terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Expectativas irreais

(here we go again…)



Passo a manhã a trabalhar em frente à janela, a ver uns tímidos raios de sol. À hora de almoço, decido ir dar uma volta. Apanho uma valente molha. Quando me abrigo debaixo de um toldo, apaixono-me por um vestido de Primavera que está na montra. Felizmente, o fôlego só deu para chegar à loja de roupa em segunda mão. Seria pior se fosse a pastelaria. Não me lembro da última vez que comprei um vestido. Ok… nem sequer tento lembrar-me da última vez que comprei um vestido novo. Entro na loja, sem pensar. Honestamente, acho que me teria desgraçado mais na pastelaria.

Passo a tarde a trabalhar colada ao aquecedor, para ver se consigo secar. E aquecer. Aproveito a pausa do cafezinho (sou mesmo tuga, caraças!), para ligar ao mecânico a marcar a revisão da Dadá. E pergunto se não valerá a pena trocar já os pneus de Inverno pelos de Verão. O mecânico dá uma valente gargalhada. Forço o riso, só para não dar parte fraca.

De regresso a casa, estranho a luminosidade. Já devia estar a anoitecer. E tanta, tanta, tanta luz! Depois, percebo. À medida que vou subindo em direcção às Ardenas, o branco invade por completo o cenário. Os campos estão cobertos de neve. As árvores estão cobertas de neve. As estradas estão cobertas de neve. Outra vez. Voltou a nevar.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Métodos de poupança

(onde quase nos vemos na pele de um empresário muito bimbo)



Mal chegámos da nossa aventura em Marrocos, o Belga pôs-se a magicar as férias seguintes. Conhecendo a minha paixão pelos países escandinavos, ficou logo definido que, no Verão seguinte, rumaríamos algures a Norte. Admito que fiquei um bocadinho apreensiva. Estava perfeitamente convencida de que o custo de vida seria inacessível às nossas parcas economias. E foi assim que, em Agosto de 2015, comprei o meu primeiro mealheiro. Nunca me lembro de juntar dinheiro com tanto afinco, em 40 anos de existência. Na Bélgica, o sistema obriga-nos sempre a avançar uma bela maquia para tudo e mais alguma coisa. Achei que era uma boa ideia todos os estornos que recebesse irem directamente para o mealheiro. Nem sempre consegui, sou sincera. Houve meses mais complicados, em que não consegui juntar nada. Mas, feitas as contas por alto, estava satisfeita com o meu método de poupança.

Contudo, em meados de Abril, cheguei mais cedo do que o previsto ao trabalho e dei com uma das assistentes a chorar. Talvez por também ter criado os filhos completamente sozinha, temos bastantes afinidades. Lembro-me de uma vez ter comentado com ela que estava aflita com a roupa da cama que não secava, porque não parava de chover. No dia seguinte, em cima da minha secretária, tinha dois conjuntos de lençóis e capas de édredon para os rapazes. Tinha começado a trabalhar ali há pouco tempo e aquele gesto comoveu-me. Quando a filha acabou o secundário, deu-me a calculadora científica para o Diogo. E, às vezes, traz-me produtos da horta. Por isso, quando me explicou que não tinha como pagar os dois últimos meses do Kot da miúda (lá está, porque não havia meio de pagarem a bolsa de estudos e ela andava há meses a avançar o dinheiro do alojamento universitário…), decidi dar-lhe o meu mealheiro. Como tive receio de que recusasse, entreguei-lhe a lata ainda fechada, para ela ver que era um extra para as férias, que não iria fazer-me falta no dia-a-dia. Uma vez aberto, o mealheiro tinha pouco mais de 600 euros. O Kot custava 300 por mês, foi um alívio. A minha colega aceitou o empréstimo, mas decidiu que não ia esperar pela bolsa para começar a pagar a dívida. Volta e meia, dava-me os 30 ou 40 euros que tinha recebido no fim-de-semana a trabalhar como babysitter. Infelizmente, como faço sempre as compras da semana durante a hora do almoço, às segundas-feiras, as minhas economias foram aos poucos sendo trocadas por peixe, iogurtes e afins. Nunca mais consegui repetir o feito. Quando fomos finalmente de férias, o único que ainda tinha o mealheiro intacto era o Vasco. Gastou tudo em Legos, claro. Mas estou desconfiada de que, no caso dele, também deve ser considerado um produto de primeira necessidade.

Mal chegámos da Dinamarca, o Belga pôs-se novamente a magicar as férias seguintes. Desta vez, insisti que também tinha de ser um destino desconhecido para ele… o que reduzia consideravelmente a nossa margem de manobra. O meu amor já visitou os cinco continentes e muitos – muitíssimos! – países. Como é evidente, a nossa escolha é bastante ambiciosa e ainda estamos longe de saber se será possível concretizá-la. Mas lá me dispus a comprar um novo mealheiro para recomeçar a juntar dinheiro. Como felizmente não houve quaisquer problemas de saúde nos últimos tempos, tive de arranjar um novo método de poupança. O seguro de saúde intervém automaticamente no preço final das consultas das crianças e jovens, pelo que há muito menos estornos a receber este ano. Depois de pensar um bocado, optei por economizar menos de cada vez, mas com maior frequência. Deste modo, lembrei-me de começar a juntar todas as moedas de dois euros que me viessem parar às mãos. O que me obrigou a alguma ginástica para conseguir chegar a casa sem as gastar entretanto… o que fez com que andasse sempre a trocar dinheiro… recebendo, assim, mais moedinhas de dois euros! Bem sei que parece um método parvo, mas acreditem que acaba por ser engraçado.

Há dois meses, soubemos que o Vasco precisaria de um tratamento bastante caro de endodontia (e escusado será dizer que o outro lado não se mostrou disponível para comparticipar com a metade que lhe era devida). Não entrei em pânico, porque me lembrei do meu novo mealheiro. Mas, depois de contar dezenas de moedas de dois euros, cheguei à conclusão de que o método “menos dinheiro, mais vezes” ficou bastante aquém das expectativas. Vá… não é brilhante. Pronto, é uma merda. A verdade é que a matemática nunca foi o meu forte. Como ainda tínhamos algum tempo antes da consulta, accionei o plano de emergência. Cortei tudo o que era supérfluo. Quando digo “tudo”, foi mesmo tudo. E, quando digo “supérfluo”, talvez esteja a exagerar… algumas coisas não eram assim tão supérfluas. Que se dane, cortei na mesma. Ficámos com o mínimo indispensável. Nada de restaurantes, saídas, passeios, cinemas, roupas… Nada de nada. O dinheiro poupado ia todo para o mealheiro. Mas, depois, o Vasco deu cabo dos sapatos. Duas vezes. Mais umas botas da neve. O Diogo também deu cabo dos sapatos. Resmunguei e fui aos saldos. A seguir, foi o mazout. Esteve tanto frio em Janeiro, que o mazout congelava na cisterna, obrigando-nos a manter o aquecimento ligado dia e noite. Fomos obrigados a encomendar mais 500 litros. Por fim, veio a conta da viagem escolar do Diogo. Não, não se trata de uma visita de estudo. É mesmo uma viagem escolar… a Oxford (e escusado será dizer que o outro lado não se mostrou disponível para comparticipar com a metade que lhe era devida). Voltei a resmungar. Arrependi-me por não o ter deixado vender as garrafas de vinho para diminuir o custo da viagem. Se, no início do ano lectivo, tivesse sabido que a situação iria ser tão crítica, teria mandado às urtigas os meus princípios. No final de Fevereiro, já não me parecia assim tão mal vender álcool antes de se ter idade legal para beber…

Com tantas entradas e saídas consecutivas, o meu pobre mealheiro ficou completamente esquizofrénico. E eu perdi-me nas contas. No dia da consulta no endodontista, o meu amor contou o dinheiro às escondidas e pôs o que faltava. O dente do Vasco não teve salvação. A mandíbula de baixo mantém o desvio, e o ortodontista preferiu usurpar o espaço para fazer avançar os restantes dentes. A parte boa é que não foi preciso pagar o tratamento a peso de ouro. A parte má é que vamos voltar à saga dos aparelhos dentários em breve. A parte mais ou menos é que já temos algum dinheiro de lado. Assim não me apareçam mais sapatos destruídos por magia. Ou mais despesas escolares absurdas. Ou… OK, prefiro não pensar.


[ Quando saímos do endodontista, suspirámos de alívio por termos escapado à vergonha de tirar um envelope da mochila cheio de notas. Na ânsia de fazer economias com métodos arcaicos, nem nos lembrámos de fazer um depósito no banco. A avaliar pelo espanto com que o médico nos aceitou o pagamento da consulta e das radiografias em dinheiro, não quero imaginar a cara que teria feito se tivéssemos de pagar a totalidade do malfadado tratamento… ]

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Fracasso

("There is a crack in everything. That's how the light gets in.”

Leonard Cohen)



No final do primeiro ano do curso de trompete, o Diogo foi obrigado a fazer um exame face a um júri. Tinha onze anos. O exame correu tão mal, tão mal, tão mal, que o professor nunca mais o obrigou a passar por uma tortura daquelas. Acho que ficou completamente traumatizado. O professor, entenda-se. O Diogo – uma vez terminado o calvário – ficou para as curvas. A malta já sabe o que a casa gasta, o pobre professor não sabia. Filho grande tem terror de estar em cima de um palco. Tem terror dos holofotes. Quando digo terror, não estou a exagerar, acreditem. Nesse primeiro exame, o Diogo teve de sair a correr, ainda a última nota ecoava no ar. Largou o trompete e fugiu dali para fora. Estava branco como a cal. Em apneia. Corri atrás dele (com o Vasco a correr atrás de mim, em pânico), com medo que desmaiasse antes de chegar à porta. E ali ficámos, comigo a fazer-lhe festinhas nas costas e a pedir-lhe que respirasse. Quando passou, ríamos os três feitos parvos, nervosos. O professor não conseguiu rir. Tinha apanhado um susto valente, à medida que o miúdo ia gastando o pouco ar que ainda conseguia inspirar, a soprar no trompete. Também ele pensou que o Diogo fosse desmaiar à frente daquela gente toda. Sabe-se lá como, conseguiu que passassem o Diogo, com base na excelente avaliação que tinha tido ao longo desse primeiro ano. E repetiu o feito nos anos seguintes. Invariavelmente, no final do ano letivo, perguntava-lhe: “Mas o Diogo, não tem de fazer um exame?”. Ao que ele me respondia sempre que deixasse estar, que não valia a pena, que as boas notas dos boletins bastavam, que não lhe íamos infligir novamente “aquele suplício”…

O tempo foi passando. O Diogo fez sempre os seus exames de solfejo sozinho numa sala, apenas com o director, a professora e o pianista. Os miúdos foram crescendo, os pais foram deixando de comparecer. Até mesmo porque as provas não eram públicas. Eu fui sempre. Alguém tinha de o empurrar para dentro da sala. E de lhe entregar depressa um chocolate à saída. As notas nunca foram excelentes, mas terminou o curso com boa nota, no ano passado.

Entretanto, o Diogo começou o curso de órgão de igreja. E, aos 14 anos, já ninguém estava com grande paciência para as suas crises de nervos face ao público. Este professor sempre obrigou o Diogo a fazer exames públicos duas vezes por ano. Claro que a coisa corre mal, mas dá para safar. Não há salas de espectáculo desconhecidas. Não há palco. Não há luz. Excepto a que provém dos vitrais e das velas da igreja. E o Diogo toca sempre de costas para o público. Bom… chamar-nos público é ser generoso. Só há três alunos de órgão de igreja. Um deles tem uma notória de jeito, apesar de estar um ano à frente do Diogo. A outra está bastante avançada, pelo que é normal que toque muitíssimo bem. Portanto, o público é constituído apenas por duas mães, uma irmã, o meu amor e eu. Nada de muito intimidante. Mas a verdade é que o Diogo é o menino querido daquele estranho professor e tem sempre excelentes notas.

Há uns meses atrás, o professor de trompete deu a má notícia. A direcção da academia mudou no verão e o Diogo teria mesmo duas sessões de exames, no início de Fevereiro e em Junho. Sinceramente, há muito tempo que não via o filho crescido tão aplicado. Após o pânico inicial, fartou-se de estudar. Fez um esforço para tocar para nós (sim, até à nossa frente ele é incapaz de tocar…), para a namorada e para um amigo. Fora as aulas e os ensaios na academia com o professor que o acompanharia ao piano, no dia do exame. De manhã, antes de sairmos, ouvi-o repetir vezes infinitas as duas músicas. Estava perfeito. Apesar de tudo, achei melhor passar pela farmácia para pedir um tranquilizante natural qualquer. Aconselharam-me três a cinco compridos de valeriana. A medo, só lhe dei dois. A medo, ele tomou os outros três às escondidas. Alimentei-o bem, antes de irmos. Despachei o irmão para casa de um amigo. Pus-me bonita, para lhe dar confiança. E comprei lasanha e gelado para o jantar, já a prever um desfecho menos bom.

O que se passou em cima naquele palco foi algo indescritível. Ele levava uma camisola de malha justa e via-se bem a taquicardia. Estava branco. Quando levantou o trompete, as mãos tremiam tanto que pensei que o deixasse cair. O professor colocou-o estrategicamente virado de lado, de frente para ele e para o pianista. Não valeu de muito. O Diogo teve a coragem de tocar as duas músicas. E tocou-as sempre no tempo certo. Mas era como se o ar não chegasse ao trompete. A música estava lá, mas não estava. O som era praticamente inaudível. E, no entanto, víamos as mãos a mexer rapidamente. Mas o som não saía. O professor desta vez já não ficou espantado. O pianista ficou. Passou o tempo todo a tentar estabelecer contacto visual com ele, como se lhe quisesse perguntar o que se passava. Não ousei olhar para o painel do júri. Duas mesas cheias de gente. O meu amor acompanhava a música com a cabeça, de olhos fechados. Pelo sorriso de satisfação, dir-se-ia que estava a ouvir uma música qualquer imaginária. Eu tentei fazer aquilo que as mães fazem, quando vêem um filho a sofrer. Fiz que conta que tinha poderes mágicos e concentrei o meu olhar nele, a enviar-lhe forças. Tentei respirar por ele. A telepatia materna não resultou, claro. Quando a primeira música terminou, desejei que ele desistisse do exame. Foi horrível vê-lo iniciar a segunda música naquele estado. Fiz um esforço enorme para não chorar. Desta vez, os 15 anos impediram-no de sair disparado. Mas não se veio sentar ao nosso lado. Ficou em frente ao palco, de cabeça baixa, a ouvir todos os outros alunos do último ano do curso de sopro. Calculo que tenham sido quase vinte. Após a deliberação, as notas foram anunciadas publicamente. Todos tiveram entre muito bom e excelente. O Diogo teve insuficiente.

No final, o professor veio falar connosco. Creio que, tal como eu, já estava à espera que o Diogo chumbasse. Estava triste e desiludido, mas não espantado. E eu não pude deixar de pensar que, se ele tivesse mostrado um bocadinho mais de dureza ao longo dos últimos quatro anos, talvez o resultado pudesse ser outro. Acho que, hoje em dia, à força de tanto querermos poupar as nossas crianças do fracasso, não lhes estamos a fazer favor rigorosamente nenhum. O Diogo devia ter feito tantos exames quanto os necessários para chegar ao último ano com confiança suficiente para enfrentar uma avaliação pública. Se tivesse de chumbar algum ano, também não viria mal ao mundo. Apesar de tudo, o professor mostrou-se confiante. Disse-lhe que a avaliação do 1.º período tinha sido bastante boa e que ainda tinham quatro meses pela frente para preparar o próximo exame. Que o professor de piano também tinha ficado estarrecido e que estavam ambos decididos a trabalhar no duro com ele para preparar melhor o exame de Junho.

O Diogo quis ir falar com o presidente do júri, como lhe foi aconselhado. E eu fui com ele. Acho que o senhor foi amoroso. Com uma sinceridade desarmante, explicou-lhe que era impossível cotar o que ele tinha feito em cima do palco. Que a prestação dele nem sequer tinha sido má… não tinha sido, simplesmente. Disse-lhe que nenhum músico pode ter acesso a um diploma se não souber tocar em público. E que, visto o professor e o pianista terem assegurado que o Diogo sabia tocar na perfeição as duas músicas, o único problema que ele tinha de resolver era aprender a gerir o stress. O que não deixava de ser uma aprendizagem valiosa, que lhe iria servir pela vida fora.

Quando chegámos a casa, comecei por lhe reconfortar o estômago. É o essencial para se chegar a um adolescente. E, depois, falei a sério com ele. Pouco me importa o diploma da academia. Eu sei que ele foi obrigado a escolher um instrumento de sopro de que nunca gostou muito, quando quase perdeu a audição em criança. E também sei que quer começar a aprender a tocar um terceiro instrumento, no próximo ano. Obviamente, nunca sabemos as voltas que a vida dá e talvez este diploma ainda lhe possa vir a ser útil, um dia mais tarde. Mas, o mais importante, é aprender a não desistir. Honestamente, penso que este fracasso foi excelente, por mais estranho que isto possa parecer. O Diogo tem um grave problema de gestão de stress. O medo de estar em palco é apenas a ponta do iceberg. E nunca é bom deixarmo-nos dominar pelo medo ou, pior ainda, escondermos os nossos receios debaixo do tapete. Filho crescido tem apenas 15 anos, está em muito boa idade de perceber que pode fazer algo para mudar um aspecto problemático da sua personalidade. Porque hoje foi um exame sem qualquer importância. Mas, amanhã, pode ser um exame na universidade ou uma entrevista de emprego. Penso que é importante perceber o que está subjacente a este medo. Ambos sabemos que cinco ano de desporto de competição em que ele tinha a tarefa ingrata de exercer (sem grande jeito) a função de guarda-redes, deram cabo da auto-estima do Diogo. Ambos sabemos que o Diogo ainda tem de fazer contas à vida, enfrentando uma certa figura central. A prova disso mesmo foi que, passados poucos dias, o Diogo desabafou sobre momentos dolorosos do seu passado e começou a colocar as questões certas, pela primeira vez na vida.

Contudo, mais importante do que procurar respostas no passado, é definir uma meta para o futuro. Quando fizer 16 anos, o Diogo terá de fazer um novo exame, se quiser ter acesso ao diploma do fim de curso de trompete. E, desta vez, tem a responsabilidade acrescida de precisar de um “bom” para passar. OK… posto isto, o que podemos fazer para vencer o medo do palco? E, já agora, aprender a controlar melhor o nervosismo? O Diogo decidiu, finalmente, aceitar a proposta que o professor lhe anda a fazer há anos e vai começar a tocar com a orquestra. Por enquanto, vai apenas tocar nos ensaios. Mas, o objectivo final, será apresentar-se em público no meio dos outros músicos para diluir o nervosismo do palco. Depois, decidimos trabalhar a respiração. Não sei se será a melhor ideia a longo prazo, mas a verdade é que, a curto prazo, ele precisa de respirar e de tocar, em simultâneo. Se bem me recordo das aulas de preparação para o parto, é possível controlar a dor através de exercícios respiratórios automatizados. Comigo não deu grande resultado, mas o Diogo não precisa de saber. Já comecei à procura de cursos de sofrologia e afins, que possam ajudá-lo a relaxar e a controlar melhor a respiração. A ideia agradou-lhe, o que é meio caminho andado para resultar. Admito que sou um bocado descrente destas "ciências" alternativas mas, no estado em que nós estamos, estou disposta a tentar. E, se por acaso conseguirmos descobrir uma maneira de o Diogo finalmente aprender a lidar com o stress graças à hecatombe que foi aquele exame de trompete, acho que vou definitivamente convencer-me de que há males que vêm por bem.


[ Infelizmente, há quem esteja sempre à espera na curva para ver se nos espalhamos, só para conseguir provar uma tese. Há quem deseje o falhanço dos meus filhos apenas para me poder pôr em causa a mim. Faz parte da nossa vida, termos constantemente uma vergasta atrás. Nenhum de nós quebra, por mais que tentem. E, céus, como têm tentado! No final daquele dia, o Diogo não precisava que o deitassem ainda mais abaixo. Por mais anos que passem, nunca me conseguirei habituar à ignominia de certas criaturas ]

domingo, 12 de fevereiro de 2017

A pessoa certa no momento certo

(porque há ocasiões em que é bom ter um pateta alegre por perto)



Na 6ª feira, o Vasco não teve escola. Eu tinha de trabalhar e o meu amor tinha aulas na faculdade. Embora, na Bélgica, ninguém leve os filhos para o trabalho, já estava a preparar-me para levar a coisa pequena comigo. Não seria a primeira vez. A sessão de exames em Saint-Joseph começa na próxima semana, pelo que ele poderia perfeitamente ficar sentado numa mesa a estudar. Com um bocadinho de sorte, seria um dia calmo na biblioteca. Mas, entretanto, o meu amor disse que os pais se tinham oferecido para ficar com o Vasco. Parece que a criatura se porta excepcionalmente bem quando lá está… apesar de eu ficar sempre cheia de medo que ele parta uma das muitas antiguidades expostas pela casa.

Tinha acabado de chegar ao trabalho, quando o meu amor liga a dizer que o tio tinha morrido subitamente. Ofereci-me de imediato para ir buscar o Vasco. A última coisa que alguém quer, numa situação dessas, é ter de tomar conta de uma criança. “Uma criança como o Vasco…”, frisei. Mas o Belga tinha outra opinião. Que não, que estava enganada. Que o Vasco era exactamente a pessoa certa, no momento certo. Que não podia imaginar melhor maneira de aligeirar o ambiente. De alegrar as pessoas que o rodeavam.

O dia em casa dos meus sogros foi pesado. Havia um corpo para reconhecer. Disposições que tinham impreterivelmente de ser tomadas. Familiares que deviam ser notificados. Mas houve tempo para estudar. E fazer crepes. E ver filmes. E brincar. E ler velhas BD. O meu amor diz que foi um dia alegre, apesar dos pesares. Acabaram por lá ficar a dormir. De manhã, o meu amor acordou com as gargalhadas que vinham da cozinha. Quando desceu, deparou-se com um espectáculo inédito. Filho pequeno, com um daqueles seus pijamas-babygrow vestido, animava as hostes. Numa casa onde as crianças nunca foram autorizadas a ir para a mesa naqueles preparos.

Coisa pequena voltou toda animada. Acho que nem se deu bem conta da tristeza que o rodeou. Trazia bolachas e chocolates, como sempre. Trazia um punhal antigo, vindo sabe-se lá de onde. Da última vez, tinha sido um pequeno sarcófago da Índia. Parece que, desta vez, conseguiu não fazer estragos. Os meus sogros agradeceram muito a presença “reconfortante”. O meu amor também. E uma pessoa fica a pensar que aquilo que torna o Vasco único (não no bom sentido, como diria o Diogo), pode fazer milagres num contexto totalmente diferente.



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A novela mexicana

(onde nos apaixonamos perdidamente por um bebé gorila

e passamos a seguir ansiosamente 33 outros gorilas)


Este Natal, ofereci ao Vasco o apadrinhamento vitalício de um bebé gorila da Dian Fossey Gorilla Fund International, a associação fundada por Dian Fossey para proteger os gorilas da montanha. A bem dizer da verdade, Kundurwanda já não é bem um bebé, pois fez três anos em Outubro, uma idade importante para os gorilas. As mães só engravidam a cada três ou quatro anos, quando as crias deixam de mamar e se tornam mais independentes. Kundurwanda está, então, prestes a entrar na idade da parvoeira, tal como a nossa coisa pequena.

Juntamente com o certificado de apadrinhamento e uma fotografia, o Vasco recebeu também o historial de Kundurwanda, que significa "Love Rwanda". O pequeno gorila da montanha vive no Parque Nacional dos Vulcões, no Ruanda, vigiado 24h/dia durante todo o ano. É o segundo filho de Ishema que, em 2006, integrou o grupo Pablo, tido como um dos maiores. Neste momento, o grupo conta com 33 gorilas. O líder é o famoso Cantsbee, um dos mais velhos gorilas “costas prateadas”. Foi a própria Dian Fossey que o baptizou, quando percebeu que o gorila que andava a observar era, na realidade, uma fêmea ao vê-la dar à luz… “It can’t be!”, terá ela exclamado. Cantsbee tem protagonizado algumas histórias engraçadas ao longo dos anos. Não só tem contribuído imenso para a proliferação da espécie, como toma conta dos membros mais novos do grupo com um cuidado inusitado. Consta que uma vez surpreendeu um dos guardas por estar especialmente maldisposto e violento para com os pequenos gorilas. Quando finalmente conseguiu afugentá-los a todos, levantou-se e afastou-se do local. Nessa altura, o guarda percebeu que ele tinha estado o tempo todo sentado ao lado de uma armadilha, para proteger as crias do grupo.

Quando o Vasco apadrinhou o Kundurwanda, o grupo estava a passar por uma fase bastante complicada. Cantsbee tinha desaparecido misteriosamente, uma manhã. Várias equipas tentaram seguir-lhe o rasto, nos dias seguintes, sem sucesso. Cantsbee parecia ter-se, pura e simplesmente, evaporado. Dada a sua vetusta idade, a organização pensou que teria ficado para trás, numa das últimas movimentações do grupo, acabando por morrer. Os dias seguintes foram atribulados, pois o grupo acusou o choque do desaparecimento do seu líder. Alguns jovens gorilas acabaram por se afastar, criando diversos sub-grupos. Gicurasi, filho de Cantsbee e presumível pai de Kundurwanda, parecia ter assumido a liderança do grupo de forma pacífica. O grupo manteve os seus cinco “costas prateadas”, diversos machos e fêmeas de diferentes idades, seis jovens e sete bebés. Consta que Kundurwanda é um dos mais activos, sendo muitas vezes visto em grandes momentos de brincadeira e cumplicidade com o irmão adolescente, Imfura.

Cá em casa, apaixonámo-nos de imediato por Kundurwanda. E passámos a seguir atentamente à distância a vida dos gorilas do grupo de Pablo. Também nos interessámos por aprender mais sobre esta espécie em vias de extinção. Ficámos a saber que partilham entre 98 e 99% do nosso ADN, sendo os nossos parentes mais próximos. Para além disso, todos os gorilhas partilham o nosso grupo sanguíneo B e têm uma impressão digital única. A esperança média de vida oscila entre 30 e os 50 anos, atingindo a maturidade sexual relativamente tarde, por volta dos 12 anos. O tempo de gestação é de 8 meses e meio. São animais herbívoros extremamente inteligentes, capazes de aprender linguagem gestual e de usar ferramentas na natureza, inclusivamente como armas.

Na semana passada, a Dian Fossey Gorilla Fund International enviou ao Vasco o relatório trimestral sobre o afilhado. Kundurwanda está bem e recomenda-se. Já começou a tornar-se mais independente, passa muito tempo com os membros mais jovens e parece estar pronto a abandonar a amamentação. Na fotografia que enviaram, podemos ver um garboso gorila, que encheu de orgulho o padrinho. “Está mesmo crescido!”, comentou o Vasco, embevecido. Ficou especialmente satisfeito por ler que Kundurwanda tem tudo para vir a tornar-se um futuro líder. Aliás, a grande novidade sobre os gorilas do grupo de Pablo diz respeito precisamente à liderança: Cantsbee regressou misteriosamente em Janeiro! Vindo sabe-se lá de onde, o velho gorila retomou as suas normais actividades no seio do grupo, como se nada fosse. Felizmente, Gicurasi parece aceitar bem a situação e mostrou-se disposto a partilhar a recém-conquistada liderança do grupo, que entretanto se voltou a unificar. Nós cá vamos seguindo as aventuras de Kundurwanda, por quem já nutrimos um carinho especial. Pela primeira vez na vida, dei por mim a desejar fervorosamente ganhar o Euromilhões, para podermos fazermos uma expedição com a Dian Fossey Gorilla Fund International para ver os gorilas da montanha. Até lá, vamos consultando a página oficial e aguardando ansiosamente as notícias que nos chegam trimestralmente. O Diogo diz que isto se tornou a nossa novela mexicana e eu não podia estar mais de acordo. Tentámos explicar ao Belga o fascínio que os portugueses sentem pelas telenovelas, mas acho que não fomos bem-sucedidos. Mas foi ele que se lembrou de alugar o velhinho “Gorilas na Bruma” para vermos em família. Prevejo um mar de lágrimas…

Kundurwanda

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Coisas sérias

(porque os filhos não vêm com mapa 

e não temos ninguém para nos indicar o caminho)



Coisa pequena tem namorada. Mais velha. Toda despachada e pespineta. É irmã de um grande amigo. Já cá dormiu em casa. Ele já lá dormiu em casa. Entretanto, deu-se o namoro. Nós achámos piada, mas não ligámos muito. A questão que se coloca, nos últimos meses, é saber como gerir o namoro do mais velho.

Filho crescido tem namorada. Da mesma idade. Muito calma e doce. É colega de escola. Já tinham feito programas em bando, acompanhados pelos pais dela. Já tinham passado tardes cá em casa, a fazer trabalhos de grupo. Entretanto, deu-se o namoro. Nós não achámos lá muita piada, porque ele não foi totalmente honesto connosco, logo no início. Mas também não ligámos muito. Até que a coisa começou a ficar mais séria.

Devido à minha própria história, confesso que tenho horror de namoros adolescentes “sérios”. Se dependesse de mim, só tinham namoricos e flirts nos tempos mais próximos. Vá… nos anos vindouros. Mas já percebi que, no caso do Diogo, não será bem assim.

No nosso aniversário, fomos jantar fora os quatro para celebrar. Afinal de contas, como bem lembrou o meu amor, também fazia quatro anos que nos conhecíamos todos. Era uma festa partilhada. Os miúdos estavam especialmente bem-dispostos. Fizeram muitos brindes. Fartaram-se de rir. Eu tinha levado um jogo para nos entretermos enquanto esperávamos. Os telemóveis e consolas não são autorizados nas saídas em família. Como nunca foram, eles também nunca fizeram caso disso. Preferimos jogos de sociedade. Este agradou especialmente ao Diogo, que se revelou bastante mais falador do que o habitual. Quer dizer, filho grande fala pelos cotovelos e atropela sempre quem tenta interrompê-lo, mas não é muito dado a confidências do foro íntimo. Mas o objectivo deste jogo era precisamente aprender a conhecer os membros da família, através de uma série de perguntas engraçadas. Tipo… “Qual a maior gaffe que já cometeste?”, “Qual o objecto mais importante para ti?”, “Qual o teu maior desgosto?”, etc. O Diogo respondeu com uma honestidade desarmante. E eu sei ler nas entrelinhas. Portanto, os meus alarmes maternos soaram, estridentes.

O problema de vivermos numa zona rural é que a rede de transportes públicos é praticamente nula. Ou seja, Romeu e Julieta estão dependentes das boleias dos pais para se encontrarem. O que deixa porta aberta a interpretações dúbias. Porque envolver os pais no namoro não implica necessariamente que estes aprovem uma relação mais “séria”. Mas eu sinto que, quando vou levar o Diogo a casa da namorada e os pais dela o vêm trazer depois, subentende-se uma certa aprovação da nossa parte. O mesmo se passa quando ela vem a nossa casa. E não quero que o Diogo (ou a namorada ou os pais da namorada…) pense que eu incentivo isso. Aos 15 anos, o namoro pode perfeitamente circunscrever-se à esfera escolar, não? Por outro lado, consigo compreender que o Diogo queira aproveitar os fins-de-semana para estar com a namorada, visto nunca estar cá nas férias escolares. Mas é difícil gerir esta situação, sem me mostrar claramente contra (que não sou), nem completamente a favor (que estou longe de estar).

O meu amor e eu estamos fartos de conversar sobre este assunto, sem chegar a nenhuma conclusão satisfatória. Ele acha que eu devia ir falar com os pais da namorada para estabelecermos um “plano de acção conjunto”, por assim dizer. Eu penso que isso só iria contribuir para oficializar a relação, dando-lhe um ar “sério”. Por isso, limito-me a convidar os adultos a entrar, porque, enfim… sejamos honestos… é um bocado chato manter as pessoas à espera na rua, quando estão temperaturas negativas. Pela parte que me toca, nunca saio do carro. Limito-me a enviar SMS a dizer que cheguei, para evitar conversas de circunstância.

Por outro lado, impus limites que me pareceram sensatos. Não me importo que a namorada venha até cá, quando saem da escola, e que regresse mais tarde. Até posso, inclusivamente, ir levá-la a casa. Quando estão no quarto, a porta tem de ficar sempre aberta. Mas nunca vamos lá controlá-los, apesar de estarem dois andares acima de nós. Nos fins-de-semana em que o Diogo trabalha, não há namoro possível. O Sábado é para trabalhar, o Domingo é dia de estudo e para estarmos em família. Em exclusivo. E tento explicar-lhe que há uma diferença entre darmo-nos bem com a família da namorada e estarmos ao serviço desta. Porque não é suposto controlar o que a namorada come na escola, nem convencê-la a recomeçar a tocar um instrumento ou a arranjar um trabalho de estudante. Aos 15 anos, não pode haver responsabilidade acrescida de espécie alguma. Aos pais cabe a tarefa de educar, à escola de instruir, aos amigos de divertir e ao namorado de namorar. Apenas e só.

Não sei se estarei a agir bem, não tenho grandes referências sobre o assunto. Excepto a minha própria experiência, que foi catastrófica. Tento falar muito com o Diogo sobre isso. Sem impor nada, só mostrar onde eu errei. Onde a minha família errou. Porque é muito fácil “adoptar” alguém como filho, neto, irmão, sobrinho, etc., quando tem apenas 15 anos. E, quando damos por isso, estamos a viver uma “relação de família” antes de estarmos preparados. Uma relação que se torna cada vez mais difícil de terminar, porque entretanto ganhou outras ramificações. Uma relação que é mais fraterna do que outra coisa, só que nunca tivemos oportunidade de viver algo mais. Uma relação sem bases, sem estrutura, sem coluna vertebral, por falta de maturidade. E o que nasce torto, nunca se endireita… mas pode arrastar tanta coisa má atrás. Sei bem daquilo que falo, infelizmente. A namorada do Diogo parece-me uma menina muito querida, mas há uma vida que ainda tem de ser vivida livremente, sem as amarras de uma relação. Acredito que há idades para tudo. Há viagens, Eramus, cursos, trabalhos. Há saídas que têm tudo para correr mal, bebedeiras, drogas ligeirinhas, viagens sem dinheiro, namoros vários, noites em claro a estudar para exames por procrastinações juvenis. Opções de vida que merecem liberdade total de escolha. E é apenas isto que eu gostaria de conseguir garantir a ambos.

Tive o Diogo quando ainda andava a passear pelos corredores da faculdade de letras. A vida dos meus amigos estava a anos-luz da minha. A internet dava os primeiros passos. Li alguns livros, claro. Até mesmo porque, para chegar ao leitor infantil, grande parte da minha tese de mestrado se centrava na psicologia infantil. Mas educar o Diogo foi sempre uma aventura bastante solitária e sem rede. Felizmente, nos primeiros anos, eu ainda tinha aquela certeza (casmurrice?!) típica da juventude. Quando agora vejo esses grupos de mães no Facebook penso que deve ser um alívio imenso confrontarmo-nos com outras vivências. Apesar de não me rever nesta nova geração de mães que parece ter dado dois passos atrás em termos de liberdade feminina, gostaria muito de ouvir outras opiniões avisadas sobre temas que me preocupam. Porque muito mais importante do que discutir fraldas reutilizáveis ou a melhor idade para introduzir o peixe, é discutir assuntos que podem de facto influenciar a vida os filhos para todo o sempre. Espero que esses grupos de ajuda se mantenham até os bebés da lua cheia da segunda semana de março de 2015 se emanciparem. Porque acredito que é necessário para os pais falar da problemática da adolescência de forma responsável, sem invadir obviamente a intimidade dos envolvidos. Podemos expor-nos sem os expor a eles. No fundo, o que interessa aqui é termos acesso a outras pistas de leitura de comportamentos que me parecem transversais. Eu sei que gostaria muito de ouvir outras opiniões sobre este assunto.


[ Entretanto, filho pequeno perguntou se podia convidar a namorada para dormir – porque já cá dormiu antes… – no próximo fim-de-semana, para celebrar o dia dos namorados longe do olhar indiscreto dos colegas. E ainda tenho de ir comprar prenda. Nem fui capaz de lhe responder. Engasguei-me. ]

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Quatro anos de nós

(onde cada dia que passa é melhor do que o anterior)



Ele diz que continua apaixonado por mim, como no primeiro dia. Que aquela história de a paixão durar apenas dois anos é mentira. No nosso caso, ele diz que é mentira. (Eu concordo.)

Dá-me sempre a mão, por mais pequeno que seja o percurso. Andamos sempre de mão dada. Às vezes, dá-me um beijinho na mão e guarda-a no bolso. Desata-se a rir e diz: “É tão pequenina!”.

Ele fica à espera que D. Fuas dê o sinal, quando chego a casa à tardinha. Mal saio do carro, deparo-me com ele a entrar na garagem. Para me receber. Com um sorriso do tamanho do mundo. É quando o meu dia começa verdadeiramente.

Pede-me para ir passear com ele. É dos poucos momentos em que exige exclusividade.

Ele não se cansa de elogiar os meus filhos. As pessoas que eles são. (Porque ele vê-os como pessoas.) Conhece-lhes os gostos, os hábitos, os segredos, as manias, os amores, as fraquezas, as histórias, os sonhos. As disciplinas preferidas e as odiadas. Sabe qual foi a nota que tiveram no último teste. E a data do próximo. Sabe a matéria que estão a dar. Os horários de todas as actividades. Não sei porquê, gosta de ser ele a levá-los ao médico. E, depois, repete cuidadosamente tudo o que ouviu. Sabe que tem de dar a mão ao Vasco no dentista. E que o Diogo não pode ver agulhas. Sabe o número que vestem. E que tipo de calçado preferem. Conhece os autores e séries que estão em alta no momento. E os que já passaram à história. Sabe quais os pratos de eleição e os mais detestados. Todos os domingos lhes traz um mimo diferente da pastelaria e lhes prepara o pequeno-almoço. Corta a maçã aos bocadinhos, porque sabe que é a única maneira de o Diogo a comer. Adora viajar com eles e está sempre magicar novos destinos a quatro. Bem mais do que só a dois.

Quando estou cansada, ele vai para a cozinha. Numa hora, prepara três pratos diferentes. É uma festa. A sua especialidade são as tagines.

Lembra-se perfeitamente do primeiro dia em que me viu maquilhada. Sabe o que levava vestido. E que tinha esticado o cabelo. Eu também nunca mais me esqueci, porque ele ficou a olhar para mim com uns olhos muito arregalados de espanto.

Ele dá-me muitas prendas, nunca deixa passar uma data em branco. No outro dia, deixou cair lixívia em cima de uma camisola que me tinha oferecido e eu fartei-me de chorar. Porque cada prenda tem o seu significado. E eu adoro-as a todas, sem excepção. Desta vez, recebi um livro de Paul Valery e outro da Sylvia Plath. Não sei como é que ele faz para me ler os pensamentos.

Sempre que estou atrasada para ir trabalhar, ele senta-se ao meu lado nas escadas para me calçar uma das botas. Invariavelmente, aperta os atacadores ao contrário.

Sabe exactamente qual a temperatura ideal da água do duche e deixa-a regulada. Se levar os dentes antes mim, deixa sempre a caixinha aberta. Se for depois, tem o cuidado de a fechar.

Às vezes apanho-o a olhar para mim e fico envergonhada. Mas é ele que cora por ter sido apanhado em flagrante.

Ele diz que adora ouvir-me falar. Que gosta da minha visão das coisas. Que aprendeu muito comigo. Ele diz que tenho uma sabedoria prática. Mas ele é a pessoa mais inteligente que eu conheço. Uma espécie de enciclopédia, com infinitas entradas sobre os mais variados temas.

Quando dorme fora, liga-me sempre antes de se deitar. Nunca ao acordar. E quando neva muito, liga-me 15 minutos depois da hora normal de chegar ao trabalho. Às vezes, liga-me só para me ouvir. E diz: “Liguei só para te ouvir”.

Um dia, surpreendeu-me no trabalho com uma planta. “Chegou a primavera!”, disse-me.

Ele diz que nunca se cansa de mim. Gosta de me cheirar o pescoço. E o cabelo. De fazer amor em sítios estranhos. Numa igreja. Na praia. Numa gruta, no meio dos bosques.

Quando encomenda comida, nunca me pergunta o que quero. Mas acerta sempre. Sabe quantos cereais tem o meu pão preferido. Sabe o tipo de alface que mais gosto. E a bebida também. Conhece a marca do meu queijo predilecto. Põe sempre a quantidade certa de mel e pinhões no meu iogurte.

Ele tem uma fotografia do nosso café em Spa, onde nos encontrámos tantas e tantas vezes, naquele primeiro inverno dantesco.

Vai sempre deitar-se uns minutos antes de mim para me aquecer o lugar. Aninha-me na curva do ombro dele. Numa covinha que tem exactamente o tamanho ideal. E ficamos a falar no escuro. Depois, viramo-nos em conchinha. A última coisa que ouço, antes de adormecer, é “Amo-te”.

Às vezes, estamos a trabalhar lado a lado e ele manda-me um e-mail, só para meter conversa. Numa qualquer língua estranha. Ele domina quase uma dezena de línguas. Eu preciso do Google para as decifrar.

Ele odeia visceralmente quem me faz mal. Esforça-se por ser o meu escudo e amparar todos os golpes. Ele diz: “Se soubesses como eu te compreendo…”. E eu sei que é verdade.

Nas últimas semanas, tem percorrido todos os supermercados por onde passa à procura das últimas caixas de marrons glacés desta estação. Ele sabe que é a minha perdição. Quando encontra alguma, deixa-a em cima da minha secretária, sem dizer nada. No outro dia, fez um coração com os marrons. Mas continua a dizer que não é romântico.

Adora ver fotografias minhas de quando eu era criança. E anda sempre atrás de mim, de máquina em riste, para me apanhar os risos palermas. Tenho imensas fotografias a rir, que ele guarda religiosamente. E fotografias de nós os três juntos. Da tribo.

Quando nos sentamos finalmente para ver a nossa série, antes de nos irmos deitar, finge ralhar com o D. Fuas, que se instala sem vergonha no meio de nós. Diz que o cão não pode subir para os sofás. Mas eu sei que ele adora esta mania do nosso cão mimado.

Chama-me petit cœur. Às vezes, pulguinha. Renarde. Ou Raposinha.

Guarda numa pen todos os e-mails que trocámos. Desde o primeiro. E numa caixa, guarda todos os bilhetinhos idiotas que já lhe escrevi.

Ele escondeu um tesouro para mim, nos bosques de Malempré. Debaixo de uma árvore que tem um prego. E escreveu-me um conto com as coordenadas exactas. Mas eu sou tão parva que não as consigo descobrir. E o tesouro permanece escondido.

A primeira vez que ele me viu, através da janela, eu estava a dançar com um Vasco ainda pequenino ao colo. D. Fuas andava aos saltos à nossa volta. Ele diz que nunca mais se esqueceu desta imagem.