quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O que faz a mãe na semana sem filhos?

(onde se percebe que o tempo rende muito mais sem os filhos)



1)    Dorme
2)    Namora
3)    Vê a 6.ª série toda do Game of Thrones e mais uns quantos filmes
4)    Só come porcaria durante uma semana (mas intervala com uma ida ao chinês e uma mariscada)
5)    Faz aquelas coisas que os adultos gostam de fazer quando se apanham sozinhos… em quantidades, horas e locais pouco habituais
6)    Esquece-se de ligar a internet
7)    Faz ronha de manhã
8)    Come sempre em frente à televisão
9)    Dá longos passeios de mão dada
10) Não aspira, não cozinha, não lava loiça, não trata da roupa, não faz a cama
11) Vai às compras, num típico dia girlie
12) Muda a decoração do quarto
13) Toma um longo banho de imersão às luz das velas
14) Não trabalha, nem traduz (sem se sentir minimamente culpada)
15) Visita três países diferentes, num só dia
16) Desliga o telemóvel
17) Encontra uma amiga
18) Lê um livro
19) Dorme mais um bocadinho

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Troca de prendas

(onde se dá a conhecer a lista do nosso Pai Natal)


Este ano, decidi ser ainda mais radical com as prendas. Os meus filhos já sabem que não podem contar comigo para receber o brinquedo ou o gagdet da moda. Acho que é dinheiro gasto estupidamente. As prendas não têm obrigatoriamente de ser úteis, mas não podem ser superficiais. Detesto a superficialidade. Quase tanto quanto abomino a loucura consumista que parece deixar as pessoas possuídas nesta época. Sobretudo, tendo em conta que esse despesismo é muitas vezes usado apenas para manter as aparências. Por isso, desta vez, esforcei-me mesmo por desencantar prendas especiais… out of the box, por assim dizer. Mais do que coisas, quis oferecer-lhes experiências ou objectos que não dêem prazer imediato. Prendas de gente crescida. Mas, como estamos a falar de dois rapazes, também decidi mimá-los com algo que ansiavam há algum tempo. Houve prendas muito diversas, portanto.

A primeira prenda de Natal que comprei foi para o Diogo, há uns bons três meses atrás. Apaixonou-se por um casaco de couro da H&M, que lhe ficava mesmo bem. Bom… era couro falso, obviamente. Recuso-me a comprar coisas em pele. Disse-lhe que era demasiado caro e arranjei uma desculpa para lá voltar a seguir. Também lhe comprei uns sapatos quentinhos, porque o fadário adolescente+ténis+neve já começou. Dois países, quatro sapatarias e muita discussão depois, desisti. Visto que nada lhe agradava, comprei-lhe uns ténis-bota baratos na Primark, meti-os num saco e escrevi: “A prenda de que não vais gostar…” Pensei que os atirasse para o fundo do armário e só os fosse buscar aquando da primeira borrasca do ano. Enganei-me redondamente. Parece que ficam a matar com o tal blusão preto. Mas imagino que a esta hora esteja a suar as estopinhas em Portugal… Usei a mesma técnica de voltar atrás disfarçadamente para lhe comprar um livro de cozinha mexicana, quando parámos numa estação de serviço algures em França. Dessa vez, a desculpa de que me tinha esquecido de comprar as sandes não foi suficientemente boa. Ehhh… talvez tivesse ajudado se, efectivamente, houvesse sandes para comer durante o trajecto. Não houve, claro está. O Diogo já sabia que ia receber essa prenda. Mas não sabia que ia receber também a Divina Comédia, pois sempre lhe disse que não era um livro para a idade dele. Afinal, ainda acredita em algumas desculpas idiotas! Quanto à prenda de Natal propriamente dita, infelizmente descaí-me há umas semanas. Já nem sei bem a que propósito, disse-lhe que o Fausto ia estar em cena na Opéra Royale de Liège. E o tipo começou logo a pensar que a “prenda-prenda” seria um bilhete. As suspeitas foram confirmadas pela “apalpação” do embrulho. Conhece mal a mãe, o miúdo… A prenda de Natal do Diogo foi uma assinatura para a temporada 2016/17 da Opéra Royale de Liège. Como sou uma criatura diligente (que é o mesmo que dizer muito chata), consegui que a senhora das reservas gentilmente lhe desencantasse os primeiros lugares. Filho crescido ficou histérico com a prenda e ia cometendo um matricídio com tão efusivo agradecimento, mas eu acho que vai ficar ainda mais contente quando se vir tão perto do palco.

As prendas do Vasco foram mais difíceis. Esgotei as ideias com os anos da coisa pequena e queria mesmo oferecer-lhe algo diferente. Enquanto não encontrava nada melhor, fui comprando umas prendinhas patetas: uma máquina para fazer gomas (cujas receitas dão para “roubar” no açúcar), um pijama babygrow que ele adora, um suporte para as pautas do violino, o tão ansiado Cluedo. E, como não podia deixar de ser, a “prenda odiada”! Ou seja, um saco com os diferentes objectos que mais desaparecem misteriosamente: tupperwares para levar o almoço e os lanches, borrachas, réguas, compassos, canetas de tinta permanente… Filho pequeno acusou o toque. Ficou mesmo desiludido quando abriu o saco, mas não teve coragem de dizer nada. Mas nós fartámo-nos de rir, para ser sincera... Entretanto, ao passar no Media Markt há duas semanas, deparei-me com “o dia do drone” a “preços bombásticos”!!! Assim mesmo, com muitos pontos de exclamação!!! E acreditem que por esta casa passam drones suficientes para eu saber reconhecer um verdadeiro achado. O Vasco partiu o drone dele e já andava a pedinchar outro há bastante tempo. É uma daquelas actividades exclusivas do binómio a que eu não consigo mesmo achar piada, por mais que me esforce... No entanto, agradou-me a ideia de o drone tirar fotografias e filmar, porque pode abrir outros pólos de interesse. Além disso, parece-me que pode levá-lo a explorar outras potencialidades do computador que recebeu nos anos. Já estavam as compras todas feitas, quando descobri “a prenda”. A tal que ia de encontro à filosofia que gostava mesmo que os rapazes percebessem este ano. Tive algumas dúvidas de que o Vasco tivesse maturidade para apreciá-la, por isso fiquei feliz por ter outros presentes para lhe oferecer na nossa noite de Natal. As opiniões aqui em casa dividiam-se. O meu amor adorou a ideia, o Diogo achou-a completamente descabida. Dentro de uma caixa, pus um gorila de peluche e o certificado de apadrinhamento vitalício de um bebé gorila na Dian Fossey Gorilla Fund International, que apresentava detalhadamente o afilhado. Dizer-vos apenas que foi a prenda preferida da minha coisa pequena. A paixão foi tão grande que eu espero que o Kuruwanda morra de velho daqui por longoooos anos. Até lá, o Vasco irá receber notícias do afilhado trimestralmente. Expliquei-lhe que os apadrinhamentos serviam para financiar o programa exclusivo de vigilância sete dias por semana de diversos grupos de gorilas, mas não me parece que o filho pequeno precisasse de grandes justificações. Acabou por me confessar que preferia ter recebido apenas dois gorilas e nenhuma outra prenda material, o que me deixou de coração cheio.

O meu amor não precisava de grandes prendas para compor a mensagem que tentei passar à tribo este Natal. Apesar disso, recebeu umas pantufas da Serra da Estrela e um conjunto para fazer sushi, para ver se poupamos algum dinheiro no guilty pleasure da família. A minha prenda foi uma assinatura anual da revista Ciel et Espace, dificílima de encontrar nas Ardenas. E uma daquelas boxes de experiências para ver se finalmente vai fazer o tão desejado parapente (mas sem eu estar a ver…).

Se a noite de Natal tivesse ficado por aqui, teria sido perfeita. Sem excessos, nem grandes derrapagens orçamentais. Mas, para quem advogava a abolição da superficialidade, fui bem tramada… O Diogo ainda alinhou na minha ideia e ofereceu-nos livros. Para o irmão, desencantou umas cartas raríssimas Pokémon, que o deixaram extasiado. O Vasco deu-me uma caixa de marrons glacés, a minha gulodice preferida. Ao meu amor, ofereceu uma agenda da antiguidade com o cheque-prenda da livraria que tinha recebido nos anos. Foi comprado, sim… mas com uma prenda que era suposto ser para ele. Achei que tinha sido um gesto muito bonito. Até mesmo porque passámos horas infinitas naquela livraria até o Vasco encontrar “a prenda ideal”. A prenda que ofereceu ao irmão ainda foi mais bonita: comprou a trilogia de Hannibal Lecter em Setembro, numa venda de garagem, e guardou-a cuidadosamente estes meses todos. Parece-me que também estava dentro do espírito de Natal…

Então, quem foi o causador do cataclismo de prendas caras, perfeitamente inúteis e materialistas, destinadas a estragar de mimos as crianças (e a namorada)? O meu amor, pois claro. Percebi que tinha andado a pregar no deserto, nestes últimos tempos. Qual desperdício zero, qual desapego material… O meu Natal simples ficou soterrado de prendas. Muitas prendas. Com um sorriso que faria derreter qualquer coração, parecia que tinha sempre mais uma prenda escondida para um de nós. E quando eu ia mesmo começar a ralhar a sério com o meu amor, vi pelo canto do olho o meu sogro a fotografar discretamente cada abraço sentido que os meus rapazes lhe davam a cada prenda pateta desembrulhada. Percebi que a maior prenda de Natal que aqueles pais receberam foi ver o único filho que lhes resta a dar e receber amor em forma de embrulhos e abraços apertados. Porque a verdade é que eu assisti ao nascimento do amor destes três e ainda hoje me enternece... Imagino o que terão sentido os pais do belga tipicamente nórdico, frio e distante, que conheci há quatro anos, ao presenciar tamanha manifestação de afecto. Talvez tenha sido esta a verdadeira magia do nosso Natal. A minha maior prenda não foi o casaco lindo, lindo, lindo da Desigual, foi o SMS de agradecimento tão querido que recebi dos pais do meu amor umas horas depois.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Porque amanhã é Natal

(onde se explica o inexplicável e sai uma explicação algo confusa)



Diz que o Natal é já amanhã. E eu ainda sinto que tudo isto é muito estranho. Muitíssimo estranho.

Supostamente, este ano, podíamos “saltar” o Natal. Porque os rapazes vão estar em Portugal. E nós íamos namorar. Mas, depois, percebi que as aulas só acabavam na sexta-feira. Sim, no dia 23 de Dezembro. Pior… oficialmente, as férias belgas só começam na segunda-feira, dia… hum… 26 de Dezembro. A Terra do Frio, às vezes, consegue ser um bocadinho sui generis. O que quer dizer que íamos mesmo ter de improvisar um Natal qualquer, antes da partida da nossa rapaziada. Filho pequeno assim o decidiu. Embora o espírito natalício andasse por parte incerta. Mas não deixa de ser estranho pensar que, amanhã, vou mandar os miúdos arrumar as mochilas da escola e aperaltarem-se para a consoada.

Entretanto, fiquei de férias forçadas. Lá no trabalho mandaram-me para casa. Sem apelo, nem agravo. Parece que ainda tinha vários dias para gozar obrigatoriamente até ao final do ano. Por mais tempo que passe, não há meio de conseguir atinar com esta ramboia de férias e folgas e feriados. Feriados específicos à Valónia. Mais os nacionais e os municipais. E os dias de folga estipulados na minha convenção de trabalho. É muita folga para uma só criatura. Lá se me foi a desculpa do excesso de trabalho. Tive mesmo de enfeitar a casa. Comprar prendas. E fazer muitos ho, ho, ho! Bom… e começar a traduzir um livro. Não deixa de ser estranho aproveitar as férias forçadas (e pagas) de um trabalho para fazer outro.

Depois, decidi ser falsamente simpática. Já devia calcular que a vida sabe sempre quando estamos a fazer batota. Convidei os pais do meu amor para virem jantar connosco na nossa consoada. Mas sempre pensei que recusassem. Nunca vi pessoas tão activas e viajadas. Estão sempre a ir ou a vir. Ou a trabalhar. Ou a filmar. Ou a fazer mergulho. Ou a organizar concursos de cinema. Ou… Só que, entre tantas idas e vindas, o meu sogro arranjou tempo para ver o Vasco, num destes fins de tarde. Coisa pequena recebeu mais um daqueles diagnósticos que me fazem tremer a pernas (e as finanças). Por mais que eu barafustasse, o meu amor decidiu rumar com ele ao consultório do pai, para ouvir uma segunda opinião. Infelizmente, concordante com a primeira. Apressei-me a enviar um SMS de agradecimento. Parece que o meu filho foi mais educado e, à saída, perguntou muito sério: “Quanto é que lhe devo, Monsieur?”. Arrancou umas valentes gargalhadas, o meu palhaço do circo. Mas achei que devia fazer mais qualquer coisa para agradecer o gesto. Bom… os muitos, muitíssimos, gestos de afabilidade e simpatia de que temos sido alvo nos últimos anos. E em má hora me lembrei de os convidar para jantar. Na nossa noite de Natal. Segundo consta, a mãe do meu amor queria fazer exactamente o mesmo, mas não tinha coragem. Talvez a minha vontade férrea de distanciamento, afinal, não seja tão discreta como eu julgava. Pelo que o convite foi pronta e entusiasticamente aceite. O que não deixa de ser estranho, tendo em conta que ando a fugir airosamente de eventos familiares há quase quatro anos.

Eis-me, então, na véspera do nosso Natal. O tal que era suposto não ser festejado este ano. E que, além da tribo, ganhou mais dois salvo seja convidados. Já fui comprar pratos e talheres e copos. E mais umas mil coisinhas. Na realidade, como nunca recebemos ninguém, não tínhamos nada. Somos pessoas de uma simplicidade constrangedora, quando postos em contacto com a sociedade… assim… no geral. Essa é que é a verdade. Portanto, tratei de disfarçar o melhor que pude o… hum… desapego das coisas mundanas que reina nesta casa. Também tratei de adaptar o menu. Não ia só servir o bacalhau com natas e o peru recheado exigidos pelos meus filhos. Depois de apuradas investigações, percebi que os belgas servem as entradas em verrines. E as sobremesas também. As minhas colegas de trabalho – que só me queriam ver pelas costas a bem do respeito da legislação belga que rege as férias e folgas e feriados e dias de descanso e mais que houvesse – decidiram ajudar um bocadinho a tuga de serviço. Descobri que as verrines são todo um mundo. Que terá obviamente de conviver com o chouriço assado e o bolo-rei desencantados no Luxemburgo. Que se lixe, entre mortos e de feridos, alguém há-de escapar. O que é o mesmo que dizer que espero não cometer nenhuma gaffe gastronómica de monta. E conseguir agradar às duas metades tugo-belgas. Não vai deixar de ser estranho ver a broa de milho ao lado do tartare de saumon.

Entretanto, olhem... a magia do Natal baixou em mim. Estou nervosa, confesso. Mas adorei preparar esta consoada. Tal como adorei comprar os presentes para a tribo. E para os pais do meu amor. A vida dá voltas completamente surreais. O reverso da medalha de não querermos afectos, nem família impostos por decreto é termos aprendido a gostar de duas pessoas que mal conhecemos. Mas que já percebemos que devem sentir exactamente o mesmo por nós. E não consigo impedir-me de pensar que tudo isto é muito estranho...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Esgrimir argumentos... em alto e bom som!

(onde se percebe que não ter qualquer vergonha 
é conditio sine qua non para se lidar eficazmente com um adolescente)


Ando sempre à procura de novos métodos. É um questionamento permanente. A pedagogia estática é coisa que não me assiste. O mundo está em constante mudança. Os rapazes crescem, tenho de me adaptar. O que resultava há alguns meses deixou de dar resultado. É sempre assim. E já se sabe que o que resultou com o grande não resulta com o pequeno. Às vezes, penso que não sou mãe de dois filhos, sou duas mães. Mas o Diogo abre caminho.

O filho crescido voltou a crescer mais um bocadinho, nos últimos tempos. Estamos em plena adolescência. Com tudo o que isso tem de bom e de mau. Principalmente, de mau. Sou constantemente posta em causa. Não que isso me assuste. Assumo a minha inconstância, apesar de saber que a mente quadrada do adolescente tem muita dificuldade em gerir as alterações de rota. De hábitos. De regras. De rotinas. De formas de pensar e de agir. Sou frequentemente confrontada com uma recusa categórica. Que aceito na maioria das vezes. Não sei se faço bem. Se a argumentação for suficientemente sustentada, a verdade é que me deixo convencer. Até mesmo porque isso lhe permite depois arcar com as consequências das suas decisões… nem sempre boas. Se o argumento for fraco, mal defendido ou simplesmente casmurro, há espaço para novo debate. Mas se a argumentação for apenas estúpida, a discussão fica automaticamente encerrada. Aos 15 anos, já é muito raro apresentar-me justificações idiotas. São muitos anos a discutir. E o filho grande conhece-me bem.

Felizmente, a minha própria adolescência está ali ao virar da esquina. É a grande vantagem de ser sido mãe cedo. Lembro-me perfeitamente de que era insuportável. E resmungona. Mandona. Com a mania que já sabia tudo. Muito pouco permeável a opiniões contrárias à minha vontade. Mais do que uma criança mimada, acho que fui uma adolescente mimada. O meu pai desesperava muitas vezes com o facto de tudo ser passível de discussão. Hoje sei que é esgotante, porque não mudei. Haja alguma constância. Enquanto mãe, continuo a discutir tudo com os meus filhos. Raramente há nãos categóricos nesta casa. Estarei certamente a cometer muitos erros, mas tenho a certeza absoluta de que não estou a criar dois homens amorfos e parcos de opiniões.

No outro dia, tivemos um confronto de titãs. Ganhei, com larga margem. Filho crescido ainda tem de aprender a escolher o melhor terreno de batalha. Literalmente falando. Idealmente, deve discutir-se com um adolescente em público. Ele fará tudo para acabar o mais depressa possível com o espectáculo. Mesmo que isso implique uma derrota.

Estou farta das calças de ganga que o Diogo usa. O número maior, na secção de criança, já fica demasiado apertado. O número mais pequeno, na secção de adulto, ainda fica muito grande. Na opinião dele, claro. Porque eu prefiro zelar pelos meus futuros netos à estética. A juntar a isso, as calças da H&M e da Primark depressa se fazem feias. E a braguilha está sempre a abrir. Para ver se o fazia mudar de ideias, comprei-lhe um par de calças de ganga diferente… que ele nunca vestiu. Outra coisa não seria de esperar. Decidi mudar de estratégia e ir com ele às compras. Como já tínhamos aflorado este tema diversas vezes e eu sabia que ia ser difícil convencê-lo a experimentar outras marcas, disse-lhe que íamos só comprar uns sapatos novos. Quando o apanhei no centro comercial no Sábado à tarde, obriguei-o a entrar em duas lojas. O Diogo depressa percebeu o meu estratagema e fingiu cooperar, espreitando as calças de ganga disponíveis. Obviamente, nada lhe agradava. Era tudo enorme, demasiado largo e com preços exorbitantes. Rebati a questão do dinheiro, dizendo que lhe queria comprar umas calças melhores e que estava disposta a experimentar marcas mais caras. Filho crescido fincou pé. Eu também. Excepto que fi-lo em alto e bom som. Num centro comercial apinhado, no Luxemburgo, onde toda a gente nos compreende. Não fosse dar-se o caso de não haver muitos emigrantes portugueses, gritei também em francês. E esbracejei bastante, porque já se sabe que a linguagem gestual é universal. A capitulação foi quase imediata. O facto de ter visto uma colega com os pais ao longe pode ter ajudado, não sei. Eu ia bem lançada, mas decidi dar a estocada final. Comecei a falar uma mistura de português e francês, que eu sei que o Diogo não suporta. Virou os calcanhares, grunhiu qualquer coisa e entrou a correr na Esprit. Saímos de lá com umas lindas calças de ganga cinzentas que o deixam respirar normalmente, sentar-se normalmente, comer normalmente. Tendo ainda a vantagem de não deixar entrar correntes de ar em locais menos próprios. Fiquei mesmo feliz. Excepto pelo preço, que me doeu um bocado. Mas, pronto, a vitória tem o seu custo… certo? Filho crescido quis ter a última palavra e argumentou que, àquele preço, não ia conseguir renovar-lhe o guarda-roupa tão depressa. Respondi que tinha toda a razão, teríamos de esperar pelos saldos, em Janeiro. Hum… ou no final de Dezembro, se for até Maastricht. Nem me dei ao trabalho de tentar decifrar o grunhido juvenil que se seguiu. O triunfo sabe tãoooo bem!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Tradução disléxica

(onde se encontra um porto seguro para o destrambelhamento natural)



Vim parar à tradução por mero acaso, já o devo ter dito aqui. Tornei-me tradutora porque, um dia, comecei a rever um livro que o tradutor tinha deixado ficar a meio, sem aviso prévio. A editora pediu-me para acabar a tradução. Detestei, mas acabei. E eles gostaram do resultado. Nunca mais parei de traduzir. Tenho feito algumas pausas, ao longo da vida, mas nunca parei. Já lá vão quinze anos. Dezenas de livros e muitas centenas de programas. Milhares? Com o tempo, tornou-se um amor agridoce. Mas nunca foi profissão que me atraísse. No universo dos livros – onde se situa indubitavelmente o meu planeta Terra – era mesmo a única profissão que me desagradava. Estava convencida de que a dislexia seria a minha pior inimiga. Hoje sei que há imensos tradutores disléxicos. Pensando bem, até tem a sua lógica. O disléxico é alguém que, por força das circunstâncias, teve de aprender a decifrar desde muito cedo. Ou seja, teve de aprender a descodificar diferentes sinais que os restantes mortais parecem dominar como se fossem automatismos. Ler ou escrever uma simples palavra, para mim, não é um mero automatismo. Bom, para ser totalmente honesta, dizer uma simples palavra não é um automatismo. Nunca foi, nem nunca será. Quando converso, o discurso saí-me fluído. Demasiado fluído; sou uma tagarela em diversas línguas. O problema surge quando tenho de dizer palavras isoladas ou pequenas frases. E a minha mente bloqueia. Visualizo o seu significado, mas a palavra foge para parte incerta. Antigamente, ficava calada. Assustada. À espera que a dita palavra surgisse, lado a lado com o significado que continuava a piscar na minha cabeça. Hoje, vivo com outro disléxico e isso muda tudo. Agora, começo a dizer os diferentes sinónimos que me vão surgindo naturalmente. Digo eu e diz ele, até encontrarmos o termo certo. Com toda a calma.

Tenho exactamente a mesma compreensão para com as dificuldades do meu amor. E faço-o sem qualquer esforço. O que poderia ser encarado como um defeito, para nós, é apenas mais uma característica intrínseca do outro. Somos disléxicos muito diferentes. Mas ambos gostamos de desafiar a nossa mente torpe. Traduzindo. Fazendo mergulho ou pilotando aviões. Ou navegando em alto-mar. Não há coisa pior para um disléxico do que ficar sem as suas balizas habituais. Como quando luto com as palavras que não surgem, ou que me aparecem completamente truncadas. Como quando ele luta com espaços tridimensionais imensos, vazios, sem qualquer referência. A minha tábua de salvação é a gramática, que normalmente me indica a saída. As regras de construção de uma língua – seja ela qual for – são quase sempre infalíveis. As excepções, conheço-as bem. Também me servem muitas vezes de marcos extra no meio do nevoeiro mental. O meu amor aprendeu a contar com o mapa estrelar. Com uma inteligência apuradíssima. E uma memória absolutamente extraordinária. Eu passo a vida a lutar ferozmente contra a minha má memória a curto prazo. Já não perco coisas, mas continuo a perder-me no tempo. Muitas vezes, no espaço. O meu amor também. Não consigo distinguir a esquerda da direita. Ele nunca consegue estacionar num lugar vago surgido do nada. Tal como, às vezes, falha saídas de auto-estrada ou se engana num caminho. Engana-se muito mais nos caminhos que fazemos diariamente. Eu faço-os em modo automático, frequentemente sem ter a mínima ideia de como fui do ponto A ao ponto B. Mas nada disto é problemático. Faz parte da nossa doideira partilhada. Não vos consigo explicar a tranquilidade que esta compreensão mútua nos trouxe. Finalmente, pudemos baixar a guarda. E sei que me tornei também melhor profissional.

Sou, hoje, uma tradutora muito mais calma. Sem dúvida, mais segura. Conheço as fragilidades da minha mente como ninguém. Sei precisamente onde se encontram as armadilhas. Rever os meus textos é como andar à caça. Tenho de perceber os indícios para conseguir prever a localização da minha presa. Talvez seja por isso que sou uma exímia revisora de textos alheios. Adoro rever. Quando acabo uma tradução, sinto um alívio imenso. Começa, então, a minha parte preferida: a revisão. Ora a tradução e legendagem tem uma vantagem evidente sobre a tradução literária, dado que os trabalhos são bastante mais pequenos. O cansaço é o pior inimigo do disléxico, pois cede espaço mental ao erro. Refiro-me ao cansaço que advém do facto de se traduzir centenas de páginas a fio, ininterruptamente, sem mudar de fonte, sem mudar de tamanho, sem mudar de estilo. Sem mudar de tema. É cansativo. E, às vezes, desliga-se um fusível. O erro acontece. Vá… não lhe chamemos erro. Na verdade, trata-se mais de um deslize. O cérebro tropeça. Uma letra troca de sítio, sem nos darmos conta. Duplica. Ou desaparece. E os nossos olhos não vêem, porque só lêem o que querem. Como é óbvio, lêem sempre sem erros. Os nossos olhos são mágicos: lêem o que é suposto estar lá. Contudo, a tradução literária oferece mais margem de manobra em termos de revisão. Ou seja, é mais fácil acontecer um deslize, mas temos mais tempo para deixar repousar os olhos cansados antes de iniciarmos a caça. Na tradução e legendagem não há tempo para o caçador descansar. É traduzir, rever e entregar. E, no dia seguinte, voltamos à mesma rotina sôfrega… Traduzir, rever e entregar. Os deslizes são quase nulos, mas é mais difícil apanhá-los. Para quem gosta de caçar, como eu, é mais engraçado intercalar trabalhos.

Agora, vou voltar durante uma temporada à tradução literária. 504 páginas, para ser mais exacta. A maior vantagem é mesmo poder voltar a ouvir música, enquanto trabalho. O meu disléxico namorado não compreende como consigo concentrar-me melhor na tradução, deixando o meu cérebro distrair-se propositadamente pela música. Mas só consigo ouvir música que conheça na perfeição. Não tenho explicação para o fenómeno, a verdade é que resulta. E é sempre do que sinto mais falta, quando faço tradução e legendagem. Porque passamos o dia a ouvir, mas o cérebro nunca se pode alhear. Porque o que ouvimos é sempre trabalho. E isto é cansativo. Não sei se já disse que o cansaço é o pior inimigo do disléxico. O problema é que, no mundo da tradução, o cansaço pode assumir diversas formas…

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

A mãe fixe

(onde se confessa que, tendo o privilégio de assistir em primeira mão

 a Rogue One, se aproveitou para dormitar)


Sou a “melhor mãe do mundo” muitas vezes. Não é preciso fazer grande coisa para atingir tão elevado estatuto, devo admitir. As criaturas são fáceis de contentar. Uma ida ao cinema. Uma tablete de chocolate ou um pacote de pastilhas. Um amigo que fica para dormir. Deixá-los alugar mais um jogo, na caravana quinzenal da mediateca. OK… para ser completamente honesta, sou a “melhor mãe do mundo” sempre que descem para jantar. Seja lasanha ou carbonara de tofu. Pizza. Frango com esparguete. Principalmente, feijoada. Acho que alguém devia contar este segredo às jovens mães: basta saber cozinhar, tudo o resto há-de vir por arrasto. Tanto livro de pedagogia da treta e, no fundo, o graal encontra-se no corredor dos livros de culinária. Porque nenhum filho há-de dizer, emocionado: “Ah, que maravilha de filosofia pedagógica!”. Mas todos os domingos dizem que fiz o “melhor bolo de sempre”. Em semanas como esta, em que à quarta-feira já desapareceu tudo, sei que têm razão. E sei que, um dia mais tarde, não se lembrarão que tirei o telemóvel ao grande, quando bateu no pequeno ainda antes das 7h da manhã. Nem de todas as jigajogas que faço para conseguir levá-los a tantas actividades. Não se lembrarão das noites que passo a trabalhar para poder chegar a todo o lado, financeiramente falando. E das vezes que me torturo, sem saber se terei tomado a atitude mais correcta. O que eles se lembrarão, daqui a muitos anos, é que a nossa casa cheirava a bolo acabado de fazer. Que os amigos tinham sempre um lugar à mesa, mesmo que não estivéssemos a contar com eles. Que vivíamos a 2500 km de Portugal, mas todos os meses comíamos bacalhau com natas. Proust tinha razão, não há memória mais forte do que a comida da infância.

No caso dos meus filhos, há uma coisa que anda ali lado a lado com a comida. E com a música, diga-se de passagem. Algo que eles próprios estão a construir como memória conjunta da irmandade. Como património familiar edificante. Já não se trata de um simples gosto pessoal partilhado ou de uma mera obsessão. Porque é uma parte integrante da vida dos nossos rapazes. Falo, obviamente, do universo Star Wars. Nesta casa há filmes, desenhos animados, livros. Há mochilas, roupa, ténis, pantufas, meias e boxers. Há brinquedos, naves, Legos, jogos. Há posters e objectos decorativos vários. Há planetas suspensos no tecto. E muitos, muitos, muitos sabres de luz. Nesta casa, há uma mãe que recebeu dezenas de SMS – em dia de escola, durante o tempo de aulas – a alertar para o facto de as bilheteiras já terem aberto. Uma mãe que ficou à coca, atrás de um computador – em dia de trabalho, durante as horas supostamente laborais – para poder comprar bilhetes para a estreia mundial do último filme do Star Wars. Na Bélgica e em França, os filmes estreiam no cinema à quarta-feira. O que significa que somos sempre os primeiros a ter o privilégio de assistir às premières do Star Wars. Pagas a peso de ouro, com muitos meses de antecedência. Fiz isso com The Force Awakens. E voltei a fazer com Rogue One.

Nesta casa, há uma mãe que faz 160 km, num dia de semana, em véspera de um exame importante do filho crescido, a horas muito pouco próprias, para os levar à estreia do novo filme. Éramos só nós e os maluquinhos de serviço, claro está. Vestidos a rigor. De telemóvel em punho para fotografar. Que dão uma verdadeira fortuna por uma embalagem de pipocas Star Wars. Que sentem nervoso miudinho. Que põem os óculos ridículos com um ar muito circunspecto. Que se riem das mesmas coisas, enquanto trocam olhares cúmplices no escuro. Que passam o intervalo a fazer comentários muito assertivos e a tirar ilações importantíssimas. Que, no final, correm para os grupos de outros maluquinhos do Facebook para tecerem considerações em primeira mão. Que dissecam o filme ao mais ínfimo pormenor, durante o trajecto do regresso.

Nesta casa, há uma mãe algo esgotada. E bastante adoentada. Que ainda conseguiu dormitar, no meio do festival de tiros e lutas. Uma mãe que ia distribuindo tabefes ao calhas no escuro, quando a conversa entusiasmada dos seus pequenos fãs atingia um volume pouco educado. Uma mãe que não queria nada ter a despesa de uma noite meia louca, num mês tão complicado. E que ainda tinha muito trabalho à sua espera, quando chegasse a desoras. Mas esta mãe, ontem, não foi “a melhor mãe do mundo”. Embora eles o tenham dito inúmeras vezes, no meio dos agradecimentos efusivos. Foi a mãe fixe, à qual foi permitido fazer parte deste momento emocionante da irmandade. Há momentos de epifania, em que tudo faz sentido e em que adoro ser mãe. Instantes em que me permito transgredir as regras da maternidade consciente e ajuizada. A tal maternidade preconizada nos livros.  E, mesmo que estejam envoltos em cansaço, fazem com que tudo isto valha a pena. O passarinho a cantar dentro do meu peito.



segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Omnipotência familiar

(porque o Natal oferece a desculpa ideal 

para nos tentarem impingir um ideal único e estereotipado de família)


fa·mí·li·a
(latim familia, -ae, os escravos e servidores que vivem sob o mesmo tecto, as pessoas de uma casa)

substantivo feminino
1. Conjunto de todos os parentes de uma pessoa, e, principalmente, dos que moram com ela.
2. Conjunto formado pelos pais e pelos filhos.
3. Conjunto formado por duas pessoas ligadas pelo casamento e pelos seus eventuais descendentes.
4. Conjunto de pessoas que têm um ancestral comum.
5. Conjunto de pessoas que vivem na mesma casa.
6. [Figurado] Raça, estirpe.
7. [Gramática] Conjunto de vocábulos que têm a mesma raiz ou o mesmo radical.
8. [História natural] Grupo de animais, de vegetais, de minerais que têm caracteres comuns.
9. [Química] Grupo de elementos químicos com propriedades semelhantes

"família", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Por mais que o mundo evolua, é difícil mudar o paradigma da família. Infelizmente, há quem continue a defender a todo o custo a definição que vem descrita no dicionário. De tão redutora, acaba por cair no extremismo, aproximando-se do seu sentido etimológico primário que incluía “escravos e servidores”. Ao serviço de uma causa. Como apanágio da perfeição. Como vitrina do sucesso pessoal, que se expõe numa qualquer rede social. Obviamente, é a altura propícia ao elogio desta noção de família engagée. Ao abrigo de um suposto espírito natalício, aproveita-se para publicitar sub-repticiamente a família estereotipada, porque encerrada em ancestralidade bacoca e convenções.

Mas os laços familiares não vêm no ADN. Também não vêm com um contrato de casamento. Porque há irmãos que nunca serão família. Porque há sogros que nunca serão família. E porque há amigos que são a nossa família. Por vezes, a única que temos. Que são pedras basilares que moldaram o nosso passado, a nossa história, a nossa personalidade. Que sustentam a nossa existência. Amigos sem os quais não concebemos o futuro. A minha amiga Ana é família. Mas não precisa de prendas. Nunca precisou.

Por outro lado, a família não precisa de um número mínimo para existir. Pode ter muitas formas. Duas pessoas podem ser família. Mesmo que sejam duas pessoas do mesmo sexo. Mesmo que sejam duas pessoas de idades muito diferentes. Mesmo que sejam duas pessoas que não estão casadas. Ou que nem sequer vivam debaixo do mesmo tecto. Mesmo que sejam duas pessoas que nunca terão filhos em comum. Aliás, nem precisam de ser duas pessoas… basta ser uma só pessoa e o seu animal de estimação. Há animais que são mais família que muita gente. D. Fuas Roupinho é família. É um elemento da tribo. Apesar disso, também nunca precisou de prendas. Um bocadinho de atenção e algumas festas são suficientes.

Família é quem nós escolhemos levar no coração. Pela vida fora. Apesar das mudanças. Apesar dos pesares. Família é a avódrasta vir passar um fim-de-semana prolongado connosco para levar o Vasco à exposição do Harry Potter em Bruxelas. Família é mimar um menino e fazê-lo sentir-se único por um dia. Mesmo que isso exija fazer quase cinco mil quilómetros. E perder horas num avião. E num comboio. E outras tantas de carro. Família é trazer as nossas pastilhas elásticas preferidas. Sem açúcar. E acertar na papa do Diogo. E no vinho do Pascal. E nas minhas farinheiras. E no chocolate do Vasco. Família é trazer pastéis de nata e travesseiros do dia. Mais o café, que adoramos. Família é dizer de imediato que não queremos prendas de Natal, quando percebemos que a avódrasta se perdeu na loja da exposição. Porque família é pôr os interesses de alguém acima dos nossos, encolhendo os ombros às normas vigentes. Quem mima um dos nossos, mima-nos a nós também.

Família não é obrigar um adolescente que está em plena época de exames a fazer prendas para treze pessoas. Família não é atropelar o afecto, nem apelar ao sentido de obrigação filial. Família não é manipular, trasvestindo a exigência egocêntrica dos adultos em desafio infantilóide. Família não é justificar a ausência de espírito natalício juvenil com o núcleo familiar reduzido. Porque a tribo pode ser pequena, pode não ser convencional, pode ser um pouco louca e até nem estar imbuída de um grande espírito natalício este ano, mas vai obviamente ajudar a resolver este problema. Nem que para isso tenha de comprar e fazer prendas de enfiada. Porque isto é ser família.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Espírito muito pouco natalício

(onde se tenta um “Ho, ho, ho!” e só nos sai um suspiro)


Faltam pouco mais de duas semanas para o Natal. E, este ano, ainda não montei a árvore, nem decorei a casa. Praticamente ainda não comprei prendas nenhumas. A bem dizer da verdade, ainda nem sequer pensei muito nisso. Muito menos na ementa da consoada.

Não sei se por andar noutra onda, completamente anti-consumista. Mais virada para dentro do que para fora. Mais adepta do ser do que do ter. Não sei se por os dias estarem bonitos e solarengos, apesar de frios. Sem indícios de neve. Não sei se por sentir que, entre os anos do Vasco e o Saint-Nicolas, já houve prendas e doces que cheguem por aqui. Ou talvez seja pelo excesso de trabalho. As traduções sucedem-se e, com muita ginástica, lá as vou encaixando nos meus dias de trabalho. Mais os problemas sem fim que vão surgindo em catadupa.

Este ano não posso alegremente saltar o Natal, como faço de dois em dois anos. As férias escolares, na Bélgica, só começam oficialmente a 26 de Dezembro. Os miúdos têm aulas até às 16 horas, no dia 23. Ou seja, só vão partir no dia seguinte à tardinha. E já decretaram que festejam o Natal aqui. Quer dizer, decretou o filho pequeno. Para ele, os festejos nunca são demais. O filho grande, este ano, está como eu… muito pouco imbuído de espírito natalício. Curiosamente, é o único que já tem prenda. Apesar de apregoar aos quatro ventos que não quer prendas, que o Natal é uma festa consumista, que não precisa de nada. Fez-lhe mal ver o Captain Fantastic. Ou por outra… fez-lhe muito bem. Eu ainda tentei argumentar que devíamos começar a festejar o "Noam Chomsky Day", mas ninguém me ligou nenhuma.

Ontem, quando me meti no carro para levar o Vasco à aula de violino, aproveitei para lhe perguntar o que queria como prenda de Natal. A pergunta saiu-me naturalmente, sem que tivesse pensado nisso. Acho que ele ficou tão surpreendido quanto eu. Nunca na minha vida me lembro de ter pedido uma lista de prendas aos meus filhos. Claro que depressa lhe passou o espanto. Foi o caminho todo até Malmedy a ditar-me a sua lista de desejos. Vinte e cinco minutos ininterruptos de prendas. Pensei que me tinha safado. A falta de ideias, este ano, estava definitivamente resolvida. Tanto mais que o Vasco não é uma criatura difícil, tanto pede prendas de uns míseros euros, como de largas centenas. Se é para pedir que seja em grande, certo? Só que no fim – já no finalzinho, quando estava a apetrechar-se com o cachecol, gorro e luvas para sair – lançou-me: “Ou, então, escolhe tu! Sim, mãe… prefiro que me dês uma daquelas tuas ideias!”. Não tive coragem para lhe dizer que, este Natal, não tenho nenhuma daquelas minhas ideias… nada. O espírito natalício anda definitivamente por outras paragens.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Quando o Saint-Nicolas encontra o Harry Potter

(onde se narra um fim-de-semana de festa 

 os adultos acabam por fugir)


Desta vez, não tive o ataque de amnésia habitual que envolve as festas de aniversário em casa. Ainda me lembrava perfeitamente do descalabro do ano anterior: uns miúdos a brincar na neve, outros no Home Cinema a ver um filme, mais uns quantos a brincar às lutas no quarto e os comilões sempre de roda da mesa a limpar tudo o que eu ia servindo… foi um horror! Como bom diplomata que é, o Vasco quer sempre convidar a turma inteira, mas depois arrepende-se porque não consegue gerir aquela malta toda. Ainda tentámos impingir-lhe uma festa no exterior, mas a coisa pequena não se deixou convencer nem pelos insufláveis, nem pelo bowling, nem pelo salão de jogos infantil. Juro que tentei todas as ideias malucas que me vieram à cabeça… e, em desespero de causa, acreditem que vieram mesmo muitas. Mas o Vasco estava decidido a receber os amigos em casa e convidar uns quantos para uma festa-pijama tardia. Por isso, este ano decidi precaver-me. Deixei-o convidar menos colegas e preparei uma festa temática para entreter as hostes. Não foi difícil escolher o tema, tendo em conta a última obsessão do Vasco. Às escondidas, passei tempos infinitos à procura de ideias na Net sobre o universo de Harry Potter para lhe fazer uma surpresa.

Só na sexta-feira à noite é que anunciei o tema, que deixou o filho pequeno à beira da histeria. Imprimi cartazes para espalhar pela casa, listas de feitiços, imagens para enfeitar a mesa, rótulos tipo “baba de dragão” ou “olhos de rato”, perguntas para fazer gincanas e tirei ideias giras para decorar a sala. Além disso, descarreguei a “fonte Harry Potter”, para escrever os nomes dos convidados. No nosso equivalente à loja dos chineses (mas muito mais chique, porque é francês!), comprei as decorações: uma coruja, um chapéu mágico, olhos saltitões, velas led (só para garantir que a criançada não pegava fogo à casa) e pincéis grossos. Depois de arrancarmos a parte metálica com os pêlos, besuntámos os pauzinhos com a pistola de cola quente ou com barro e enfeitámos com umas purpurinas pirosas que encontrámos perdidas numas gavetas… et voilà! Com mais ou menos jeito, num serão divertido, a tribo fez oito magníficas varinhas mágicas. Depois, limitei-me a fazer um bolo de anos… do Harry Potter, como não podia deixar de ser. Acho que foi a primeira vez, na minha já longa existência de mãe, que não fiz uma noitada a preparar o repasto. A verdade é que me deixei de merdas, os miúdos desta idade gostam mais de salgados do que de doces. E já não vão lá com umas simples sandes de fiambre, nem com muffins… Portanto, enchi o congelador de mini-pizzas e mini-espetadas de carne. Mais uns cachorros quentes e as batatas fritas da praxe. A minha sogra mandou um bolo de chocolate e o meu amor tratou do outro. Por fim, restavam uns quantos doces “assustadores”. E muitas pipocas, para gaudio do D. Fuas que adora fazer de aspirador. Quanto às bebidas, aproveitei umas garrafinhas de vidro onde colei umas etiquetas com nomes pouco convidativos e enchi com xaropes diluídos de cores estranhas. Aliás, não comprei a tralha de festas habitual e reciclei os diversos pratos, taças e tacinhas desirmanadas que por aqui andavam. E, pronto, estava feita a festa com pouco trabalho, a custo bastante reduzido… e a horas decentes!

O dia da festa começou com outra festa. Eu explico… Como este ano o dia de Saint-Nicolas calha a uma terça-feira, a festa foi antecipada. Mas não sei muito bem que justificação é que os pais belgas deram aos filhos para a greve santa nos dias úteis... Seja como for, o Saint-Nicolas passou pela Bélgica este fim-de-semana. Em nossa casa, foi mais despachado e passou logo no sábado de manhã. Quando desceram para tomar o pequeno-almoço, os rapazes já tinham os seus pratos cheios. Antigamente, oferecia-se frutos secos, spéculoos, tangerinas, doces e moedas. Hoje em dia, oferece-se brinquedos e doces. Eu ofereço sempre parvoíces várias para a paródia ser maior: meias espampanantes, livros em segunda mão, um relógio-muito-fino-para-não-magoar-o-pulso, um enésimo carregador para o iCoiso, mais uns phones, uma pena que escreve, pensos-especiais-para-dedos-roídos, lápis que são espadas, doces estranhos, um vinho português, uma calculadora histérica que dá música, lenços de pano, sublinhadores ecológicos, tampões-para-os ouvidos-sensíveis-do-cientista-de-serviço, coisas para o futuro Kot do filho grande… Felizmente, o Belga não é tão pateta como eu. O meu prato tem sempre prendas à séria, é uma espécie de pré-Natal.

Mal acabámos de ver as prendas e de tomar o pequeno-almoço, trocámos o Saint-Nicolas pelo Harry Potter. Enquanto o meu amor foi com o Vasco à Reciclagem (é todo um programa, como expliquei aqui), o filho crescido e eu decoramos a casa a preceito. Coisa pequena ficou completamente estarrecida quando chegou! Tenho pena de não termos tirado mais fotografias… mas não houve tempo. Duas crianças que não tinham confirmado a presença decidiram aparecer de surpresa e tivemos de fazer varinhas mágicas à pressa. E o meu amor suou as estopinhas para imitar a bela fonte “Harry Potter” para escrever os nomes deles à mão. A ideia era colar o nome nas garrafinhas para personalizar as bebidas. O “Filtro do Amor” fez sucesso entre as raparigas. Os rapazes preferiram o “Sangue de Dragão” e o “Elixir da Verdade”. Acho que foi a primeira festa em que não tive de limpar refrigerante entornado, nem dei com copos nos sítios mais estranhos da casa. A verdade é que o tema Harry Potter acabou por balizar um bocado a loucura de ter a casa cheia de rapaziada de 10 anos. Os miúdos adoraram, estiverem entretidos e a confusão não foi tão grande. Fizemos um concurso para distribuir as varinhas, que durou imenso tempo. Na porta do quintal, colei uma lista de feitiços… o que acabou por os arrastar lá para fora. Felizmente estava um dia lindo. Com temperaturas quase negativas, mas solarengo. Quando a criançada começou a ficar demasiado excitada, o meu amor lembrou-se de fazer um torneio de bilhar indiano. A seguir, abrimos o banquete. Entre comerem e verem as decorações, passou-se mais um bom bocado. Imensos miúdos pediram para guardar as garrafinhas com os nomes, os chocolates com etiquetas estranhas e as snitch douradas que improvisei com Ferrero Rocher e umas asas. Acabaram por ver aquilo como decorações e, por mais que disséssemos que podiam comer, ninguém queria estragar as embalagens porque queriam levar as lembranças para casa! À saída, podiam tirar um doce mágico do pote dos doces mágicos. Bom… o mais difícil foi mesmo arrancá-los de nossa casa, no final.

Eu estava preocupada com o facto de uns miúdos se irem embora e de outros ficarem cá a dormir, mas acabou por correr tudo bem. A casa foi-se esvaziando aos poucos e, os que era suposto ficarem, deixaram-se ficar para trás discretamente. Curiosamente, apesar do repasto faustoso, ainda se empanturraram com esparguete à bolonhesa ao jantar. Deixámo-los ver um filme às escuras no Home Cinema, na esperança que depois caíssem de cansaço na cama. Não deu resultado. Tal como não funcionou o meu ralhete, nem o do belga. O filho grande acabou por pôr cobro à conversa nocturna com uma das suas ameaças torcionárias: se não se calassem, a meio da noite ia assustá-los a sério. Calaram-se, claro… não durou foi muito tempo, infelizmente. Às 6h30 da manhã já estavam outra vez numa excitação parva. Só que o Diogo dormia a sono solto e não nos veio valer… Ainda os tentámos mandar lá para cima ver mais um filme, na esperança de que o conseguissem acordar. Obviamente, o sono adolescente é mais forte do que tudo o resto… filho crescido limitou-se a enfiar os phones nos ouvidos e virou-se para o outro lado. Como dois sonâmbulos, fomos preparar o pequeno-almoço para esta gente toda. Acabaram com o pão, o mel, duas embalagens de leite e uma caixa de cereais. E ainda assentaram com umas belas fatias de bolo. Não sei que mais teriam comido, se o meu amor não tivesse decidido acabar com aquele disparate e começasse a levantar a mesa. Entre vestirem-se, arrumarem o quarto e mais trinta mil feitiços, começaram finalmente a chegar os pais. Estava eu calmamente a fazer um café, quando o Belga decretou que tínhamos ganho o merecido prémio do pequeno-almoço inglês no café da esquina. Largámos os filhos e fugimos à socapa. E tenho a dizer que soube mesmo muito bem!

[ Saint-Nicolas est passé... ] 

 [ as primeiras varinhas mágicas ]
 [ as meias para libertar os elfos foram um sucesso ]
[ o meu amor quis fotografar a mesa... ] 
 [ estes jelly beans só tinham sabores bons, mas os palermas demoraram séculos a perceber! ]
 [ ainda um dia me dedico ao cake design, pá! ]

[ a alegria do bicho! ]

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Hoje fui a Bruxelas

(onde se vai a correr e não se consegue voltar mais depressa)


Hoje fui a Bruxelas. Apesar de ser uma rapariga citadina, detesto visceralmente esta capital. E se eu adoro capitais! Acho sempre que têm uma mística especial. Excepto Bruxelas, que abomino. Detesto eu e o meu GPS, diga-se de passagem, que fica sempre completamente alucinado. Tem zonas lindíssimas, é certo. A Grand-Place. E tem o meu primeiro amor de adolescência (quando não anda a correr mundo). Tem também a sede da organização onde trabalho, que me recebe sempre com um sorriso. OK… e alguns museus do meu coração, como o Musée Magritte. Fora isso, não tem mais nada. É cinzenta. É feia. É atravancada. Atamancada. Constantemente em obras. Constantemente com ruas cortadas. E desvios. Há reuniões das mais altas instâncias, há cimeiras, há congressos. Há greves e manifestações. E mais obras. Tem rotundas complicadíssimas de se fazer. Muito pequenas e cheias de saídas, onde nunca conseguimos sair a tempo. Não tem estacionamento nenhum. Nem a pagar. Nem nos parques de estacionamento. Tem mendigos por todos os lados. Refugiados sem refúgio. Tem polícias. Muitos, muitos, muitos. Armados até aos dentes. Tem um trânsito infernal, que começa nas artérias de acesso e acaba na mais pequena ruela. Tem comboios, metros, autocarros, camionetas, táxis, bicicletas. Tem um eléctrico que invade a rua e uma pessoa nem percebe bem para onde há-de fugir. Sim, já por lá andei a fugir de um eléctrico. Tem muitos fast-foods e cafés hipsters, onde se paga uma fortuna por uma mini-sandes e uma água escura, servidos num pedaço de xisto. Tem declinações de pastéis de nata a 5 euros. Tem gente apressada. A correr. Engravatada. Donos do mundo. Tem duas línguas e não sabemos com qual vamos calhar. Tem a embaixada de Portugal, que cristalizou algures nos anos 50 pidescos. Tem passadeiras por todos os lados, de onde saltam cogumelos andantes. Tem muitos túneis claustrofóbicos, onde é preciso adivinhar as saídas porque o GPS morre de imediato.

Hoje, também tinha o Natal. Mas aquele Natal que me dá náuseas. O Natal das lojas da Avenue Louise, onde os preços obscenos nem sequer estão afixados. O Natal das iluminações que dão uma luz artificial a uma capital escura. O Natal das senhoras bem-vestidas, cheias de sacos de griffes, a ignorar a pilha de edredons que se acumula nas entradas dos prédios. O Natal das mini-Fnac, com as suas escolhas e promoções e selecções pré-mastigadas, onde não se consegue encontrar um livro de jeito. O Natal das musiquinhas omnipresentes. O Natal das filas intermináveis para avançar, para estacionar, para entrar, para pagar, para sair. O Natal dos supermercados caros, onde só falta darem-nos a ementa da consoada à porta.

E eu, que queria chegar a casa a tempo de montar a árvore de Natal e de fazer o calendário do advento, perdi a vontade toda. Deixei-me ficar muito tempo a ouvir um senhor tocar, na rua. Fiquei à espera que parasse, porque queria dar-lhe o meu cachecol. Estavam 2ºC. Mas o senhor nunca mais parava e tive vergonha de o interromper. Deixei-lhe ficar um café ao lado da caixa das moedas, mas tive vergonha de lhe deixar o cachecol. Não sei porquê.

E eu, que queria aproveitar a ida à cidade para fazer algumas compras específicas, desisti ainda antes de começar. Mas, primeiro, consegui perder o carro, algures no corredor do -3/Verde/Coelho. Talvez ajudasse não ter começado por andar às voltas à procura de um Twingo vermelho, até perder a referência das escadas. Quando finalmente encontrei a Dadá (foi o nome que lhe dei para tentar construir uma memória que não há meio de se fixar), já o tempo de saída tinha expirado.

E eu, que queria sair de Bruxelas o mais cedo possível para não apanhar o trânsito (ainda mais) infernal do final da tarde, andei às voltas durante quase uma hora. O GPS decidiu aderir a uma das greves. Ou não conseguia descodificar o sinal flamengo do satélite. Acabei por seguir às cegas um carro com matrícula do Luxemburgo, que felizmente me conduziu até à entrada da autoestada. O meu primeiro amor diz que um dia ainda acabo morta numa ruela dos subúrbios. Não foi hoje.


Agora, lembrei-me de uma história engraçada que se passou em Bruxelas, 25 anos volvidos. Amanhã, quando recuperar o espírito natalício perdido, logo a conto. Os meus filhos andam sempre à cata de histórias rocambolescas da mãe-menina.