terça-feira, 30 de junho de 2015

Simplex à la belga

(ou uma outra maneira de descomplicar as coisas)



Este ano não recebi o impresso para fazer a minha declaração de impostos, como nos anos anteriores. Pensei que tivesse havido alguma confusão, visto termos mudado de casa. Na Bélgica, o IRS pode ser entregue em papel ou pela internet, desde que se tenha o código de acesso e um “leitor de cartões” (uma maquineta que lê o chip do cartão de identidade que contém todas as nossas informações).

Evidentemente, como boa portuguesa que sou, decidi-me a ir às Finanças aqui do burgo hoje… data limite para entregar o IRS. Não contente com isso, apareci por lá por volta das 10h30… uma hora antes da reunião de pais na escola do Vasco.

A sala de espera, que costuma estar sempre vazia, estava à pinha. Era o número 25. Como ainda estava no 14, aproveitei para ir à biblioteca entregar os livros do Vasco. Quando voltámos, pouco tinha avançado. Decidi ir a casa do amigo do Diogo buscar o boletim que tinha recebido quando a coisa pequena e eu ainda estávamos no sono dos justos. Dei uma olhada rápida nos resultados dos exames nacionais e nas notas finais, dei-lhe um beijinho de parabéns (e um merecido calduço pelo 13 a Ciências) e apressei-me a regressar às Finanças. Só faltava um número. Mas os minutos passavam e nada. Fui obrigada a desistir para não chegar atrasada à reunião do Vasco. À saída, tirei uma nova senha.

Recebi o boletim do Vasco, que a medo perguntou se tinha passado para o 4º ano. As professoras largaram as duas a rir. A coisa pequena não tem noção das notas absolutamente fantásticas que tem. Ouvi rasgados elogios, sai de lá a correr de coração cheio. À porta, perguntei pelos impressos da inscrição. “Já está! Era aquele talão que entregou no outro dia a dizer que o queria reinscrever”, responderam-me.

Nas Finanças, o meu número já tinha passado. As poucas pessoas que restavam na sala deixaram-me passar, quando o Vasco anunciou em alto e bom som que afinal até tinha recebido um bom boletim. A senhora que me atendeu começou por pedir o cartão de identidade, introduziu-o na maquineta e confirmou os dados. O Vasco certificou de imediato que tinha um irmão mais velho. Que lhe batia. Muito. Aproveitou também para explicar que estava a ler o “Schtroumpf Financier”, bastante adequado à ocasião. Só fechou a matraca quando o mandei calar no meu português mais zangado. A pobre senhora estava morta de riso, mas tentava manter a compostura. Perguntou se tinha trazido as atestações fiscais que podia apresentar. Respondi que não, que só vinha buscar os impressos ou o código de acesso, tanto fazia. “Não, minha senhora, que disparate… a gente faz isto aqui num instantinho. Ninguém gosta de preencher a declaração de impostos. E cheira-me que também não deve ter muito sossego lá por casa… Depois, quando puder, passe por cá para deixar as atestações que eu corrijo-lhe a declaração.” Em cinco minutos estava despachada, declaração do estorno incluída.

A isto chama-se simplex, não? Ou talvez apenas vontade de descomplicar, não sei…

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Falácias

(onde se mostra que às vezes o “saudável” sai caro)


 

1- Comprei um shampoo daqueles todos bio-coiso da Timotei: 100% natural, 95% biodegradável, sem parabenos, nem sulfatos. Ainda por cima, não posso dizer que tenha sido caro. Acho que paguei cerca de 3€ por uma embalagem de 250 ml. E cheira bem que se farta. Só tem um pequeno problema: não faz espuma nenhuma. Ah… e também não lava o cabelo. Parece-me um excelente produto, mas para shampoo definitivamente não serve.

2- Estou farta de ver receitas com farinha de aveia, mas nunca consegui encontrar tal coisa por estes lados. Deduzo que em Portugal também não seja fácil porque, no final das receitas, diz sempre que se não tivermos farinha de aveia podemos simplesmente moer flocos de aveia no 1, 2, 3. Decidi experimentar e, de facto, fica uma espécie de farinha que pode ser utilizada para fazer bolos. A questão é que aquilo não cresce. Nem coze. Nem coisa nenhuma. Como sou parvinha, experimentei duas vezes, num bolo e em muffins. Pá… nem vale a pena tentarem, não dá.

3- Há muitos anos que deixámos de ir ao McDonald’s. Ou a qualquer outro tipo de cadeias de fast-food do género. Recuso-me a comer aquelas porcarias de plástico e esforço-me ao máximo por incutir nos meus filhos uma filosofia de vida mais saudável. Não dá grande resultado, tenho de admitir. Estou farta de lhes mostrar documentários, artigos de jornal, estudos fiáveis… a pandilha continua a adorar o restaurante do palhaço idiota. Talvez devesse ter começado quando o Diogo era pequenino, mas nessa altura eu ainda alimentava o final da minha adolescência com McFish e batatas-fritas. Infelizmente, há gente que não cresce. Resultado: os meus filhos enchem-se de McPorcarias sempre que estão em Portugal, longe da minha vigilância.

No outro dia, fomos a Bruxelas fazer os passaportes (a nossa aventura na embaixada merece um outro post, juro!). Estávamos felizes e contentes. Fomos a uma loja em segunda mão gigantesca comprar livros para as férias. Eu estava especialmente satisfeita por ter também encontrado dois pares de calças de ganga de Inverno para o Vasco. Estavam como novas a 1€, umas ainda tinham a etiqueta e tudo. O Diogo regressou da sua missão de ir pôr mais moedas no parquímetro com a novidade de que havia uma hamburgueria na esquina com óptimo aspecto. Os hambúrgueres só custavam 4.5€, podíamos ir lá almoçar. “Já que não podemos ir ao McDonald’s…” tornou-se o chavão da chantagem emocional familiar. Cedi, apesar de já nos termos tornado suficientemente belgas para não fazermos almoçaradas de faca e garfo, como se diz por aqui. Mas um dia não são dias, não é? Uma vez sentados na dita hamburgueria, depressa percebi que estávamos num daqueles “conceitos” (e não restaurante) modernos. Ceci n’est pas un hamburger era o mote. Ia morrendo de susto quando o empregado nos trouxe o cardápio, mas tive vergonha de me levantar e fugir a correr. O que custava 4.5€ eram as batatas-fritas. Pequenas. Batata-doce frita, que é muito mais fino. Os hambúrgueres custavam mais do triplo. Mas havia hambúrgueres de carne branca, incontestavelmente mais saudável. As bebidas eram igualmente proibitivas, mas como nomes muito engraçados. Ainda por cima, vinha tudo embrulhado em papel, como se estivéssemos mesmo no McDonald’s. Papel de luxo, bem entendido. Claro que o que paguei dava para alguns vinte McMenus, como fez questão de sublinhar o adolescente pitosga. Guardei a factura para esfregar na cara da próxima pessoa que me disser que a comida alternativa e biológica e saudável e o raio que o parta é pouco mais cara do que a normal.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Férias de sonho para esta família

(onde a sinceridade tem primazia sobre o politicamente correcto)


 

Provavelmente, este meu conceito de férias de sonho não terá muitos adeptos. Admito que seja bastante pessoal. Talvez algo egoísta. São umas férias-modelo que funcionam apenas na nossa família.  Além disso, tenho a noção de que é difícil pô-las em prática, tendo em conta a multiplicidade de factores que é necessário conjugar. Uma espécie de Cubo Mágico com muitas peças coloridas pequeninas que se imbricam umas nas outras. Milagrosamente, este ano as nossas férias de sonho vão mesmo realizar-se. Não serão perfeitas, perfeitas… mas, honestamente, acho que não vão andar muito longe disso. Ou seja, com algum esforço e imaginação, vamos mesmo conseguir fazer tudo o que queremos. Tudo o que queremos e precisamos, todos nós.

Este ano absolutamente extenuante deixou-nos a todos de rastos, adultos, adolescente e coisa pequena. Começámos numa luta aguerrida e terminamos com uma vitória inesperada. Esta casa está finalmente em paz. Nunca me passou pela cabeça perder o meu filho mais velho. Separar os irmãos. Parecia-me pura e simplesmente inconcebível. Sobretudo, parecia-me que essa não seria a verdadeira vontade do Diogo. Felizmente a juíza foi da mesma opinião. Acho que não me enganei. Passado um ano, o Diogo é outro. Um miúdo feliz, risonho e falador, de bem com a vida, rodeado de amigos (e namorada pispineta!). Um miúdo que voltou a ser o que sempre foi, meiguinho e melado, agora com 1.72 metros, picos de hormonas e de resmunguice. Com opiniões fortes. É estranho ver o meu Diogo num corpo de gente grande, com outra maturidade. É estranho ver um filho adolescer, tomar subitamente consciência das coisas, porque isso acarreta sempre algum sofrimento. Faz parte da vida, eu sei, mas gostaria de ter conseguido protegê-lo durante mais um bocadinho.

Não creio que esteja a ser injusta se disser que este foi o ano do Diogo. Da luta pelo Diogo. O Vasco não esteve no centro das nossas preocupações, apesar de tentarmos ferozmente mantê-lo dentro de uma redoma protectora. O meu amor e eu dedicámo-nos muito mais aos miúdos do que a nós próprios, à nossa vida pessoal, ao nosso trabalho. Isto seria perfeitamente normal se fôssemos ambos pais destes miúdos, o que não é o caso. Pedir a um homem que escolheu conscientemente a liberdade à paternidade para se dedicar em exclusivo a duas crianças, é pedir o impossível. No entanto, ele fê-lo. E de forma absolutamente excepcional. Não sem algumas crises de consciência, não sem algumas crises pessoais. Não sem mossas na nossa vida de casal, sejamos sinceros. Não somos a família perfeita, nem pretendemos sê-lo. Somos a família possível, a que conseguimos ser. A que tentamos construir, no meio do tumulto que é o nosso quotidiano. Esforço-me para não trazer para aqui o lado mais sombrio da nossa vida. Acho contraproducente responder à maldade e à insanidade com protagonismo. Ainda há dias recebi novos ataques a dizer que não valho nada, que sou uma vergonha de mãe, que sou uma emigrante fracassada, sem dinheiro. E isto é difícil de gerir. Porque é constante. Porque visa destruir a minha autoestima, a minha força. Porque é cada vez mais complicado esconder este tipo de situações do Diogo. Porque exige uma paciência extraordinária da pessoa que amo, que nada fez para merecer ter de dividir este fardo pesado comigo.

Por tudo isto, merecíamos ter férias. Umas férias em guisa de celebração, de consagração da vitória que constituiu este ano. Umas férias de sonho, nada menos do que isso. Finalmente. Cada um de nós, em particular. Todos juntos, em família. O Diogo porque se portou como um herói este ano e amadureceu imenso, conseguindo construir uma relação envolta de ternura com cada membro desta família. O Vasco porque continuou simplesmente a ser a minha deliciosa coisa pequena, que me espanta e me comove diariamente. Que mantém uma cumplicidade única com o nosso Belga, mostrando que há filiações que vão muito para além do código genético. O meu amor porque merece usufruir do aspecto positivo de fazer parte de um todo, que ele ajudou a solidificar. Porque vai poder partir à aventura connosco no seu território, no seu habitat natural, e mostrar-nos um novo país que não conhecemos. E eu… eu porque sobrevivi a este ano, sem nunca deixar de acreditar no nosso projecto. Aprendi a ter fé. Porque consegui ir poupando, aqui e ali, de modo a conseguir oferecer estas férias à minha família. Serão umas férias em modo low-cost, bem entendido. Ainda não sei muito bem como vamos conseguir fazer tudo o que queremos, mas alguma coisa se há-de arranjar. Gostamos de cultivar o improviso.

Ora, então, vamos lá enunciar as premissas essenciais para umas férias de sonho:
1-    Férias só com os meus filhos, enquanto o meu amor descansa uns tempos desta família de doidos.
2-    Alguns dias exclusivamente com um dos rapazes, para poder mimá-los à vez.
3-    Partir à aventura a quatro no estrangeiro, numas férias itinerantes e atribuladas.
4-    Um momento a dois, num sítio calmo, para namorar.
5-     Muitas visitas da família e amigos, para encher o coração.

Os planos estão mais ou menos delineados, as férias começam na próxima segunda-feira. Pensando bem, as férias começam já amanhã. O bebé mais fofinho do (meu) mundo vem passar o fim-de-semana com a tia. Infelizmente traz os pais atrás, mas havemos de conseguir despachá-los para algum lado...

terça-feira, 23 de junho de 2015

A despedida

(à volta de um bom copo de vinho, como não podia deixar de ser)

 


Dei a minha última aula de Espanhol. Mesmo que o enclave burocrático da equivalência dos meus diplomas se resolvesse a tempo, não teríamos o número de alunos exigido por lei para abrir uma turma de Espanhol III no próximo ano lectivo. Faltam só dois alunos, mas temos de nos cingir à crueza dos números. Tenho pena. Temos todos muita pena. Uma coisa é certa… divertimo-nos imenso. Cada um de nós se esforçou por dar a sua contribuição individual. Partilhámos muito mais do que conhecimentos. Trocámos experiências de vida. Fizemos amizades.

No primeiro ano, construímos os alicerces da casa. Aprendemos as bases gramaticais da língua. Foi um processo que exigiu um esforço enorme da parte dos meus alunos, em horário pós-laboral, após oito horas de trabalho. Principalmente se tivermos em conta que muitos estavam de volta aos bancos da escola depois de décadas de ausência. No segundo ano, dedicámo-nos a mobilar esta casa. Adquirimos o vocabulário necessário para nos exprimirmos em diferentes situações. Complexificamos conceitos gramaticais. No terceiro ano, tencionávamos fazer os arranjos decorativos da casa, por assim dizer. Pôr em prática tudo o que tínhamos aprendido nos anos anteriores, dar primazia à oralidade sobre a escrita.

Foi uma experiência extremamente gratificante para mim pegar num conjunto de adultos sem qualquer conhecimento de espanhol e pô-los a falar a língua. Dar-lhes a conhecer diferentes países, histórias, culturas, músicas, literaturas… O mundo hispânico é tão vasto, foi muito bom revisitá-lo em tão boa companhia. E foi ainda melhor assistir às viagens que os meus alunos foram fazendo, onde graças ao que aprenderam conseguiram dar a volta a situações complicadas. A perda de uma carteira cheia de documentos, um incêndio e uma evacuação, uma viagem anulada, um acidente aparatoso, um encontro fortuito…

Na última aula, houve apresentações orais. Apresentações orais feitas por puro prazer, é preciso que se diga. Os exames escritos já estavam feitos, as notas lançadas. Disseram que era uma prenda que queriam oferecer-me. Mais uma vez me espantaram com o leque de temas escolhidos. Voltaram a emocionar-me com a profundidade do trabalho elaborado. Com a generosidade. Com a intimidade de cada um posta a nu perante a turma. Uma viagem de segunda lua-de-mel de um casamento em perigo. Uma crença religiosa que muitos desconhecíamos. Um passatempo perfeitamente inesperado. Uma bebida cubana que trazia memórias bonitas. A violência conjugal que continua a fazer sofrer muitos anos depois. Tantos, tantos temas que expunham o peito às balas. Deixaram-me orgulhosa (e algo zonza, que a bebida era forte).

Para o ano, combinámos encontrarmo-nos uma vez por mês para manter a conversa em dia. A conversa em espanhol, está bom de se ver. As aulas darão lugar a algo mais informal. Vou passar definitivamente de professora a amiga e estou feliz por isso.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

O meu violinista

(mais uma audição e uma viagem pela memória)


 

Há tanto tempo que assisto a audições de violino do Vasco, que já lhes perdi a conta. Da primeira, lembro-me perfeitamente. Tinha apenas 3 anos e foi difícil convencê-lo a subir ao palco sem chucha. Era um bebé de jardineiras, que se enganou uma série de vezes. Nunca perdeu a compostura ou a boa-disposição. Estava feliz da vida, descontraidíssimo. Arrancou gargalhadas da plateia, quando disse “Ahhh… vou fazer do início!”. E recomeçou a tocar, desta vez quase sem se enganar. A vénia final foi perfeita.

Não encarno bem o papel da típica mãe de meninos-prodígio. Nunca vou para lá de máquina em punho, completamente embevecida. Sou muito crítica, acho sempre que ele podia fazer melhor. E esqueço-me invariavelmente da máquina, claro. Gosto de lhe prestar atenção. As poucas fotografias e vídeos que tenho devo-os à Ana, a primeira professora do Vasco que deixou tantas saudades. Ou ao meu amor, desde que entrou nas nossas vidas. Ele, sim, faz questão de ostentar o seu orgulho.

Não sei porquê, mas sinto que estes momentos são especiais. Que são só nossos, do Vasco e meus. Ele olha para mim, eu sorrio e pisco-lhe o olho. E ele começa a tocar. É o nosso ritual desde sempre. Não que ele precise, nunca o vi nervoso em palco. O Vasco é daqueles miúdos que brilha, mesmo que as coisas não corram lá muito bem. Vê-se que está ali para se divertir, que o violino é uma fonte de alegria. Antes de mais, o violino é uma extensão do corpo do Vasco, que não tem quaisquer memórias de uma vida anterior ao seu instrumento. Há sempre muitas lágrimas quando é preciso abandonar um violino que ficou demasiado pequeno.

Desta vez, a coisa era um bocadinho mais séria, já que se tratava também de um exame final de ano. Nem sequer me lembrei que era público. Quando lá chegámos, comecei a olhar em volta e ia morrendo de vergonha. Era só meninas de vestido de cerimónia. Todas bem penteadas e cheirosas. O único rapaz presente, bastante mais velho do que o Vasco, era o típico intelectualóide, sério e compenetrado. Limpinho. De óculos e cabelo à totó. E, depois, havia o Vasco... acabado de chegar do recreio da escola. Calções de ganga rasgados e t-shirt preta do Batman. Ténis-bota estilosos completamente imundos. Todo suado. A cara suja de chocolate. O cabelo em pé, cheio de remoinhos. As mãos a colar, com umas unhas nojentas…

Pela primeira vez, havia outras crianças antes do Vasco. Apesar de ainda ser dos mais pequeninos, já está no segundo ano do conservatório. Enquanto as meninas perfeitas se sucediam em palco, eu tentava ferozmente limpá-lo com o velho método infalível das mães: o cuspo. Não resultou tão bem como de costume, infelizmente. Subiu ao palco com andar gingão e sorriso triunfal. Vê-se que gosta daquilo. Fizemos o nosso ritual. Ele tocou bem, mas podia ter tocado melhor. Esqueci-me da máquina. Ah… e chorei, claro. Comovo-me sempre quando o vejo ali, com aquela alegria toda dentro do peito. Talvez porque me lembre daquela primeira audição tão ternurenta. Talvez porque me lembre do carinho com que a Ana o ensinou a tocar, num instrumento minúsculo. Talvez porque me lembre do pânico que senti, logo a seguir à separação, quando percebi que não ia ter dinheiro para continuar a pagar as aulas. Talvez porque me lembre da fúria com que me bati, neste país, para o deixarem começar a ter aulas de violino antes da idade regulamentar. Talvez porque o Vasco toque com uma felicidade tão genuína que comove, porque se transfigura. Talvez porque os violinos têm crescido com ele e, quando penso que já vamos no quarto, tenho a certeza de que estou a assistir a uma relação única, entre um menino e o seu instrumento, que durará uma vida. Não tenho dúvidas de que a melhor coisa que fiz por este meu filho foi ter percebido precocemente que ele precisava de música para ser feliz.

  O bebé Bá e o seu violininho.



  Cinco anos depois, muito nervoso a preparar mais uma audição...

terça-feira, 16 de junho de 2015

Vampiros

(porque, no fundo, a causa só serve para os alimentar)


 

Não sei bem que nome dar a este tipo de pessoas. Não são bem pessoas, são uma espécie de vampiros. Em francês, chamar-lhes-ia personnes engagées, que é bastante explícito. Assim, à falta de melhor, digamos que são “pessoas de causas”. A verdade é que a causa em si é pouco importante. O que interessa mesmo é estar comprometido com uma causa, seja ela qual for. Uma luta. Preferencialmente uma luta que ainda não tenha muitos simpatizantes, pouco popular. Uma luta difícil. Uma razão de vida. Que se impregne até ao âmago do ser. Que condicione toda a existência. Que se torne tão essencial como o ar que respira.

Estas pessoas costumam herdar as suas causas por via familiar, sem grandes questionamentos. Mais tarde, exactamente porque cresceram no meio da luta, tendem a transmitir os ensinamentos incutidos à progenitura, como se de um legado familiar ancestral se tratasse. Um modo de vida indiscutível. Mais do que a causa propriamente dita, o que transmitem é um esquema de pensamento pré-formatado que os ensina a debitar, não a pensar. Porque desde o berço vêem touradas e não concebem outra forma de entretenimento. Porque cresceram no seio de uma seita religiosa e só aprenderam a falar essa linguagem. Porque nunca comeram carne e hoje são incapazes de comer mel para não explorarem as abelhas.

As pessoas de causas agarram-se à sua luta como se fosse uma muleta. Uma muleta, não. Uma prótese. Às tantas, já faz parte do corpo amputado, mutilado. Entranhou-se nos pensamentos, nos actos, no discurso, no dia-a-dia poucochinho. E, uma vez criadas raízes, precisa de se expandir. O problema é que o resto dos mortais, estranhamente, parece conseguir atravessar a vida sem precisar de outros acrescentos, para além da sua própria cabeça livre-pensante. Ora isto é um problema grave. Gravíssimo. Felizmente é grave, mas não insolúvel. Porque as pessoas de causas têm a capacidade de farejar os fracos à distância. Os cobardes. São como aqueles predadores que caçam em solitário, ao entardecer. Aqueles caçadores pacientes que aguardam o momento em que os animais saem das tocas para se alimentar e o mais fraco se afasta do grupo. Nesse momento, saltam lá do meio da vegetação onde estavam escondidos e apanham o elemento frágil, que será rápida e facilmente convertível. Porque as pessoas de causas gostam muito de ajudar os desprotegidos.

Mas não vamos confundir as coisas. As pessoas de causas gostam de liderar, não são os líderes. Seguem escrupulosamente o caminho da luta, arquitectado por alguém mais inteligente. Tipo o Deus das Causas Várias. Há quase sempre um dogma qualquer predefinido algures. Um livro que encerra toda a sapiência do mundo, uma filosofia de grupo bem balizada, uma definição que é preciso pregar. Ou seja, precisam sempre de um guru que lhes dê o mote e de um aprendiz para os secundar. Mais um bando de acólitos menores para dar crédito à causa. É por essa razão que os podemos encontrar frequentemente reunidos em grupos. Os famosos grupos de apoio. Movimentos de apoio às vítimas e seus familiares. Movimentos de apoio aos doentes disto ou daquilo. Movimentos religiosos, políticos, comunitários, clubísticos… É graças a estes grupos que as pessoas de causas garantem a sua permanência na luta. Porque, mesmo que um dia o motivo que os levou a consagrarem-se à causa se extinga, podem continuar a lutar no seio do grupo, passando de vítimas a testemunhas, a padrinhos, a colaboradores... E, assim, acabam por desvirtuar por completo o movimento em questão, que muitas vezes congrega pessoas que se dedicam verdadeiramente a defender uma causa justa.

O que diferencia as pessoas de causas das pessoas que, generosamente, abraçam causas é que as primeiras vivem para lutar e as segundas põem a vida ao serviço de uma determinada ideia em que acreditam. Uns são completamente irracionais; outros, lúcidos. Uns são desequilibrados; outros, perfeitamente sãos de espírito. Mas os vampiros esgotam-se na militância feroz, na conversão dos outros. A causa em si não tem qualquer importância para eles. Aliás, por vezes, acabam por abandonar a luta em prol de outra melhor. E depressa deixam de pregar uma verdade, para pregar outra. Afinal de contas, o que interessa é pregar.

Talvez seja mais fácil perceber a devastação que uma pessoa de causas consegue fazer à sua volta se eu der um exemplo fictício. Imaginemos a A e B, ambos divorciados e com filhos de anteriores casamentos. A, uma pessoa de causas, quer converter B, o elemento fraco. Não lhe basta ser apenas A + B, deseja claramente uma fusão AB. A forneceria o motor da relação, B a carroçaria. Infelizmente, B não parece interessado na causa de A. O problema é que A cresceu como uma pessoa de causas, não consegue libertar-se do esquema mental castrador que lhe foi incutido na infância. Não consegue abandonar a sua prótese, apesar de já não precisar dela. A única solução possível é, então, abraçar uma nova causa passível de interessar a B. Na qual, com um pouco de esforço, B se reveja.

Suponhamos que A escolhe a causa da alergia ao glúten, tão em voga. É uma causa nova, perfeitamente justa, algo desconhecida, mas com um número de adeptos crescente. Os filhos de A passam de imediato a ser alérgicos ao glúten, oferecendo-lhe entrada directa no “Grupo de apoio aos pais de crianças alérgicas ao glúten”. E por que razão A escolheu os filhos como vítimas-alvo e não a sua própria pessoa? Porque as crianças são mais facilmente manipuláveis do que os adultos (principalmente se também tiverem crescido na luta), sendo por isso simples fazer aparecer falsos sintomas de alergia. Por outro lado, os pais de crianças que padecem de um problema são não apenas vítimas, como também mártires. Vai-se a ver, esta segunda causa até se revela bastante melhor do que a primeira. Há aqui luta para uma vida inteira e mais além. Por extensão, os filhos de B também têm de passar a ser alérgicos, embora nunca tenham mostrado quaisquer sintomas. É aqui que entra em campo o discurso sectário de A, bem polido ao longo dos anos, e a tendência para ser um pau mandado de B. Em breve, teremos duas pessoas unidas pela luta, várias crianças supostamente vítimas de um sintoma qualquer contra o qual é preciso concentrar esforços e diversas pessoas à volta convencidas de que têm o dever de se unir a esta causa para defender as pobres crianças. Está montada a guerra. Ah… e temos também C e D, os outros pais das crianças alérgicas, claramente torturadores porque lhes continuam a dar glúten.

Agora, imaginemos que D fica farto deste clima e decide capitular, entrando em contacto com B e deixando de dar glúten aos filhos só para tentar evitar que dêem todos em doidos. Antes glúten free que esquizoides. O que pensam que aconteceria? Obviamente A entra em pânico porque receia que B perceba a cabala. Lá está... o perigo não é perder a causa em si (neste caso, bem vistas as coisas, até seria ganhar). O maior risco é perder a razão de vida, a devoção a uma luta eterna maior do que todos os envolvidos. Um pouco como um soldado a soldo, que luta ao lado de quem pagar mais. Mas que tem de lutar, porque não sabe fazer mais nada na vida. Parar é morrer.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Vasco e o sexo

(ou as limitações do saber enciclopédico)




O Vasco ainda não manifestou qualquer interesse pelo sexo oposto. Melhor dizendo, o Vasco ainda não tem consciência de que “o sexo oposto” existe. Tem tantos amigos como amigas, de todas as idades, brincando com uns e com outros, indiscriminadamente. Por vezes, à saída da escola, entrega-me papelinhos muito bem dobrados com declarações de amor inflamadas e pedidos de namoro reiterados. Papelinhos rabiscados de várias cores, cheios de corações. Acho que não sabe bem o que fazer com eles, mas custa-lhe mandar aquilo para o lixo. A mim também, tenho uma caixa cheiinha deles. E lá vai andando, esquivando-se o melhor que pode às investidas femininas. Se há pessoa que aprecia a popularidade e que se esforça ao máximo por agradar a todos, é o meu filho Vasco. Desde que a sua colecção de Gogos ultrapassou as várias centenas, todos os dias leva Gogos velhos para a escola para dar aos colegas que não têm nenhum. Em especial, aos meninos mais pequeninos do jardim-de-infância. Adora que o bajulem, que o venerem. Adora ser conhecido. Fica todo ufano quando as mães lhe agradecem e comentam que é um rapaz muito simpático. “Gosto de ser amável. Simpatia gera simpatia”, diz-me o meu pequeno filósofo de trazer por casa.

Isto para explicar que o Vasco ainda está na fase dos afectos. Olho para ele e tenho imensa dificuldade em acreditar que já vai para o 4º ano. É um miúdo muito meiguinho, algo imaturo para determinadas coisas. Se calhar não é bem imaturidade, é mesmo uma certa alienação consciente de tudo o que fuja aos seus centros de interesse: música, ciências, astronomia, animais, geografia, história (em especial, o Egipto antigo). E a literatura, claro. O Vasco anda sempre com um livro qualquer atrás. Quando um assunto lhe interessa, tenta adquirir o máximo de conhecimentos possível. Se não lhe interessa, ignora completamente. Nunca se interessou por aqueles temas “tipicamente de rapazes”, como os dinossauros ou os carros, por exemplo. Ou o futebol, que abomina. A sexualidade também nunca pareceu interessar-lhe. Os “factos da vida”, a reprodução, não lhe suscitam a mínima curiosidade. Eu limito-me a acompanhar estas paixões, não tento introduzir novos temas. Contrariamente ao meu amor que tem sempre algo na manga. Agora, são os filmes antigos, na tentativa de combater a paixão familiar e secular pelo Star Wars. Já tentei explicar-lhe que é inglório, mas ele insiste.

No outro dia, quando estivemos no Centre Européen do Cheval, tive de lhe dar umas explicações rápidas sobre reprodução animal. Sobre reprodução, tout court. Mas aquele não era nem o momento, nem o local mais adequado. Quando tentei voltar ao assunto mais tarde, porque percebi que o Vasco não tinha percebido bem a coisa, ele desviou a conversa. Não sei se por falta de interesse, se por pudor. Decidi não insistir e mudar de abordagem. Fui sozinha à biblioteca buscar uns livros sobre sexualidade… humana, não animal, obviamente. Tive alguma dificuldade em escolher, admito. A oferta era muita, bastante variada. Por outro lado, os livros iam dos 5 aos 8 e, depois, dos 9 aos 12. Ou seja, tive de escolher se queria um livro mais infantil ou já mais crescido… e explícito. Os primeiros pareceram-me demasiado simples, trouxe dois dos outros. Quando cheguei a casa, deixei-os em cima da cama do Vasco. E disse-lhe, assim, como quem não quer a coisa, que tinha trazido uns livros para ele sobre sexualidade. “Sexo?!”, perguntou-me, todo corado. Respondi-lhe com ligeireza, sem o encarar olhos nos olhos: “Exacto. Acho que ficaram algumas coisas por explicar, depois do que vimos. Se quiseres ler os livros, estão aí... Depois, se tiveres dúvidas, podes falar connosco.”

Passou esse fim-de-semana a ler os livros. No quarto, no carro, à mesa, na casa de banho, enquanto andava. Leu os dois de uma ponta à outra, sem parar. Observou atentamente as ilustrações. Nós não ligámos muito, deixámo-lo estar. No primeiro dia, apareceu-me aqui, em baixo, de repente. Perguntou se o irmão já tinha entrado na puberdade. Respondi-lhe que sim e ele foi a correr para o quarto do Diogo. “A mãe disse que já tinhas entrado na puberdade…” Quando o irmão confirmou, atirou-se nos braços dele, emocionado. “Ohhh… estás a transformar-te num homem!!!” O Diogo largou a rir. No segundo dia, veio dizer-me que já tinha lido tudo. Que podia devolver os livros à biblioteca. “Tens alguma pergunta que queiras fazer?”. Disse-me que não, que tinha percebido tudo. Até tinha percebido que eu já tinha feito sexo duas vezes. “Duas vezes?!”, perguntei-lhe espantada. “Duas vezes, claro! Então, tu não tens dois filhos?!”

Algo me diz que vamos ter de voltar a este assunto, um dia destes. Aparentemente, o saber enciclopédico tem as suas lacunas. Por enquanto, acho melhor esperarmos mais um bocadinho…

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Nasceste-me há 14 anos

 (porque por mais longe que estejamos,

celebramos sempre o 10 de Junho)


 

Nasceste-me há 14 anos. Há já 14 anos. Podia dizer-te que o tempo passou a voar, mas seria mentira. Cada ano que passou foi vivido intensamente. Nenhum foi fácil. Tu não és uma pessoa fácil. E ainda bem. Viver ao teu lado tem sido uma aventura e tanto. Uma aventura que eu não trocava por nada deste mundo. Foram, sem dúvida, os melhores 14 anos da minha vida. Porque há uma vida antes de ti e uma vida depois de ti, sabes? E a vida depois de ti é infinitamente melhor.

Nasceste-me há 14 anos. Apenas há 14 anos. E eu ainda não concebo uma vida longe de ti. Passámos um ano difícil. Ambos fincámos pé nas nossas decisões. E, apesar de compreendermos e respeitarmos os motivos do outro, a nossa relação sofreu alguns abalos. Mas não passou disso mesmo… abalos, as bases ficaram intactas. Eram sólidas. Eu ganhei esta batalha. Tu aceitaste a derrota com um sorriso, há uns meses atrás. Acho que nunca te agradeci por isso. Porque tu mudaste. Não sei onde vais buscar a força que tens. Consegues dar a volta por cima e lutar pela tua felicidade. Sempre acreditei que tu eras feliz aqui. Que tinhas tudo para ser feliz aqui. Que tínhamos tudo para sermos felizes aqui, juntos. Hoje, se dúvidas houvesse, percebi que tinha razão. Às vezes, as mães conhecem melhor os filhos do que eles próprios.

Nasceste-me há 14 anos. Foi o dia mais feliz da minha vida. Mas o dia de hoje também foi muito especial, sabes? Tiveste a tua primeira festa de anos a sério, com gente da tua idade. Talvez não da tua idade mental, mas da tua idade. Hoje, o menino ostracizado, o menino vítima de bullying, o menino que estava sempre à margem, vingou-se. Hoje, fiquei a ver-te descer o quintal, expectante com o que tínhamos preparado para ti. Fiquei a ver-te rodeado de amigos, a rir a tarde toda. Amigos que conhecemos bem, que nos tratam por tu. Fiquei a ver-te abraçado à tua namorada, tão doce. A mostrar-lhe a casa, orgulhoso. Fiquei a ver-te feliz, a abrir as prendas que passámos meses a escolher para ti. Fiquei a ver-te, apenas. Tenho tanto orgulho em ti! Orgulho na pessoa em que te estás a tornar, devagarinho. Amo-te daqui até Tatooine e mais além.

 

terça-feira, 9 de junho de 2015

Toda uma aventura

(onde nos damos conta de que desperdiçámos um bocadinho a vida)


 

Dei-me conta de que devo ter sido uma mãe absolutamente insuportável, nos primeiros meses dos meus filhos. Vá… sejamos honestos, nos primeiros anos dos meus filhos. Não conheço termo melhor do que “mãe-galinha”, mas cheira-me que devo ter ido muito para além disso.

Na primeira noite que ficámos em casa do meu irmão, achei por bem oferecer-me para ficar com o bebé para eles poderem espairecer um bocadinho. Perguntei por delicadeza, tipo pergunta retórica. Nunca pensei que aceitassem. Eu sei que não teria aceitado. Mas eles aceitaram, para minha grande surpresa.

Antes de sair, a mulher do meu irmão explicou-me tudo direitinho. As rotinas e os biberons. O bebé dormia tranquilamente, só devia comer dali a umas horas. A verdade é que não prestei muita atenção. Nunca pensei que eles demorassem tanto tempo. Eu sei que não teria demorado.

O meu amor estava meio abananado com os anti-histamínicos que tinha tomado e foi-se deitar. Eu fiquei por ali, a ler. As horas passaram. Às tantas, o bebé acordou. Esfomeado. Levantei-me calmamente para ir fazer um biberon. Não me lembrava de nada do que a Elke tinha dito, mas pensei que a embalagem do leite em pó devia ter instruções. Esqueci-me de um pequeno detalhe… as instruções estavam, obviamente, em holandês. Os pais, fora. O bebé chorava. O Belga dormia. Comecei a ver a minha vida a andar para trás. Os últimos biberons que fiz para um bebé tão pequenino remontam a 2001. O Vasco mamou até passar para uns leites tetra-pack. Bom, números são números e, bem vistas as coisas, eu só precisava de saber as quantidades. Quantos quilos, quantos mililitros de leite, quantas colheres de leite em pó. Safei-me. Não sei se por ser mãe, se por ser tradutora-adivinhadeira de línguas estranhas, se por ser desenrascada.

O meu sobrinho é um amor de bebé. Riu-se muito, enquanto bebia o biberon, meio sonolento. E, quando a crise tinha passado, chegaram os pais. Fez-lhes bem a noitada, vinham bem-dispostos. E eu pensei que, afinal de contas, bem podia ter saído mais vezes, quando os meus filhos eram pequenos.

Na manhã seguinte, sugeri ao meu irmão e à mulher levar o Luca a passear no carrinho. Eles podiam ir à vidinha deles, que nós tratávamos de tudo. Nunca pensei que eles aceitassem, claro. Uma coisa é tomar conta de um bebé à noite, outra coisa é durante o dia. Eu sei que não teria aceitado. Mas eles são muito mais espertos do que eu era. Aceitaram de imediato de sorriso aberto.

Eis-me, então, na rua com um bebé e o Belga em pânico, porque íamos com um bebé. Passado pouco tempo, estávamos os três em pânico. O Luca porque decidiu que, já que os tios o tinham levado a passear, tinha estoicamente de aguentar acordado. Acordado e a chorar, como não podia deixar de ser. O Belga porque achou que o miúdo estava claramente em sofrimento e decidiu ser empático. Em menos de um nada, estavam os dois em sofrimento. E eu a ter um ataque de nervos, sem saber para onde me virar. Decidi pegar no bebé e continuar o passeio com ele ao colo. O Belga ficou para trás, a olhar para o carrinho sem saber o que fazer. “É só empurrar”, disse-lhe meigamente. E ele lá foi, a empurrar com a ponta dos dedos de uma só mão, não fosse o carrinho ser radioactivo.

Embalado, o bebé adormeceu num instante. O Belga ia tão concentrado na sua missão de empurrar aquele mastodonte contagioso apenas com o poder da mente, que se esqueceu das alergias. Aproveitei a acalmia dos espirros para tentar pôr o Luca de volta no carrinho. Deparei-me com um problema. Ele tinha adormecido agarrado à fralda que eu tinha usado para o proteger do sol. Adormeceu tal e qual como o pai dele, quando era bebé. Portanto, deitei-o assim mesmo. E, com a outra ponta da fralda, tapei-lhe o toutiço careca. Mas o Belga entrou outra vez em pânico. Que na cabeça se usavam chapéus e não fraldas. Que o bebé ia sufocar com aquilo na cara. Que mais valia tê-lo aos gritos do que moribundo. Decidi procurar debaixo do carrinho por um ó-ó e um chapéu para o bebé, antes que o homem tivesse uma apoplexia nervosa. Lembro-me que, quando saía com os meus filhos bebés (e já não tão bebés…), levava sempre a casa atrás. Tinha tudo em duplicado: mudas de roupa, fraldas, chuchas, toalhetes, chapéus, brinquedos, comida, etc. Mas debaixo daquele carrinho não havia nada. Nada de nada. Percebi por que diabo de razão os carrinhos dos meus bebés eram muitooo mais pesados do que aquele…

O dia estava lindo, quente e ensolarado. Amesterdão em peso parecia ter saído à rua. Começámos finalmente a apreciar o passeio. O meu amor lá acabou por se distrair, com a beleza dos canais. Volta e meia espreitava o Luca no carrinho, mas nunca ousou tirar-lhe a fralda da cara. Como toda a gente sabe, pior do que um carrinho radioactivo, só mesmo uma criança radioactiva. Ri-me interiormente. Parecia mesmo uma cena tirada do Monsters Inc..

Decidimos atravessar um canal, para irmos beber um café numa esplanada toda hippiecoiso que parecia ser gerida por umas tias de Cascais. Comemos o melhor bolo de tangerina e os cafés mais merdosos do mundo. Mas soube-nos pela vida, apesar de o serviço ser de uma lentidão nunca antes vista. Decidi mandar uma mensagem à minha cunhada, só para lhe dizer que estava tudo bem. E para lhe dar os parabéns por ainda não me ter telefonado mil vezes a perguntar se o bebé estava bem. Eu sei que o teria feito. Ehhh… isto se tivesse deixado alguém ir passear com os meus bebés, coisa que obviamente nunca teria acontecido.

Depressa percebi que me tinha esquecido do telemóvel em casa. O que explicava perfeitamente a ausência de sms da Elke. Decidimos voltar para trás, não fosse a rapariga estar naturalmente em pânico por termos desaparecido tanto tempo. Eu sei que estaria. Ou, pior, no caso de o Luca acordar com fome.

No meio do stress do bebé que não dormia, que chorava, que queria colo, que dormia com uma fralda… andámos muito mais do que era suposto. Voltámos para casa a toque de caixa, quase a correr. O Belga até se esqueceu da radioactividade e deu uma ajuda a empurrar o carrinho. Chegámos a casa do meu irmão meia hora depois, completamente esbaforidos. Mas a casa estava vazia. Fui a correr para o meu telemóvel… zero mensagens. Já o bebé estava a dormitar no berço há imenso e nós repousadíssimos da corrida, quando eles chegaram. Quando contei a nossa aventura, a Elke respondeu-me a rir que não estava nada preocupada porque sabia que eu era uma pessoa experiente. E é a mais pura das verdades. Em todas as situações, mais ou menos stressantes, eu soube sempre como me desenrascar. Por mais que o tempo passe, há coisas que não se esquecem. Há, principalmente, segurança. Bom senso feito de muitos anos de experiência. O que nunca houve foi esta maneira descontraída e feliz de viver a maternidade, infelizmente. E a minha cunhada, acabada de ser mãe, ensinou-me uma lição. Já vai tarde, mas não faz mal. Não deixa de ser engraçado olhar para trás e ver que também eu cresci, enquanto mãe.

 

[ Também não deixa de ser engraçado passar uns dias a mimar um bebé, a sentir aquele cheirinho bom e a ouvir aqueles barulhinhos deliciosos, e ficarmos felizes por nos virmos embora. Aliviados por pensar que ainda bem que não somos nós. Que aquela fase da vida em que vivemos as 24 horas do dia em prol de um pequeno ser já passou definitivamente. ]

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A nova geração

(viemos num pulinho a Amesterdão,

conhecer o novo membro da família)



Somos quatro, três raparigas e um rapaz. E eu, que sempre sonhei ter uma sobrinha para estragar de mimos, sou tia de três adoráveis rapazes. Ou seja, a nova geração da família é exclusivamente masculina.

A minha irmã mais velha tem o Pedro, quase da idade do Vasco. Apesar de viverem a tantos quilómetros de distância, estes dois primos adoram-se. São mesmo companheiros. A minha outra irmã mais velha adoptou um menino, no ano passado, que vai fazer agora três anos. É a coisa mais querida do mundo. Até o meu amor, que é a única pessoa que eu conheço completamente imune ao charme infantil, ficou apaixonado. E, agora, o meu irmão mais novo teve um bebé, o Luca.

É estranho ver um miúdo a quem demos colo e mudámos tantas fraldas no papel de pai. O meu irmão mais novo foi uma espécie de primeiro filho. Foi a primeira pessoa que me roubou o coração e me transformou numa mãe em potência. Só que entretanto cresceu, sem que eu desse por isso. Nós as três, as mais velhas, já eramos mães e ele continuava a ser apenas o meu irmãozinho.

É estranho este amor, este sentimento de pertença, que sentimos de repente por um pequeno ser que acabámos de conhecer. Que ainda mal é gente, mas já conseguiu metamorfosear o meu irmãozinho num pai. Agora, já não somos apenas nós. Crescemos. Somos os outros, a geração anterior. Cedemos o lugar aos seguintes, os nossos filhos. O ciclo está completo. Fechou-se. A família tem agora toda uma nova geração a desbravar caminho. Cinco homens com o mundo inteiro a seus pés. Não consigo deixar de sentir assombro. E orgulho, um orgulho imenso.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Só por curiosidade

(ou o meu espírito nómada a fazer-me cócegas)


 

Não ligo muito às estatísticas do blogger. Aos scores, por assim dizer. Não ligo ao número de visualizações, nem às mensagens mais lidas. Nem a tudo o resto, que nem sei bem o que é. Eu e a matemática somos arqui-inimigas desde sempre.

Mas esta minha tendência para ter um pé no mundo leva-me a ver diariamente um dado estatístico: o público. Ou seja, gosto de saber em que recantos deste nosso planeta sou lida. Não sei bem porquê. Talvez porque me permita sonhar. Imaginar outras vidas, outras pessoas. Provavelmente, outros portugueses que, tal como eu, escolheram viver além-fronteiras. Ou, se calhar, foram só ali num pulinho, de férias. Não sei.

Há países onde nunca fui lida e tenho pena, confesso. Digamos que são os meus países fetiche. A Mongólia, claro. O Chile. Alguns países de África. Ou os países nórdicos.

A primeira vez que me passou pela cabeça zarpar com os meus rapazes foi para a Noruega. Vá-se lá saber porquê! Ainda andei a ver cursos de línguas na Nova e tudo. Mas depois desisti. Não tinha lá ninguém, não tinha tempo para aprender a língua… Era muito complicado.

Há uns tempos, comecei a ser lida por lá. E o meu coração ficou mais alegre. Não sei quem sois, vós que me ledes na Noruega. Não sei porque estais aí. Será de férias? Será para sempre? Para sempre é tanto tempo! Não sei quem sois, mas saibam que vai daqui um abraço bem apertado. E um beijinho, vá... que eu sou uma criatura algo beijoqueira. :)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Prendas de anos... ehhh...

(onde se mostra que se está entregue aos bichos)


 

Ainda não vos falei da montanha de prendas que recebi nos meus anos. Acho que é porque ainda as estou a ruminar. Foram prendas bastante… Como dizer? Bastante sui generis.

O meu amor foi em missão com o Vasco ao centro comercial no Luxemburgo, onde lhe deu carta-branca. O Diogo, como é uma criatura esperta, decidiu que não precisava de passar por essa vergonha. Ofereceu-me um passeio a cavalo com o meu amor pelos bosques de Malempré, onde nos apaixonámos. Às vezes é bom ter um filho já crescido. E sensato. Bastante mais sensato que os outros dois, diga-se em abono da verdade.

Ora, então, que prendas escolheu a coisa pequena? Uma rede verde-alface para pôr no quintal. Um termómetro exterior com um passarinho para pôr no quintal. Um coelho de resina com uns olhos muito fofinhos, tal como os seus (Vasco dixit)… para pôr no quintal, como é óbvio. Por esta altura, já devem ter percebido que o filho pequeno aprecia bastante este espaço da casa.

Depois, recebi uma forma para fazer ovos estrelados – os preferidos do Vasco – em forma de coração. E moldes para fazer bombons de chocolate com formas de animais. Escusado será dizer que a coisa pequena adoraaaaa chocolate.

Recebi ainda um DVD de acção (obviamente o meu género de filme) e uma cesta para guardar os folhetos publicitários que costumam ir automaticamente para o lixo (especialmente os das lojas de brinquedos).

Ainda não estava refeita desta avalanche que coisas extremamente úteis, quando recebi o resto das prendas que o filho pequeno escolheu. Deixo-vos as fotografias. Como se costuma dizer, uma imagem vale mais do que mil palavras. E, para vos ser sincera, naquele momento eu fiquei mesmo sem palavras…

 
 
 
 Bisca e Sueca, dois mandarins que fazem uma chinfrineira desgraçada.
Mais conhecidos por Histérico 1 e Histérico 2. Diz que vivem 8 anos, para mal dos meus pecados…

 
 
 Loulou verde. O Loulou amarelo deixou de piar insistentemente pelo defunto apaixonado,
 mais ainda não dá muita confiança a este.

 


Mignon, o hamster-anão mais amoroso do mundo.
Divide apartamento com a Constança que, com uma única lambidela, o lava de alto a baixo.


[ O meu amor salvou o dia com a prenda dele. Igualmente sui generis, bem entendido. Outra coisa não seria de esperar deste homem tão especial. Um torno gigante para pôr na minha mesa de trabalho, com o qual sonhava há anos. ]

terça-feira, 2 de junho de 2015

Fizeram-se os dias assim

(onde se faz o elogio do inesperado

para alegria de um e desespero do outro)


 

Anunciaram sol para o fim-de-semana, portanto decidimos trabalhar no quintal. O Vasco ficou todo contente. O adolescente da casa resmungou. Parece que tinha de estudar.

Só que nos levantámos tarde e a más horas… Mudámos de planos, inesperadamente. Decidimos aproveitar a tarde para passear. O Vasco ficou todo contente. O adolescente da casa também. Só faltou começar aos pulos, por se ver livre dos trabalhos forçados. Afinal, não tinha assim tanto para estudar.

O meu amor sugeriu irmos até Crupet, um sítio pitoresco não muito longe. O Vasco ficou todo contente. Mas o adolescente da casa começou a ver a vida a andar para trás, porque se impunha uma hora de carro.

Chegados a Crupet, não vimos nada de muito pitoresco. Excepto talvez a torre da Rapunzel. Não desistimos e fomos passear pelos campos ali à volta. O Vasco ficou todo contente. O adolescente da casa protestou veementemente. Como tínhamos dito que íamos fazer turismo, tinha calçado os ténis novos.

 
O passeio soube-nos a pouco e o meu amor lembrou-se que estávamos perto de Ciney, que ainda nenhum de nós conhecia. O Vasco ficou todo contente. O adolescente da casa começou claramente a entrar em desespero. Ninguém o tinha preparado para aquilo. Porque não lhe tínhamos dito que, afinal, íamos até ao fim do mundo, porque nem sequer tinha o iCoiso carregado e nós precisávamos de ter o GPS ligado, porque já era tardíssimo, porque ainda tinha tanto que estudar...
 
Chegados a Ciney, já não o podíamos ouvir. Decidimos calá-lo com um cachorro-quente, que é sempre uma aposta ganha. Demos uma volta pela cidade mas, com o turismo fechado, não sabíamos muito bem para onde ir, no Domingo à tardinha. O meu amor decidiu rumar a Dinant. Já que tínhamos chegado até ali, era só mais um pulinho. O Vasco ficou todo contente. O adolescente da casa perdeu de imediato a boa-disposição recém-conquistada graças à barriga cheia. E lançou a única cartada que lhe restava: no dia seguinte tinha escola e já era tãoooo tarde…
 
 
Ignorámo-lo e lá fomos à aventura até Dinant. Como é evidente, quando chegámos já estava tudo fechado. Inclusivamente a belíssima cidadela antiga, no cimo da cidade. Nada que nos estragasse o passeio, que a arquitectura e o ambiente de uma terra nunca fecham portas. O adolescente da casa começou por suspirar de alívio, porque o teleférico parecia tenebroso. Mas, à medida que íamos deambulando pelas ruas, começou novamente a resmungar. Tínhamos dito que ia passar o dia a trabalhar no quintal e tinha vestido roupa velha, nada adequada a tão citadino passeio. Apesar dos ténis novos, agora completamente sujos de lama.
 
Estávamos a passear calmamente à beira rio, quando decidimos alugar um barco a motor para dar a volta ao rio que banha Dinant. Os preços eram convidativos. E um dia não são dias. Ainda tínhamos uma hora de passeio pela frente até ao cair da noite. O Vasco ficou todo contente. Foi o momento de glória do adolescente da casa, que teve autorização para ir aos comandos da embarcação. Até se esqueceu de desencantar algo de mal para dizer.
 
Já estávamos a voltar para o carro, quando nos apeteceu repentinamente fazer a loucura total. Decidimos abrir a época do prato nacional: mexilhão com batatas fritas. O Vasco ficou todo contente. O adolescente ainda nem se tinha refeito do passeio de barco, já estava à mesa a alambazar-se com o segundo prato nacional belga: almôndegas com batatas fritas. E foi vê-lo a rir-se e a falar pelos cotovelos o resto da refeição.
 
Voltámos para casa bastante tarde... bem mais tarde do que o recomendado, tendo em conta que no dia seguinte havia escola. O pequeno deitado em cima do grande, ambos cansados e felizes. Antes de adormecer, o adolescente implicante agradeceu efusivamente o dia tão bem passado. Admitiu que lhe custa deixar-se guiar pelo imprevisto, uma constante quando se vive connosco. Sabemos onde começamos, nunca sabemos como acabamos. Mas que é sempre tão, tão, tão bom…