito boa (e eu que estava com medo que o wifi não chegasse ao 3º andar…). Lamento todas as injustiças, desrespeitos e desigualdades que ele é obrigado a sofrer diariamente. Juro que vou esforçar-me por lhe fazer todas as vontades daqui para a frente e mantê-lo sempre satisfeito. Só não entendo quando dizes que, se não cumprir a minha palavra, ele terá de ficar aqui mais um ano. Desculpa a burrice, mas pensei que o tribunal tinha decidido que os rapazes ficavam entregues à minha guarda definitivamente. Tipo, até à maioridade. Se calhar, tenho de reler aquela papelada toda para perceber melhor porque sou nitidamente estúpida.

Não é preciso zangares-te em relação à escolaridade do Diogo! Eu ainda não tinha percebido que desejavas estar presente em todas as reuniões escolares, tendo em conta que não falas a língua, não percebes patavina do que se diz e estás a 2500 km de distância. Mas, a partir de agora, passarei a comunicar-te todas as datas, de modo a poderes estar presente quando for para decidir se escolhe 4 ou 5 horas de Matemática no próximo ano. Longe de mim querer tomar decisões desta ordem de importância, capazes de comprometer para todo o sempre o futuro do rapaz!

Quanto ao último boletim escolar do Diogo, nada feito. Lamento mesmo muito a minha negligência. Os rapazes recebem 4 boletins escolares, mais 6 na música. Anualmente, mando 20 boletins escolares. Como há quase três anos que aqui estamos, já vamos em perto de 60 boletins enviados… Por uma vez, não encontro um scanner que fiz. Sou uma despistada! Obviamente, é motivo mais do que suficiente para escrever ao tribunal a queixares-te. Tens toda a razão, factos graves deste tipo devem ser de imediato notificados a instâncias superiores. Aquele bando de preguiçosos também tem de tratar disso, para além dos casos menos graves de crianças maltratadas ou abusadas. Já agora, poupa-me o trabalho e o selo e explica-lhes, de uma vez por todas, os motivos que te levam a não desembolsar a verba que te condenaram a pagar. Parece-me que, agora, ficou perfeitamente esclarecido o porquê de não pagares despesas médicas, escolares e extracurriculares, tendo em conta a falta de profissionalismo bem patente de todos os envolvidos neste país merdoso.

Fico a aguardar novas instruções de vida, críticas diversas, informações adicionais e rectificações de vária ordem, sempre no intuito de me tornar uma pessoa melhor e uma mãe à altura da progenitura. Afigura-se uma missão quase impossível, mas com a tua simpática ajuda talvez ainda um dia chegue lá…
 
Com os meus melhores cumprimentos,
Amigo Imaginário.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Projecto terminado!

(onde também se fala de economia doméstica)



 
Lembram-se do “projecto” que os homens da casa congeminaram nas minhas costas? Após três meses de intensa labuta, está finalmente terminado. E eu tenho de dar a mão à palmatória… ficou fantástico!

Admito que a ideia de fazer um home cinema no sótão, ao lado do quarto do Diogo, não me deixou lá muito entusiasmada. Era uma divisão impenetrável, que servia basicamente de arrumos, vulgo depósito de lixo. Lixo potencialmente reutilizável, bem entendido. Aliás, foi lá que desencantámos a cómoda antiga com tampo de mármore que está no nosso quarto. Estava para ali esquecida há décadas, entre latas de pintura seca, cadeiras de vários estilos empilhadas e rolos de linóleo dos anos 60. A primeira fase do trabalho dos meus homens – hercúleo, diga-se de passagem – foi eliminar todo o material de construção que se foi acumulando ao longo das sucessivas remodelações que a casa sofreu desde que foi construída, no início da segunda Guerra Mundial.

Aos poucos, o sótão foi ficando vazio… e cada vez mais frio. Gelado, para ser mais exacta. O meu amor decidiu, então, condenar a parte lateral que dava para a rua, fechando-a. Aproveitou e fechou também a única janela existente. Ainda tentei barafustar, mas perguntaram-me se alguma vez tinha visto uma sala de cinema com janelas. Fiquei sem argumentos. Felizmente, escolhi a melhor altura para abandonar a discussão. A segunda fase do projecto, implicou horas de aspiração para eliminar o pó todo das paredes de tijolo e do soalho de tábua corrida.

A primeira compra que os homens fizeram a solo foi um leitor de Blue-Ray com um sistema de som Dolby Surround que os deixou felizes da vida. Acho que foi uma pechincha, porque apanharam uma promoção qualquer numa loja em segunda mão em Liège. Escusado será dizer que não fui convidada para testar o volume do som, nem escolher a melhor localização para as cinco colunas…

A fase seguinte dos trabalhos foi, sem dúvida, a mais demorada: cobrir as paredes e o tecto com camadas de isolamento acústico. O meu amor mandou vir as mousses isolantes detrás do sol-posto, a preços “asiáticos”. O camião da transportadora demorou quase uma semana a chegar, mas valeu bem a pena a espera. Esta fase, para os miúdos, foi bastante maçadora. Dias a fio às voltas com um trabalho monótono e difícil. Havia paredes em que a cola não aderia e era preciso pregar. No tecto, além de pregar, foi preciso coser as placas de mousse umas às outras. Já para não falar de superfícies com formatos esquisitos, em que era preciso cortar as placas à medida… Mas há que dizer que a recta final do trabalho foi feita exclusivamente pelo Diogo e pelo Vasco, sob supervisão não muito atenta do meu amor. O resultado não ficou tão perfeito como eu gostaria, mas eles ficaram orgulhosíssimos.

Foi nesta fase que o Vasco e eu entrámos em campo com a decoração. Comprámos um tapete de corda que cobria grande parte do soalho antigo e dois cadeirões de verga por trinta euros na nossa loja de velharias preferida, em Bastogne. Forrámos umas estantes antigas do sótão que o meu amor conseguiu recuperar. No cinema onde vamos habitualmente – o tal onde não se pode comer pipocas nos filmes “intimistas”… – comprámos alguns posters de filmes que já tinham saído de cartaz.

Aos poucos, o nosso home cinema foi-se compondo, mas continuava a faltar a pièce de résistance. Demorámos muito tempo a decidirmo-nos entre um LCD HD ou um projector e uma tela. Mesmo em segunda mão, os projectores são caríssimos. O problema é que as lâmpadas têm um número de horas de utilização limitado, sendo preciso substituí-las com bastante frequência. Passámos imenso tempo a pesquisar diferentes sites na internet e acabámos por desistir. Infelizmente, não estava ao alcance das nossas posses. Optámos, então, pelo LCD. E, nessa mesma semana, tive a sorte de encontrar um LCD HD de 47 polegadas em promoção numa loja de electrodomésticos usados perto do trabalho. Os meus homens dizem-me que quando saiu, uns tempos antes, custava perto de 2000 mil euros, mas custa-me a acreditar que alguém conseguisse dar tanto dinheiro por uma simples televisão. Sempre pensei que não havia nada que pudesse desvalorizar mais do que os carros novos quando saem do stand, mas estava enganada.

O home cinema estava finalmente pronto, mas os utilizadores queixaram-se que os cadeirões eram inconfortáveis. Menos mal, era da maneira que levantavam o traseiro mais depressa e iam à vida deles. Entre os filmes de vídeo, as séries, os desenhos animados e os jogos da Xbox, acho que facilmente passarão mais tempo do que o recomendado à frente de um ecrã. Mas, pronto, uma mãe com saudades fica com o coração mole e deixa-se cair em tentação. Quando os miúdos estiveram de férias em Portugal, num dos nossos périplos pelas já costumeiras lojas de móveis usados, encontrámos um sofá pequenino. Achei piada a coincidência e trouxe-o (até porque, além de barato, tinha a vantagem de ser desmontável e poder passar nas escadas estreitas do sótão). Tinha encontrado a nossa cama naquela mesma loja, quando andei à procura de um sofá para o home cinema. Desta vez, andávamos à procura de uma “nova” cama para o Diogo e encontrámos o sofá.

Resta-me dizer que, felizmente, a folha de encargos deste projecto ficou bastante aquém das minhas piores expectativas. Todo o trabalho de remodelação foi feito pelos homens da casa, do maior ao mais pequenino. E foi sendo feito aos poucos, à medida que o nosso tempo livre e as nossas finanças o permitiam. A parte decorativa seguiu exactamente as mesmas regras. Procurámos muito, tivemos de ajustar sonhos mais irrealistas ao que fomos encontrando em segunda mão. O home cinema demorou três meses a ficar pronto, uma imensidão de tempo na cabeça de uma criança. Nesta casa, vive-se teimosamente sem cartões de crédito. Acho que uma das lições de economia mais valiosas que posso dar aos meus filhos é ensiná-los a esperar para terem aquilo que desejam. A trabalharem para terem aquilo que desejam. “Tens de esperar pelo final do mês”, “agora não posso”, “não está ao alcance das nossas possibilidades”, “E se pedisses isso nos anos?”… são frases que os meus rapazes estão habituados a ouvir. Sem vergonha nenhuma. Afinal de contas, acho que acabamos sempre por ter tudo o que queríamos. Demora é mais um bocadinho. Admito que me faz uma certa confusão usufruir de algo de imediato que não podia comprar e ir pagando aos poucos. Para mim, isto é que é “comprar a prestações”, porque os objectos aparecem aos poucos, à medida que vai havendo dinheiro.






 

terça-feira, 14 de abril de 2015

É que hoje fiz um amigo

(ou das mudanças que se avizinham)



Prometi que, quando esta longa batalha terminasse, ia cuidar de mim. E o que é isso de cuidar de mim? É um misto que regresso às origens com olhar em frente. Há coisas que deixei simplesmente de fazer, nem sei bem porquê. Demorei um certo tempo a perceber que virar a página não significava apagar tudo o que ficou para trás. Porque, afinal, o passado também tinha coisas muito boas, que deixaram um vazio. Coisas que faziam de mim uma pessoa melhor, mais feliz, mais saudável. Mais completa. Que exigiam mais de mim. Tempo, principalmente. Ora, como se sabe, tempo é algo que nunca sobra, por estes lados. Mas eu prometi. O meu amor fez-me prometer. Disse-me que agora estava na hora de concentrar toda a minha energia e força em mim mesma. Que essa era a única maneira de dar sentido a isto tudo. Que já chegava de sobrevivência, agora tinha mesmo de viver. Viver uma vida plena. Inteira. Ser mais eu. E, então, percebi. Finalmente, compreendi aquele poema de Ricardo Reis que, de vez em quando, me vêm à memória: Para ser grande, sê inteiro: nada/ Teu exagera ou exclui./ Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/No mínimo que fazes./ Assim em cada lago a lua toda/ Brilha, porque alta vive.

Para eu ser quem sou, preciso de livros. Tenho dedicado algum tempo a escrever, o que me dá um enorme gozo. E trouxe pessoas muito interessantes à minha vida. Mas eu preciso de ler. A literatura é o meu mundo. E a música tem de ecoar nestas paredes. Tenho de voltar a praticar desporto, contrariar o meu problema nos ombros. Manter a elasticidade que sempre tive. Tenho de continuar a esforçar-me por dormir, o que para mim foi toda uma aprendizagem. Tentar comer melhor, sempre. Mais natural, mais saudável. O nosso jardim está finalmente a tomar forma, está na hora de começar a aproveitar o que a terra nos pode dar. Vegetais, legumes, fruta. Tenho de voltar a fazer os meus próprios produtos de limpeza, como fazia antigamente. Quero ver se diminuo os químicos nesta casa. Até mesmo nos medicamentos. No outro dia, ofereceram-me um livro sobre medicinas alternativas, tenho de o analisar melhor. Aproveitar o facto de sermos todos saudáveis nesta família para tratar de nós de forma mais natural e preventiva. Tenho de voltar a dar passeios grandes pela região. Há tantos percursos aqui à volta, há que aproveitar o regresso do bom tempo para os explorar. A quatro, a dois, sozinha. Tenho de passar mais tempo sozinha. Talvez voltar a estudar. Quem sabe um doutoramento… ou criar um negócio de raiz. Tenho de me rodear de novas pessoas. Preciso de amigos. Mantenho todos os que ficaram. É um dos grandes orgulhos que tenho na vida: atravessei épocas e quilómetros e nunca ficou ninguém para trás. Mas agora preciso de aprender a fazer novos amigos, que possam fazer parte desta nova etapa da minha vida.

Não acredito em coincidências. Não acredito em karmas, nem em conspirações cósmicas ou divinas. Sou demasiado terra-a-terra. Mas há coisas estranhas. No preciso momento em que a roda começou novamente a girar, fiz duas novas amigas. Assim, de repente. Daquelas que a gente sabe sem saber porquê que tinham mesmo de cruzar o nosso caminho, pois têm algo importante para nos ensinar. Daquelas que a gente sabe sem saber explicar que vieram para ficar. E é tão bom. Como diria Sérgio Godinho... É que hoje fiz um amigo/ E coisa mais preciosa no mundo não há.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Apneia

(onde se sente o cansaço de um longo ano)



Eu trabalho. Dois empregos, duas profissões completamente diferentes. À porta de casa e a 50 quilómetros de distância. Mais as traduções que vou fazendo sempre que posso, porque me faz falta o dinheiro. Mais vezes do que aquelas que devia, mas é a minha verdadeira profissão. A que sei e gosto de fazer. No silêncio da noite. Na confusão dos fins-de-semana. O resto são disfarces de super-herói para alimentar a família. Visto a capa de coordenadora e de professora, sempre à espera que um dia alguém perceba que usurpei uma identidade que não é a minha. No centro de documentação, trabalho o dobro para compensar a ausência da minha colega, de licença de maternidade há quase um ano. O tempo é o mesmo, o salário também. Ninguém me agradeceu o esforço, mas fiquei efectiva. Na escola, a inspecção não perdoou o nível demasiado elevado dos meus alunos. Devíamos estar a treinar frases simples sobre a família e as profissões, não a fazer debates acesos sobre a actualidade política e a eutanásia. Ainda bem que naquele dia ninguém se lembrou de trazer o licor e os doces habituais. E rimos muito menos, foi uma pena. Não tenho muitas ocasiões para me rir, despreocupada.

Eu sou mãe. Sou mãe a tempo inteiro, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano. Menos nas férias, que é o período de descanso. E eu não sou uma mãe que descanse. Eu sou a mãe que está lá quando eles estão doentes. Que leva ao médico e compra os medicamentos. Que acorda para dar os medicamentos. Que leva às consultas de rotina, que parecem inúteis porque existem para prevenir. Eu sou a mãe-previdente. Mas também a de todos os dias. Sou a mãe-a-dias. Que acorda e obriga a despachar. Que trata de almoços e lanches. Que prepara roupa. Lava roupa, estende roupa, apanha roupa, dobra roupa, arruma roupa. Que cose e remenda. Que é um ás a pôr joelheiras. E a desencantar roupa nova e gira a bons preços. Às vezes, nem a roupa é nova nem os preços são assim tão bons, mas é gira na mesma. E aparece à velocidade a que desaparece. Ou que deixa de servir, no caso do grande. Sou a mãe que leva à escola. A mãe-motorista. Que não se esquece que é preciso a mochila da ginástica às terças e a da piscina às sextas. Sou a mãe que vai buscar. Que corre atrasada para todas as actividades. Que volta atrás porque falta um livro de solfejo, o tompete, o violino ou as sapatilhas. Ou o segundo lanche, que isto é gente de alimento. Que nos intervalos faz as compras e limpa a casa. Programa refeições. Sou a mãe que revê trabalhos de casa, obriga a estudar e assina os testes. A que compra o material que insiste em desaparecer. Ou partir-se. Ou estragar-se. A que desencanta o livro que tem de estar lido no dia seguinte. A mãe-mágica. Sou a mãe que cozinha. Bem, ao que parece. Menos mal, eles agradecem sempre o jantar. Mas, depois, também sou a mãe que lava a loiça e limpa a cozinha. Que manda tomar banho. Que manda sair do banho. Mãe-que-grita. Que ralha porque é tarde e ainda não estão deitados. Sou a mãe que aos fins-de-semana deixa deitar e levantar mais tarde. Que leva a passear, a ver, a conhecer, a experimentar. Sou a mãe que ouve tudo. O que quer e o que não quer. Mãe-ouvidos. Que depois fica a remoer, preocupada. A mãe que fala, que se esforça por dar educação. Por vezes, também formação. Sou a mãe que dá beijos. Que diz que ama vezes sem conta. Mas às vezes é um amor cansado. Mãe-estafada.

Acho que menosprezei o esforço imenso que este último ano me exigiu. Um ano em que fiz tudo, o trabalho e a maternidade. Em que batalhei para andar com esta nossa vida para a frente, como se nada fosse. Em que lutei como uma leoa para ninguém destruir esta família que tanto me custou a reconstruir. Bati-me pelos nossos direitos, sem sequer pôr a hipótese que pudesse ser de outra maneira. Mudámos para a casa dos meus sonhos, que finalmente começa a tomar forma. O meu amor veio viver connosco, obrigando-nos a mudar toda a dinâmica a que estávamos habituados. Aconteceu tudo no espaço de um ano. Em Abril, desmoronei. Em Abril, renasci. Um ano em apneia. Sinto-me cansada. Muito cansada. Aos poucos, obrigo-me a vir à tona. A respirar em pequenas golfadas. Digo a mim mesma que o pior já passou. “Parva, agora é que te sentes cansada?!”. É... agora é que o peso de tudo o que atravessei me submergiu.

sábado, 4 de abril de 2015

Adenda

(onde se faz um breve balanço dos últimos posts)



Adenda 1
Finalmente, 39 SMS depois, o Diogo voltou da sua primeira viagem escolar de três dias a Paris. Tal como eu suspeitava, a conta do telemóvel vai ressentir-se de tanta emoção. Conseguiu vencer o medo, subiu à Torre Eiffel e andou numa montanha-russa na Eurodisney, o que prova que o filho grande fica ainda maior longe da mãe. Segundo consta, a comida que mandei foi mais do que suficiente e o meu bolo fez sucesso junto do público feminino...
 
Adenda 2
O Vasco já trouxe o boletim do 2º Período. Parece que a conversa sobre a importância da responsabilização terá de ficar para outra altura… a coisa pequena voltou a ter excelentes notas. A única explicação que encontro é que os resultados dos vários testes que foi fazendo ao longo do período equilibraram as notas menos boas dos exames finais. Mas isso quer dizer que as notas dos testes tiveram de ser mesmo fenomenais. E que nós já estamos tão habituados a que ele tenha resultados fantásticos, que se tornou banal. Bem vistas as coisas, quem precisa de um ralhete somos nós, o meu amor e eu, que provavelmente temos graus de exigência demasiado elevados.
 
Adenda 3
A espera terminou com um telefonema rápido para me sossegar. Às vezes, a vida é generosa e põe no nosso caminho profissionais extraordinários pelo seu lado humano. Que nos vêem como pessoas, não como processos que enriquecem contas. Que nos lêem a alma e se batem pela nossa causa apenas para tentar fazer justiça. E justiça foi feita, finalmente. O Diogo fica na Bélgica, os meus filhos ficam juntos, debaixo da minha asa. E ficam felizes, é preciso que se diga. Com direito a uma pensão de alimentos digna. Muito haveria para dizer sobre este moroso processo. Um dia escreverei sobre os longos meses que passei na pele de Josef K. Por agora, o descanso merecido. Os rapazes partem para Portugal, nós vamos namorar por aí…

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Um adolescente em Paris

(e uma mãe descansada na Bélgica)


 

Filho grande está em Paris com a escola esta semana. Todos os alunos do oitavo ano do Sacré-Coeur vão ficar três dias num hotel, com professores e educadores. A visita quer-se turística, não escolar. Vão passear pela cidade, ver alguns museus menos conhecidos e visitar a Eurodisney na mais completa liberdade.

Uns dias antes da partida, perguntou-me se estava nervosa. Se esta viagem me deixava preocupada, como os outros pais. “Preocupada com o quê?”, perguntei. Respondi automaticamente que não. Depois, pus-me a pensar no assunto. Parece que há quem tenha medo de novos atentados, da autonomia precoce, da ausência de telemóveis, do facto de dormirem sozinhos num hotel com saída para a rua, de ficarem entregues a eles mesmos quando forem à Eurodisney... Na reunião de informação, os pais expuseram todo o tipo de medos. Sem filtro e sem vergonha. Eu fiquei calada, não estava preocupada. Continuo a não estar. Percebi que há vantagens no facto de ser o filho mais velho de pais divorciados, que moram em dois países diferentes. O Diogo já viajou tanto, já precisou de se desenvencilhar tantas vezes sozinho, que tenho total confiança nas suas capacidades de desenrascanço. Portanto, deixei-o de partir de coração ao alto. Zero preocupações maternas.

Excepto com a conta do telemóvel. Receios perfeitamente justificados, tendo em conta o historial do Diogo. Filho grande tem SMS ilimitados e está habituado a mandar várias mensagens telegráficas para fazer uma simples pergunta, tipo: “Tenho fome/Posso fazer ovos?/Mexidos?/Há 3 ovos no frigorífico/Posso?/Então?”. Expliquei-lhe que em Paris ia ter de ser mais conciso, mas já percebi que não me ligou nenhuma. Esta manhã, teve acesso ao telemóvel. Disse que estava divertir-se muito, que ontem não choveu, que tinha ido a Montmartre e ao Palais des Découvertes, que tinha gasto 40 euros em prendas, que hoje ia subir à Torre Eiffel. Precisou exactamente de oito SMS para me dar estas simples informações. Temo o dia em que vá passar um mês a fazer o InterRail…

Também estava preocupada com a comida, admito. Mais uma vez, medos perfeitamente justificados, tendo em conta o historial alimentar da marabunta. Resolvemos o problema com uma mala grande, recheada de comida. Entre levar boxers e meias ou um carregamento de bolachas e leite de soja, não há margem para grandes hesitações. As noitadas no quarto do hotel estão asseguradas. Na mochila, mandei mini-pizzas, folhados de salsicha, pães-de-leite com chourição e meio bolo de iogurte. Na esperança que desse para aguentar a viagem de quatro horas até Paris. Parece que deu, apesar de a camioneta ter avariado a meio do caminho. Nada como ser previdente. Quando passar o tal mês a fazer o InterRail, é que não sei como vai ser…

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Duas estrelas

(onde se fala dos dois protagonistas de um espectáculo de ballet)

 

Neste dia, para mim, houve duas estrelas. Os meus olhos tentavam acompanhá-las a ambas, admirados. Encantados. Nunca tinha visto nada assim, em palco e na plateia.

O Vasco, sob os holofotes, parecia outro. Transfigurou-se. Se nos ensaios estava sempre uns segundos atrasado e tinha de seguir a meninada, ali, não falhou um passo. E tão nervoso que ele estava, antes de entrar! Percebi que os cinco anos de audições de violino deram-lhe um à-vontade em palco que as colegas não possuíam. Um autocontrole conquistado à custa de muito treino. Uma capacidade de se transcender. Mas a idade agora é outra. A coisa pequena já não sobe ao palco com a mesma descontracção. Sente a necessidade de fazer bem feito, de fazer bonito. De dar espectáculo. Daí os nervos iniciais, que o Vasco soube perfeitamente controlar. Foi, de facto, bonito de se ver. O ar sério, compenetrado. De miúdo crescido. O corpo leve, de bailarino. Os passinhos. O tempo.

Na plateia, o meu amor dormitava exausto. O dia tinha sido longo, sobrecarregado de compromissos em Liège. Sem carro, apanhou todos os transportes públicos possíveis, numa corrida contra o tempo para ver o Vasco dançar. Consegui ir buscá-lo à estação de comboios mais perto, mesmo em cima da hora. Quando anunciaram a turma do Vasco, o meu amor despertou de repente. Pegou na máquina fotográfica e saltou lá para a frente, sem uma palavra. Na penumbra, consegui vê-lo a procurar o ângulo perfeito. A seguir, em suspenso, os movimentos. A parar de fotografar e de filmar por momentos, apenas para contemplar a coisa pequena, longe da objectiva. E ver o Vasco dançar tão bem através dos olhos e da emoção do meu amor foi outro espectáculo em si. É ser amada também através do amor que os meus filhos suscitam.



 


 
 
[ adoro este pequeno vídeo apenas pelos passinhos delicados do Vasco quando saiu de cena, depois da primeira apresentação... ]