terça-feira, 30 de agosto de 2016

MacGyver e a câmara-de-ar

(onde uma velha bicicleta salva a máquina de lavar

 e a casa ganha um nome)



Neste Verão algo atribulado, avariou-se também a máquina de lavar roupa (doravante, designada por ‘A Máquina’). Mas não foi uma avaria qualquer. Parecia uma cena poltergeist. Talvez seja de referir que A Máquina sempre teve vontade própria e só trabalhava quando lhe apetecia. Bom… quando lhe apetecia e como lhe apetecia, o que é bastante pior. Ou seja, escolhendo horas e programas a preceito, independentemente das minhas indicações. A malta lá se ia entendendo, com alguns altos e baixos. (Confesso que uma vez afiambrei-lhe um pontapé valente.) Até que A Máquina decidiu começar a aquecer, a aquecer, a aquecer… E a rasgar t-shirts. À frente. De alto a baixo. Mas só as t-shirts do Diogo. As mais giras, o que o isentou de imediato de possíveis culpas. Declaramo-nos vencidos.

A vantagem de já termos vivido momentos difíceis na vida, é que aprendemos que tudo acaba por passar. E que nós sobrevivemos sempre. Aquela história do “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe” é mesmo verdade. A nossa reconstrução começou do zero (a minha começou bastante abaixo do zero…), quando aterrámos na casinha vazia de Malempré. Durante muitos meses, não tínhamos máquina de lavar roupa. Portanto, quando os rapazes reclamaram por estarmos sem máquina de lavar, recordei aqueles primeiros tempos. De facto, não é um bem essencial. Consegue-se perfeitamente viver lavando a roupa à mão, num salon lavoir ou em casa de amigos. O Diogo perguntou apenas porque não comprava uma máquina nova a prestações. Aproveitei para lhe dar uma pequena aula de economia doméstica… que, na realidade, se aplica à vida, tout court: “Tens dinheiro para comprar? Compras. Não tens dinheiro para comprar? Juntas primeiro, compras depois”. Só se abre uma excepção para casas e carros. A bem dizer da verdade, nós nem carro tínhamos nesse momento…

Um dia, aproveitámos uma ida a Liège no carro do meu sogro para passar numa loja de electrodomésticos em segunda mão. Havia muito por onde escolher, entre os 250 e os 70 euros. Umas mais recentes, outras mais antigas. Umas melhores, outras bastante piores. Apaixonei-me por uma Whirlpool AA+ de 8 kg. Era a mais barata, porque estava toda enferrujada em baixo. O meu amor insistiu para levar a mais cara, mas eu finquei pé. Inventei logo ali a história de um jovem casal que tinha sido obrigado a pôr na casa de banho a máquina que tinham recebido como prenda de casamento, porque o primeiro apartamento que conseguiu alugar era minúsculo. Com tanta humidade e água à volta, acabou por enferrujar. Mas continuava a trabalhar perfeitamente, era um maquinão. Depois, a vida melhorou e o casal alugou uma casa maior para os seus 3 filhos. E compraram uma máquina nova a condizer com aquela perfeição toda. Mas aquele bicho era um verdadeiro achado… Os oito anos que passei em Letras devem ter valido a pena, porque o Belga acedeu a trazer a máquina enferrujada para casa. Fiz olhinhos de Bambi ao senhor da loja, que nos ajudou a pôr o mastodonte no carro (já disse que era uma máquina de 8 kg, certo?) e que nos emprestou um carrinho de transporte.

A viagem fez-se bem, mas tirar o mono do carro sem o partir todo foi o cabo dos trabalhos. Depois, não passava na porta da entrada. Decidimos, então, entrar pela garagem. Libertámos o acesso à casa das máquinas… o que implicou esvaziar um armário, arredá-lo, desaparafusar totalmente a porta que está condenada há anos, levar A Máquina para a garagem, instalar a nova e voltar a pôr tudo no sítio. Demorámos horas e ficámos esgotados. Quando ligámos a nova máquina de lavar, o painel iluminou-se como se fosse uma árvore de Natal. Tive vontade de bater palmas. Decidi reparar a parte enferrujada antes de a instalarmos definitivamente. O meu amor ia tendo um ataque de nervos, mas decidiu mais uma vez cooperar. Foi depois desta aventura, quando estávamos finalmente a preparar-nos para jantar, que o meu irmão apareceu para nos entregar o cão… Menos mal, obrigámo-lo a ajudar-nos a pôr A Máquina no carro, para a levarmos para a reciclagem.

No dia seguinte, fiz uma máquina de roupa inaugural (felizmente, caso contrário nunca teria a capa do édredon na corda para poder salvar o D. Fuas). E percebi a razão de tanta ferrugem. A máquina de lavar deitava água por todos os lados. Rios de água. Tive de dar a mão à palmatória e admitir que tinha sido uma péssima compra. A pior compra de todos os tempos. Que o melhor era devolvê-la à loja e trazer a mais cara que lá estava… Mas o meu amor recusou-se a voltar a fazer aqueles malabarismos todos outra vez. Aquela era a nossa nova máquina de lavar roupa, só tínhamos de pô-la a funcionar. Simples. Começou por chamar um técnico. Depois de passarmos um dia às voltas na Net, porque já ninguém arranja nada neste mundo. O técnico esventrou a máquina e deu o diagnóstico, sem se dignar a apresentar orçamento: o motor estava impecável, mas era preciso substituir a borracha da porta que tinha vários cortes. Resumindo, o custo não compensava o arranjo, mais valia devolvê-la à loja e comprar uma máquina nova (nesta parte, não estávamos completamente de acordo). O meu amor agradeceu efusivamente, concordou com tudo … e acompanhou o homem à porta muito depressa, sem sequer o deixar montar a máquina. Em seguida, anunciou orgulhoso que ia arranjar o bicho. Mas, primeiro, achou por bem ver uns vídeos no youtube. Aparentemente, para chegar ao cerne do problema, era preciso desmontar o painel frontal. E abrir caminho até chegar à porta. Calculo que o meu amor tenha visto vídeos em todas as línguas que conhece… o que deve dar uns oito ou nove vídeos. Parece que há uns artistas que ensinam entusiasticamente a montar e desmontar máquinas de lavar roupa. Fica a dica para quando tiverem insónias, OK?

Dois dias depois do mono enferrujado entrar em casa, tínhamos uma máquina perfeitamente desmontada graças aos youtubers. Continuávamos era sem carro e já tínhamos sido todos mordidos pelo Yogi. O meu amor estava com uma alergia horrorosa. Faltava a solução do problema. Por mais que procurássemos, não encontrámos uma borracha nova à venda na Net. Nem sequer uma borracha velha. O Belga decidiu, então, libertar o MacGyver que há em si. Admito que, desta vez, não consegui reprimir uma gargalhada… embora o meu amor seja capaz de arranjar uma série de coisas, porque é um “engenhocas”, como se costuma dizer. Ou um “homem muito habilidoso”, como diria a minha avó Clarisse, que era uma senhora elegante. A solução milagrosa do meu MacGyver passava pela câmara-de-ar furada da bicicleta do Diogo, que jazia há meses na garagem. A manhã seguinte foi passada a recortar minuciosamente a câmara-de-ar. À tarde, tapou todos os furos da borracha da porta com os recortes colados com uma espécie de vedante. A obra de arte ficou 24 horas a secar. Nem conseguia mostrar-me céptica e continuava a rir. Mesmo que o truque desse resultado, o homem nunca conseguiria voltar a pôr todas aquelas peças no sítio, mais os fios que saíam por tudo quanto era lado. É que o mono enferrujado é um bicho altamente tecnológico. Oito ou nove vídeos depois (parece que há uns vídeos com desmontagens e outros com montagens… fica a dica, caso a insónia seja crónica), a máquina estava montada. E não sobraram peças.

Mal tive ordem, fiz uma máquina de roupa. OK, eu admito… pus umas toalhas velhas a lavar, sem sequer pôr detergente. Não me estava a apetecer andar a apanhar espuma do chão. Mas o mono aguentou-se. Não verteu uma gota de água. Completamente estanque. Entretanto, já fiz muitaaaas máquinas de roupa. Desta vez, com detergente. A reparação do meu MacGyver está impecável. Temos uma Whirlpool AA+ de 8 kg por 70 euros a trabalhar na perfeição. Temos também uns recortes extra de câmara-de-ar guardados na caixa das ferramentas para alguma eventualidade… agora que conhecemos o seu imenso potencial. E o meu amor decidiu dar um nome à casa, em honra deste feito: “La petite débrouillardise”. Adoro! Assenta-nos a todos como uma luva, especialmente a ele, que é só assim o homem mais fantástico do universo e mais além.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Uns segundos

(onde se descobre uma máquina fotográfica 

que captou os instantes que precederam uma longa história)



Uns segundos depois desta fotografia ter sido tirada, D. Fuas Roupinho desencantou um osso enterrado. E rosnou baixinho, como quem diz: “O velho, aqui, sou eu. Enterrei este osso algures no Inverno de 2014, não te aproximes.” Mas o Yogi, que estava a passar umas férias em casa dos tios, decidiu responder do alto da sua juventude que ainda não aceita limites. Saltou-lhe ao pescoço, sem qualquer aviso prévio. Pela segunda vez na vida, vi o meu cão ser sacudido no ar como se fosse uma bola vazia. O Yogi estava tresloucado e abanava, abanava, abanava... D. Fuas soltava ganidos cada vez mais fracos. Mas era impossível soltá-lo.

Uns segundos antes desta fotografia ter sido tirada, eu tinha acabado de estender a roupa, no quintal. E foi isso que me safou. Fui a correr buscar a capa do édredon que estava na corda e atirei-a para cima do Yogi. Na versão oficial, dei-lhe um empurrão e consegui arrancar-lhe o Fuas da boca. Na versão oficiosa, dei-lhe um pontapé no lombo. (Lembrei-me do que tinha feito o meu vizinho em Malempré, quando o Fuas foi atacado pelo American Staff.) Em ambas as versões, o Yogi mordeu-me. Felizmente mordeu-me quando ainda estava perdido debaixo da capa do édredon. Felizmente a boca dele é grande e o meu pulso pequeno.

Muitos segundos antes desta fotografia ter sido tirada, o coelho tinha estado a apanhar sol no jardim. O parque ficou montado. E foi isso que me valeu. Quando finalmente consegui arrancar o Fuas, atirei-o para dentro do parque, para o pôr a salvo. Agarrei no Yogi ainda embrulhado e atarantado e levei-o para casa. Fui buscar uma ligadura para pôr no pulso. Não havia. A única que temos estava na mão do meu amor, que tinha sido mordido no dia anterior. Peguei em dois panos da loiça, um para mim, outro para o Fuas.

Muitos segundos depois desta fotografia ter sido tirada, D. Fuas Roupinho jazia no meio da relva. Um furo mesmo por cima do olho. Outro furo ao lado da jugular. Foi por pouco. Pouquíssimo. Amarrei-lhe o pano à volta da cabeça para estacar o sangue e embalei-o. Oito quilos de bicho que sobrevive a tudo. Oito quilos de D. Fuas que já passou por tanto. O caçador que o tratava mal. Um dono que não gostava dele e lhe bateu. E eu… eu que o entreguei a outros donos, quando vim para a Bélgica. D. Fuas teve de morder muita gente até voltar para mim. Nunca mais mordeu (excepto quando me zango com os rapazes). Deixou de fazer chichi quando alguém ralha com ele. Hoje, é um cão feliz. Disse-lhe isso ao ouvido muitas vezes, enquanto esperava que o meu amor chegasse. O veterinário estava fechado, tínhamos de esperar. Mas os anos que o meu amor passou em Veterinária foram suficientes para tratar o Fuas. Isso e o afecto enorme que ganhou a este cão. O nosso cão.

Semanas depois desta fotografia ter sido tirada, encontrei a máquina fotográfica perdida no quintal. Devo tê-la atirado para cima da relva, quando fui buscar a capa do édredon. O Yogi já voltou para a Holanda, depois de ter passado onze longos dias connosco. Não tivemos coragem de o pôr num hotel para cães. A verdade é que, uma vez completamente separado do Fuas, tornou-se um monte de pêlos pateta. Aliás, os pêlos eram tantos que o meu amor ficou com uma alergia como eu nunca tinha visto. Mas não teve coragem de ir para um hotel e deixar-me sozinha com dois cães, permanentemente separados por uma porta. Mais as cobras e os pássaros da vizinha, que estavam à nossa guarda. D. Fuas recuperou milagrosamente, como sempre. Um pouco ofendido connosco por ter deixado temporariamente de ser rei e senhor da casa. Do nosso colo. Do quintal, com os seus ossos escondidos. E da tigela da água. Eu também fiquei bem. A enorme nódoa negra (que, na realidade, até era verde) demorou muito tempo a desaparecer. Obrigou-me a contar esta história ao vendedor da Renault, que me olhava de forma suspeita. E ligeiramente apiedada. Como se eu fosse vítima de violência doméstica e precisasse de um carro para fugir com os filhos. E os cães. Talvez seja por isso que me deixou levar um carro, sem antes entregar o outro. Sem os papéis em ordem. Com uma matrícula falsa. Aqueles primeiros dias de Agosto com o Yogi foram infernais. (Creio que só faria isto pelo meu irmão. E definitivamente pela minha irmã mais velha.) Mas estou desconfiada que aceleraram imenso a compra do carro.


terça-feira, 23 de agosto de 2016

Processos subjectivos

(onde se organizam as ideias)



Ando há imenso tempo para escrever sobre a metamorfose que ocorreu na minha vida, porque não sei bem como fazê-lo. Na realidade, o pretérito imperfeito talvez se aplique melhor. Ou o gerúndio. Não aconteceu… vai acontecendo, aos poucos. É difícil falar de mudanças interiores, que não foram causadas por nenhum efeito exterior dramático ou urgente. É algo que vem de dentro, que vem de mansinho. Uma espécie de força telúrica que se impõe inexoravelmente. Naturalmente. Que começa por mudar a nossa visão do mundo. E, depois, a nossa forma de agir. Mas é um movimento tão subtil, tão lento, tão certo, que mal damos por ele. São processos subjectivos. Certezas inexplicáveis que criam raízes. Não somos nós que impomos o que quer que seja. É algo que se impõe a nós. E, de repente, parece certo. Faz sentido e dá sentido, numa tautologia perfeita que se auto-alimenta. Não consigo explicar melhor.

Suponho que seja mais fácil abraçar uma determinada filosofia de vida e, a partir daí, ir moldando o nosso comportamento. Irmo-nos adaptando a algo maior do que nós. Como se precisássemos de uma qualquer aprovação superior para adoptarmos mudanças inferiores. Como se só o todo pudesse justificar as partes. Tendemos sempre a etiquetar tudo, numa tentativa desesperada de dar nome e consistência a conceitos abstractos. De simplificar. De tentar ver na prática como se deve manifestar essa mudança, agarrando-nos à ideia falaciosa de que a práxis é medida única de avaliação. A práxis firmemente ancorada numa teoria geral, bem entendido.

Por exemplo, alguém decide que tem a obrigação de ser ecológico. Os motivos, neste caso, nem são muito importantes. Cresceu nesse universo. Cresceu num universo paralelo. Apaixonou-se por um ecologista. Por um filme, um livro, uma música. Um guru. E começa por destralhar. Rapidamente adere aos 3 R's: reduzir, reutilizar e reciclar. De permeio, adopta também o 4º R: restaurar. Mais o upcycling, que isto em “estrangeiro” até fica mais bonito. Ou o armário-cápsula, porque é sempre bom usar expressões que causem alguma estranheza e fiquem no ouvido. Já para não falar de invenções chocantes, como o copo menstrual. Quando dá por si, levou a coisa ao extremo e ei-lo adepto fanático do zero waste, a tentar desesperadamente condensar uma década de lixo num frasco de compota reciclado.

Talvez o exemplo mais abjecto sejam as mães. As boas mães, claro. As mães que deificam a função materna. Que criticam, culpabilizam, doutrinam. Que se esforçam por fazer às más mães o que estão terminantemente proibidas de fazer aos filhos, sob pena de a polícia da parentalidade positiva lhes cair em cima. Mães que defendem cegamente o parto natural, não medicamentado, não hospitalizado. O parto humano, dizem. Mas que defendem com a vida, se preciso for. A delas e a dos filhos. Que amamentam em “livre demanda” em exclusivo até passarem ao baby led weaning. Que não dão açúcares, nem alimentos processados. O rabanete detém a pedra filosofal. Que advogam a alimentação do paleolítico. E a educação também. Porque não dão ordens aos filhos, pedem-lhes que cooperem. Porque não batem, nem castigam, nem gritam, para não humilharem os filhos. Mas explicam. Explicam muito, estas mães. Até explicam que é normal as criancinhas baterem nos pais, apesar de nunca terem sequer apanhado uma sapatada na mão, porque é o “instinto animal”. Têm uma paciência infinita conquistada logo ao amanhecer, graças às corridas, ao ioga, à meditação. Aos alimentos naturais, biológicos, vegetarianos e ecológicos. Principalmente, graças ao mindfulness. Só assim conseguem educar pela positiva. Comunicar. Estimular. Trabalhar a auto-estima. As emoções. Os afectos. Por isso, dormem todos juntos. Como o homem das cavernas, lá está. O co-sleeping é que é natural. E os quartos montessori, para onde as crias se mudam quando entram na pré-adolescência.

Acho que poucas pessoas percebem isto, mas ser ateu tem muito mais a ver com rejeitar pensamentos pré-formatados e desenvolver um espírito crítico do que não acreditar em Deus. Ser ateu implica recusar filosofias de manada. Movimentos colectivos supostamente superiores. Adesões massificadas. Doutrinas da moda. Ser ateu implica abolir toda e qualquer forma de futilidade para ir ao cerne da questão. Num questionamento permanente que tem como único objectivo aprender a formular novas perguntas. Porque as respostas, no fundo, interessam muito pouco. Serão sempre temporárias. Até que um novo véu se levante e deixe entrever outra forma de conhecimento. A verdade hoje é uma, amanhã será outra. E ainda bem que assim é. O segredo está exactamente na mudança. Na capacidade de adaptação. Somos seres cambiantes, num mundo em constante transformação. Acho que, no dia em que parar de mudar, já não estarei cá a fazer nada. Estarei pronta para morrer e, definitivamente, não ir para o céu.

Tudo isto para dizer que mudei. Não foi nada brusco. Súbito. Imposto. Colectivo. Muito menos, doloroso. O que só prova que não é preciso sofrer para mudar. Não são necessárias experiências limite. Nem adoptar uma qualquer filosofia de vida, que nos indique o caminho. Acho apenas que cresci mais um bocadinho enquanto pessoa. Foi um conjunto de pequenas coisas que, aos poucos, começaram a fazer sentido na minha vida actual. Principalmente, na vida que quero ter no futuro. Eu e a minha família. Se tivesse que traduzir essa mudança numa só palavra seria simplicidade. E não vem de agora. Foi um processo que começou, creio, há cerca de um ano atrás. Mas que só agora estou a conseguir sistematizar e compreender. Para já, duas grandes vitórias. Duas vitórias colossais, permitam-me a total ausência de modéstia. A doença autoimune que me tinham diagnosticado em Outubro não se confirmou. Ou desapareceu, sei lá. Tive finalmente coragem para repetir todos os exames. E nem sombra de poliartrite. Há muitos, muitos, muitos, meses que a dor nos ombros não voltou a atacar. A tendinopatia calcificada não se curou por milagre, obviamente. Mas é apenas isso, nada mais. E eu aprendi finalmente a controlá-la, a driblá-la. Conheço os meus limites e não os ultrapasso, é muito simples. O outro triunfo é igualmente estranho. Mas como não acredito em milagres, convenci-me de que o meu corpo se tornou meu aliado. O bem-estar psicológico reflectiu-se de forma inequívoca no plano físico: a estirpe cancerígena do vírus do papiloma humano entrou em remissão espontânea. Estava farta de viver com esta bomba-relógio e insisti com o meu médico para fazermos a conização. Expliquei-lhe que estava finalmente pronta para tirar o que fosse preciso. E, após quase três anos, os resultados vieram bastante melhores. O meu ginecologista fez uma festa, eu continuava descrente. Mas as últimas análises vieram negativas. Nada de nada. Zero VPH. As probabilidades estatísticas, nesta altura do campeonato, eram ínfimas. Fiquei com uma sensação estúpida de superação pessoal, de capacidade sobrenatural do meu corpo que, verdade seja dita, só tinha sentido quando tive os meus filhos. A máquina está boa e recomenda-se, quarenta anos depois.

Estas duas vitórias deram-me que pensar. Mas tenho a dizer que foi um pensamento algo passivo, se é que isto faz algum sentido. Era como se houvesse um movimento qualquer que se tivesse posto em marcha cá dentro, independentemente da minha vontade. E o puzzle começou a montar-se, peça por peça. As coisas começaram a fazer sentido. A encaixar. Comecei a mexer-me. E a gostar de me mexer. O corpo desenferrujou porque deixei de ter medo dele. Emagreci naturalmente o que tinha ganho com os tratamentos de cortisona. Acho que rejuvenesci. Tive coragem para voltar à tradução e legendagem em part-time, porque agora sabia que não me iria perder no processo. Soube perfeitamente manter os hábitos de sono que demorei anos a conquistar. Ganhei financeiramente, claro. Ganhei sobretudo auto-estima. É isto que eu gosto de fazer, que eu sei fazer. Trabalhar numa área que adoramos não é bem trabalho, pois não? E, depois, o “trabalho verdadeiro”. Quando o meu chefe se demitiu, senti-me algo ao abandono. Entretanto, o centro de documentação ganhou vida própria. Ou será que fui eu que soube dinamizá-lo e dar-lhe um novo rumo? Outras portas estão a abrir-se. E, para quem começou uma “carreira” aos 38 anos, quando emigrou sozinha com duas crianças para um país estrangeiro, isto é para lá de fenomenal. O mais engraçado é que os bons ventos invadiram também a nossa casa. Dois anos depois da mudança, o velho casarão reflecte finalmente a alma da tribo que o habita. O nosso jardim está lindo! A nossa estufa ficou pronta, podemos começar a semear. E quem diz semear, diz tentar adoptar um estilo de vida mais saudável. Ainda mais saudável. Ainda mais simples. Recuperar o que for recuperável. Fazer o máximo que conseguirmos. Comprar o que for totalmente impossível fazer. Mas, em primeiro lugar, procurar artigos usados. Em última instância, comprar novo. Sem nunca nos desviarmos do princípio de que, na verdade, precisamos de muito pouco. E que, para entrar, algo tem de sair primeiro. Não são teorias da moda, não adoptamos tudo por atacado. Não somos fundamentalistas. É aquilo que, neste momento, faz sentido na nossa vida.


Este Verão tem sido complicado. Os problemas sucedem-se, uns mais graves do que outros. Mas recusei-me a entrar na espiral destrutiva. Tentei resolver o que pude com o bom humor e a despreocupação que já me caracterizam. Rindo-me muito de mim mesma e das minhas desventuras. Arrancando gargalhadas ao meu amor. Gozando tanto com os meus filhos que até eles já começaram a cultivar esta capacidade de ridicularização de si próprios. A autodérision é uma característica deliciosa dos belgas. Não sei se conhecem algum teckel… mas são cães que riem muito para os donos. Se, nesta casa, até o D. Fuas consegue rir, nós também havemos de conseguir. Haja o que houver. Desde que haja amor e isso há a rodos. Desde que haja simplicidade e gosto de viver. E isso vai havendo sempre, porque nós fazemos questão. Com muitas gargalhadas parvas à mistura.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Vasos comunicantes

(onde se espera com certeza uma confirmação disparatada)



Lembram-se da viagem infernal para ir buscar a avódrasta ao aeroporto do Luxemburgo, no final de Julho? A tal que me custou uma caixa de velocidades, sabe-se lá como. Que me custou um carro novo. Menos mal, porque estou perdidamente apaixonada. Enfim… tão apaixonada quanto imagino que seja possível estar uma pessoa normal (mas não muito, convém não exagerar…) por um carro. Ou seja, bastante. E eu não sou uma pessoa de carros, como se sabe. Sou, definitivamente, uma pessoa de cavalos. Mas talvez fosse demasiado complicado ir de cavalo para o trabalho. O caminho pela floresta ainda se fazia, o pior seria a auto-estrada. Não… estou melhor servida com um carro. Azul-escuro, como sempre quis. E alto (tenho de dar um pulinho discreto para entrar). E não tem rigorosamente nada automático, o que é uma bênção para quem vive aterrorizada com os efeitos bloqueadores da neve. Só lamento a ausência de direcção assistida. Quer dizer, lamentava. A minha cinesioterapeuta ficou encantada por ter arranjado quem lhe faça metade do trabalho (literalmente) braçal. Diz que, assim, só preciso de lá ir uma vez por ano para controlar. Quem diz controlar, diz pôr os ossos no sítio. Ora aqui está uma poupança inesperada.

O problema é que as minhas finanças funcionam como os vasos comunicantes. Tendem a equilibrar-se naturalmente. Nunca falha, é fantástico. Esta entrada súbita tinha de se reflectir, mais tarde ou mais cedo, numa saída ainda mais rápida. Foi o que eu expliquei ao Belga. Que me respondeu que isso era um perfeito disparate. Que as leis da física não se aplicam à economia doméstica. Contra-argumentei com provas cabais. Perdi um carro, ganhei outro. E fiquei a pagar praticamente o mesmo. Ah… eis um indício irrefutável da minha teoria! “E a poupança com a cinesioterapia?”, perguntou ele. “Espera e verás…”, respondi confiante.

E pronto. Chegou hoje. Parece que aquela tenebrosa viagem teve mais um custo retroactivo. Os amigos polícias do país vizinho decidiram engrossar o tesouro público. Lembro-me de ter pensado que tinha sido “flashada” e de ter comentado com o Diogo que era impossível, pois estava no limite da velocidade permitida. Bom, estava no limite à portuguesa. Assim, tipo… a velocidade máxima mais umas migalhas. Coisa pouca. Peanuts. Não estava a contar com o rigor luxemburguês. Entre as contas por alto à Tuga e as contas certas à nórdico, venceram as contas exactas. Oito quilómetros, para sermos mais precisos. Oito quilómetros a mais que me valeram 50 euros a menos. A multa mais absurda de sempre. Expectável, mas absurda. Mas, pronto, veio confirmar a minha teoria dos vasos comunicantes. O Belga teve de aceitar que a física se aplica na perfeição às minhas finanças. No entanto, mostrou-se bastante mais surpreendido com a exactidão  luxemburguesa do que com a minha. Tenho de confessar que fiquei algo desiludida por não ter recebido um elogio merecido. Até porque uma sessão de cinesioterapia custa 25 euros…

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Photomaton

(em Check Point Charlie, 

a fingir que vivíamos na Alemanha de Leste dos anos sessenta)




[ juro que não é por ser meu filho, mas o miúdo fez-se giro, pá! ]

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Porque eu sou do tamanho do que vejo

(e um só desejo)



Há muito que precisava de um mês como este, que já me deu tantas lições, apesar de ainda ir só a meio. Não foi um mês de férias, longe disso. Mas foi um mês em que estive ocupada a olhar para dentro. Para o essencial. Às vezes, esqueço-me de cultivar o essencial. Mas a vida arranja sempre maneira de mo recordar.

O essencial é ter o meu filho Vasco com saúde. Mesmo que fique para sempre a minha coisa pequena. Literalmente pequena. Passei estes últimos dois anos a correr para o endocrinologista, numa tentativa vã de perceber o que o impedia de crescer (para além da genética evidente). Mas, depois, quando finalmente se encontra o culpado, o mundo desaba porque afinal a explicação não é tão simples quanto eu desejava. O tratamento ainda menos. E nesse momento – nesse preciso momento – percebemos o quanto nos afastámos do essencial. Percebemos como fomos fúteis e estúpidos. Quem ditou o cânone estético? Quem decretou que o tamanho era uma característica essencial?

O meu filho Vasco é pequeno. E será sempre pequeno. Resquícios do povo mongol que povoa a minha genética longínqua. Mas tem uma alegria de vida imensa. Uma inteligência sagaz, que é coisa rara. Uma sede de conhecimento inesgotável. O meu filho Vasco tem música na alma. E dança no corpo. Não recua perante nada, tem uma coragem espantosa. Uma absoluta ausência de medo. Excepto de alturas, que contraria com uma tenacidade feroz. Tem uma tendência natural para contornar convenções e regras e restrições e normas e proibições. O meu filho Vasco é uma pessoa de pessoas. Tem um charme natural. Uma luzinha que brilha. Uma capacidade de ir ao encontro do outro, seja ele quem for. É de gargalhada fácil. E de lágrima ainda mais fácil. Vive com o coração fora do peito, sempre pronto a comover-se com as mais pequenas coisas que escapam ao comum dos mortais. O meu filho Vasco é um coca-bichinhos do detalhe. Um guardião de lendas, de histórias, de mitos. Um acumulador de memórias infinitas, que narra com uma precisão espantosa. O mundo, aos olhos do Vasco, é uma fonte inesgotável de surpresas. Cada amanhecer traz consigo um manancial de novas aventuras. Por isso, vive depressa. Adormece tarde e acorda muito cedo. Há tanto para viver! O espaço e o tempo são conceitos abstractos, subjectivos, que domina com mestria. Está aqui, mas não está. Está algures, num mundo próprio. Incomensuravelmente mais vasto e rico do que o nosso. Porque o meu filho Vasco, como dizia Caeiro, é do tamanho daquilo que vê, não do tamanho da sua altura. E será sempre muito grande, independentemente dos valores ditados pelas normas comezinhas.


Se neste momento pudesse pedir um desejo. Um único desejo. Se neste momento tivesse a quem rezar. A quem fazer um só pedido. Pedia que o Vasco tivesse saúde. Sei que nada mais lhe falta. A este meu pequeno grande filho.

domingo, 14 de agosto de 2016

Personagens insólitas

(num fim de tarde sufocante, num local inusitado)



Quase quatro da tarde. Estava um calor abafado. Pesado. A estação dos comboios estava completamente deserta. Rivage, dizia a placa. Um apeadeiro no meio de parte nenhuma. Um enclave claustrofóbico entre dois rochedos monumentais. Meia dúzia de casinhas perdidas no meio dos bosques. Uma aldeia fantasma, visitada apenas por personagens insólitas de passagem. Tinham descido todos do mesmo comboio. Após alguma hesitação, tinham atravessado todos para o outro lado da linha. Estavam todos pacientemente à espera do comboio seguinte. Rivage, apeadeiro anódino onde duas linhas e várias personagens se cruzam por momentos.

O rapazito rechonchudo, saído de um livro da Enid Blyton. Os dois velhotes que coxeavam da mesma perna. A senhora pequena com o livro aberto, como se não conseguisse parar de ler. A rapariga muito bonita, muito arranjada, com vários sacos velhos de supermercado a destoar. O moço ansioso, o único que parecia dominar os meandros do apeadeiro de Rivage.

Dez minutos de espera para estas seis personagens. O moço maltrapilho puxou de um cigarro e foi sentar-se na guarita. Parecia saber que o próximo comboio não vinha de imediato. A senhora do livro seguiu-o, confiante de que ele sabia o que fazia. E voltou a mergulhar na leitura. Ou, pelo menos, assim parecia. A rapariga distinta arrastou os sacos de plástico até à ponta da plataforma, distanciando-se de imediato. Os dois velhotes consultaram o mapa. A intimidade e o claudicar exactamente igual parecia indicar um laço de familiaridade. Mas, enquanto um deles era muito branco, com fofos cabelos brancos, o outro era tisnado e quase careca. Eram holandeses. E estavam meios perdidos. O rapazito de outros tempos, com uma cana às costas e malinha com o material de pesca pela mão, foi à procura de um funcionário. Quando finalmente o desencantou, atrás de uma porta poeirenta, tirou o chapéu para o cumprimentar. O maltrapilho arregalou os olhos. A senhora sorriu. Os velhotes decidiram imitá-lo. Tinham ambos uma mala de lona a tiracolo. Daquelas malas de qualidade duvidosa oferecidas nas excursões da terceira idade para vender colchões. Ou baixelas. As malas eram diferentes, mas tinham um baralho de cartas preto e encarnado bordado. Talvez fossem antigos jogadores de póquer. Talvez fossem velhos parceiros de jogo, o que explicaria a similitude dos gestos.

Ao longe, não se ouvia a conversa do menino com o chefe da estação. Mas notava-se o enfado com que o funcionário respondia laconicamente ao entusiasmo juvenil. O rapaz despediu-se efusivamente, pôs o chapéu e voltou a atravessar a linha. Os velhotes quase apanharam com a porta na cara e hesitaram em bater. O funcionário acabou por abrir e sorriu ao ver dois adultos. Velhotes e estrangeiros. Uma dupla sem dúvida rara por aquelas paragens inóspitas. O aprendiz de pescador aproximou-se da guarita e ficou a observar a conversa dos jogadores. O chefe da estação parecia saber falar holandês. Num movimento claudicante espantosamente idêntico, os velhotes cruzaram novamente a linha. O moço humilde olhou para o relógio, apagou o cigarro com os ténis Adidas esfarrapados e levantou-se para deitar a beata no lixo. A rapariga dos sacos de plástico, que seguia a cena ao longe, decidiu aproximar-se das outras personagens, aparentemente mais bem informadas do que ela.

Ouviu-se um comboio distante. Uma voz anunciou pelo altifalante o destino. Marloie. Será que o chefe da estação passava ali o dia apenas para fazer aqueles anúncios? As estranhas personagens entraram no comboio à vez, todas pela mesma porta. Sentaram-se todas no mesmo compartimento. O menino fez um grande sorriso à senhora do livro.

- Minha senhora, boa tarde. Desculpe incomodá-la… tem horas que me diga?
- São quatro e dez.
- Muito obrigado pela sua simpatia. Sabe, eu vou pescar...
- Já tinha percebido.
- Como? Pela cana de pesca, não pode ter sido… está desmontada, dentro do saco.
- Não, pela caixinha do isco.
- Ah… Quer ver a minha cana de pesca, minha senhora? Posso montá-la para lhe mostrar.
- Pode ser… Mas vê lá não te distraias. Em que estação tens de sair?
- Ainda não sei bem. Tenho de me informar junto do senhor controlador. Vou pescar em Hotton. E a senhora, para onde vai?
- Para Barvaux.
- Barvaux tem um rio. Já lá pesquei, com o meu avô.
- Acho que sim.
- E o que vai lá fazer a senhora, se não é indiscrição?
- Vou buscar o meu carro novo.
- Muitos parabéns pelo seu carro novo, minha senhora! Mas não me lembro de ter visto uma loja de carros em Barvaux…
- Não é em Barvaux. É quase em Durbuy, vou o resto do caminho a pé.
- Que estranho! A senhora vai a pé buscar um carro tão longe…
- Tu é que falas de maneira estranha para um menino da tua idade e apanhas dois comboios para ir pescar atrás do sol posto!


O menino riu-se muito. Os velhotes piscaram-lhe o olho, com um movimento simétrico sem falhas. A senhora elegante também deixou escapar uma gargalhada. O moço continuava a olhar muito espantado para o rapazinho inglês do século passado. Certamente tinha sido um apaixonado dos Cinco, na sua infância. A senhora do livro suspirou. A vida dava sempre certo, embora os caminhos fossem meio enviesados.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Chegou o dia

(onde se mostra que há esperança para as mães-galinha)



Finalmente chegou o dia em que consigo passar o mês de Agosto sem ter o coração nas mãos. Os rapazes estão há dez dias em Portugal e, pela primeira vez, estou em paz. Não digo que não sinta saudades, que sinto. Até sinto algumas saudades antecipadas, porque sei que ainda temos vinte dias de separação pela frente. Mas também sinto uma tranquilidade que assenta no facto de saber que já são crescidos, que estão bem e que vão voltar. Desta vez, não tenho qualquer dúvida de que vão voltar, felizes por regressarem a casa. Já ninguém os conseguirá convencer do contrário. E, após o necessário reajustamento, depressa tudo voltará ao normal.

Este meu novo estado de espírito faz com que até me esqueça de lhes telefonar. É certo que nunca fui de ligar todos os dias, porque sei os efeitos que isso tem no quotidiano deles. A ditadura do telefonema diário é uma realidade na vida dos meus filhos há anos. E é extremamente cansativo para todos nós. Por isso, sempre me esforcei por ligar apenas de dois em dois dias. E ainda achava demasiado, mas não conseguia mesmo controlar-me. Precisava de os ouvir. De tentar certificar-me de que estavam bem. Mas, entretanto, os rapazes cresceram. E nós também. Estas férias de Verão são eles que me ligam, que andam atrás de mim. “Ó mãe, então não telefonas?!”  “Não queres falar connosco?!”  Querer, quero. Já não sinto é necessidade. Sei que estão bem. Posso aproveitar.

Finalmente sou a Rita, não apenas a mãe do Diogo e do Vasco. Sou a Rita, namorada do Pascal. Pronto… não vos vou enganar. Sou a Rita, namorada do Pascal e tradutora nas horas livres (e nas ocupadas também). Sem deixar de ser a irmã do Pedro, que me largou aqui o cão. E a vizinha da Nancy, que me deixou os pássaros e as cobras…

domingo, 7 de agosto de 2016

Filhos do mundo

(porque de nada vale conhecer o mundo,

 quando não se conhece as suas origens)



Nestas férias de Verão, viajei para quatro países diferentes: Alemanha, Dinamarca, Suécia e Portugal. Não contando com o nosso país do coração, a Bélgica. Ah… e o Luxemburgo, que fica mesmo aqui ao lado, onde fazemos compras e atestamos o depósito semanalmente. Bem vistas as coisas, num espaço de apenas um mês, estive em seis países, sendo que dois foram estreias absolutas no meu mapa-múndi. Ou seja, Julho foi um mês de verdadeira rambóia. O Diogo também visitou estes mesmos seis países. O Vasco não foi connosco a Berlim, para seu grande desgosto, mas foi à Holanda com a avó. O meu amor trocou de boa vontade a Alemanha, que não aprecia por aí além, pela sua adorada Itália. Acho que posso dizer com toda a propriedade que, este ano, a tribo teve umas férias de Verão em cheio, em diferentes longitudes. Não há nada que nos dê maior satisfação do que dar a conhecer o mundo aos rapazes. Alargar-lhes os horizontes.

Se durante o mês de Agosto, quando estão de férias em Portugal, os meus filhos passeassem tanto pelo seu país como passeiam pelo mundo afora connosco… seriam umas crianças verdadeiramente afortunadas! Infelizmente, não é o caso. Após quatro anos, já percebemos que Portugal está restrito à zona de Lisboa e a uma terriola imutável no Algarve. Pelo que já ficou decidido que, a nossa próxima prioridade, é dar a conhecer o país aos “emigras” pequenos. Ninguém pode ser cidadão do mundo quando não conhece as suas origens. O meu sonho era alugar uma autocaravana e calcorrear o Norte com eles. Vá… e percorrer também a costa da Galiza, que é lindíssima. Ou ir até aos Açores. Hum… temos 300 dias pela frente para sonharmos com as próximas férias. Sonhar também faz parte da viagem. Aliás, uma das melhores partes da viagem é alinhavar o projecto. Pesquisar. Recolher informações. Comparar preços. Medir distâncias. Poupar dinheiro.

Há muitas formas de família. Cada uma saberá o que resulta melhor para si. Cada uma saberá onde acha mais importante “investir”. Há quem pense que o melhor investimento é alargando a própria célula familiar, oferecendo muitos irmãos aos filhos. Há quem pense que a segurança de um vasto património imobiliário é que é importante. Ou a estabilidade de um bom emprego. A exibição de um estilo de vida desafogado. A acumulação de bens. Há famílias que valorizam o tempo. Uma vida centrípeta. Campestre, em conexão com a natureza. Ou urbana. Há famílias que giram à volta de valores espirituais. Nós escolhemos investir no conhecimento do mundo. Da geografia humana e da geografia física. Cultural. Política. Da geografia dos afectos. Podemos não ter a televisão do vizinho. Podemos não ter o carro do vizinho (neste preciso momento, não temos mesmo nenhum). Podemos não ter muitos bens materiais. Em nossa casa há apenas o essencial. Não se acumula nada. Tudo o que está a mais vendemos ou damos a quem precisa. E investimos tudo o que temos em viagens. Não temos muito, não se pense. Mas felizmente nascemos numa época em que já se consegue viajar por pouco. Assim haja vontade e organização. Daí começarmos já a planear as próximas férias. Nunca é demasiado cedo para sonhar.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Bom-dia, Lisboa!


(onde se escreve em tons sépia)



 

Esta semana, aproveitei as folgas no trabalho para ir num pulinho levar os rapazes a Portugal. Foi um pulo tão rápido que até já regressei a casa. Fica-me mais barato ir com eles em low cost, e voltar passados uns dias, do que mandá-los numa companhia de aviação que disponibilize hospedeiras de bordo para acompanhamento de menores. Com a vantagem de poder matar saudades. A desvantagem é que o Vasco vai o caminho todo de lágrimas nos olhos, agarrado a mim. Se tento desvalorizar e brincar, dizendo que já falta pouco para me ver livre dele para poder ir para a borga, chora copiosamente. Diz que já não o amo. Se o abraço e confesso que também vou morrer de saudades, chora ainda mais. É complicado dar a volta a isto, mas tento compensar com palhaçada para aligeirar o ambiente. Até os deixei comer comida de plástico... O Diogo vai sempre muito bem disposto. Diz que adora quando vou com eles, porque impera a parvoíce. Um dia destes prometo que cresço e me torno uma mãe séria. Ou uma mãe à séria, ainda não sei bem.


Demorei algum tempo a impor regras a mim mesma, nestas curtas viagens a Portugal. No início, tentava fazer tudo, ir a todo o lado, ver toda a gente. Voltava estafada, enervada e com a sensação de ter deixado imensas coisas por fazer. De ter falhado. Era um bocado inglório. Agora, viajo incógnita. Prefiro ver duas ou três pessoas, no máximo. Mas vê-las bem. Tratar de uma ou duas burocracias, sem me exaltar. O que der para fazer, dá. Caso contrário, não há problema nenhum, fica para a próxima. Há-de haver mais marés. O mais importante é aproveitar ao máximo o pouco tempo que tenho, sem tentar agradar a gregos e troianos. E, de facto, o tempo foi bastante reduzido, mas pareceu ter rendido muito mais. Tratei de burocracias. Aproveitei para comprar um novo portátil, com o meu programa de tradução e legendagem. Foi a loucura destas férias, embora saiba que é um bem de primeira necessidade, no meu caso específico. Andei a ver as montras num centro comercial para fazer tempo. Acho que não entrava numa Zara há anos. Estou tão habituada a comprar roupa para mim em segunda mão, que os preços me pareceram obscenos. Apesar de tudo, comprei umas calças de ganga da H&M… mas apenas porque emagreci e precisava mesmo. E porque custavam 4.99 euros, vá. Abasteci-me de queijos secos e farinheiras, claro. O Belga que me perdoe, mas desta vez troquei o vinho pelos enchidos. E comi-lhe os travesseiros pelo caminho, mas isso ele nem sonha. Tentei dar um beijinho rápido à D. Fernanda, enquanto íamos ver o mar… mas a minha mãe tem alma de cigana e alertou a minha irmã, cunhado e sobrinho. E teve de meter almoçarada pelo meio, obviamente. Menos mal, matei saudades de mais umas iguarias que não tenho por cá. Pronto... e da família. Custa-me estar longe da minha irmã, porque éramos muito próximas. Tenho saudades daquela cumplicidade gozona que tínhamos.


Desta vez, a verdade é que me apeteceu passar os dias colada à minha melhor amiga. Se a maior perda que os meus filhos sofreram com a ida para a Bélgica foram os avós, no meu caso, foram os amigos. Sinto muita, muita, muita, falta dos meus amigos. São amizades que têm décadas, impossíveis de substituir. É sempre tão bom pôr a conversa e as confidências em dia, com quem nos conhece como ninguém. A Ana também me deu ânimo para fazer algo que andava a adiar. Há quatro anos que não vasculhava as caixas que deixei à pressa na arrecadação da minha madrasta, quando deixei a minha outra existência para trás. Encontrei de tudo um pouco. Ficámos a ver desfilar memórias, eu e a Ana, que faz parte da minha vida há tanto tempo.


Enchi uma mala de livros, o que não deixou de ser estranho. Há uns tempos, comecei a sentir a falta de algumas coisas daquela vida passada. Já me conformei com o que desapareceu misteriosamente (para não dizer que foi roubado…). Com o que foi vendido, sem que soubesse. Com o que foi usurpado, sem vergonha. Dos objectos, não sinto qualquer falta. Das coisas de valor, também não. Muito menos dos meus móveis, que revi no tribunal em fotografias risíveis de uma  casa de família que era suposta acolher o meu filho. A única coisa que queria trazer eram os meus livros. São dezenas de caixas. É difícil escolher. Aos poucos, irão regressar comigo. O desapego que tive de abraçar abruptamente – que hoje agradeço, porque foi uma lição de vida – nunca chegou à literatura. Mas admito que não me custou nada dar uma série de livros à Ana. Ficaram bem entregues, é o que se pretende.


Surpreendentemente, descobri outras coisas que jurava ter deitado fora. Fiquei feliz por ter percebido que a minha loucura destrutiva, anos depois, revelou uma lógica absolutamente genial. Ficaram os diários mais importantes, cartas, documentos, pequenas recordações. Sem pensar muito, pus também na mala o único vestido de noite que tinha (sabe-se lá como acabou no meio dos livros… e ainda me serve), o meu livro das fitas de finalista na FLUL, a primeira mantinha do Diogo. E fotografias antigas. O meu primeiro filho nasceu antes da era digital, o que agora me parece simplesmente maravilhoso. Aqueles caracóis eram a coisa mais fofinha do mundo. Encontrei duas fotografias perdidas, que pus de imediato lado para rasgar e deitar fora. Entretanto, vieram-me parar às mãos imagens de uma Rita pequenina (um Vasco em forma de menina, juro) e dos pais da Rita, apaixonados, bem como dos avós maternos e paternos. E decidi trazer comigo aquelas duas fotografias que me causaram uma repulsa instantânea. Deviam ter escapado por um motivo. Uma para cada um dos meus filhos. Porque, por mais incrível que pareça, os pais deles também estiveram enamorados (ou, pelo menos, assim o pensaram um dia). E, na sua caixinha de memórias, o Diogo e o Vasco têm o direito de guardar uma imagem que prove que foram feitos com amor. Apesar dos pesares.