sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Querida mãezinha, é só para lembrar...

(onde se dão algumas dicas muitíssimo discretas)

 
 
Querida mãezinha, agora que tens uma filha emigrante, vê lá se não te esqueces do essencial. E o essencial não é vires para aí carregada de malas a abarrotar de roupa quente, que isso ocupa imenso espaço. Os belgas não mudam de roupa todos os dias e não cheiram mal. Pelo menos, o que eu tenho lá por casa não tem um odor desagradável. Duas mudas de roupa chegam perfeitamente para uma semana. A que trazes vestida e uma de reserva. Na pior das hipóteses, podes trazer muitaaaa roupa vestida no próprio dia para teres mais escolha e libertares espaço nas bagagens (sendo que esta última questão é um mero detalhe sem importância, claro). E esquece lá o casaco de pêlo, que a malta aqui desenrasca-te um kispo porreiro. Chapéus de chuva também cá temos muitos, embora na Bélgica ninguém os use.
 
O essencial também não é vires com a mala atafulhada de livros ou com os suplementos todos do Público do fim-de-semana que ainda não tiveste tempo para ler. De qualquer modo, a nossa casa de banho não tem fechadura. E quem se senta refastelado no sofá, arrisca-se a apanhar com o D. Fuas em cima. Embora tenha de admitir que ele aquece uma pessoa, a verdade é que anda com umas pulgas manhosas. A mana é capaz de não achar muita piada se eu te mandar de volta pejada de pulgas. Isto é só um conselho, obviamente farás o que achares melhor.
 
Quanto ao nécessaire de viagem, não sei se sabes, é coisa que passou de moda com o 11 de Setembro. Portanto, não precisas de viajar com os produtos todos de higiene atrás. Primeiro, porque ocupam imenso espaço (não sei se já percebeste que esta é uma questão que me preocupa) e, segundo, porque temos aqui tudo o que precisas. Acho que as tartarugas não se vão importar de te ceder por uns dias a escova de dentes com que lhes coçamos a carapaça. E eu até agradeço que termines a embalagem de gel de banho 3 em 1 "Axe Odor a Trolha" que o teu neto mais velho adorava antes de entrar na fase porca da sua existência.
 
Mas, afinal, o que é essencial trazeres na bagagem? É coisa pouca, não te preocupes. Nada de especial. Eu passo a explicar...
 
Farinheira (em quantidade e qualidade, que somos grandes apreciadores)
Leite condensado cozido da Nestlé
Bolachas Torradas (pode ser de marca branca)
Cérelac de frutas para fazer com água (embalagem azul)
Chocolate culinário Pantagruel (em pó e em barra)
Farinheira (em quantidade e qualidade, que somos grandes apreciadores)
Chouriço (nada de “chouriço corrente”, que isso encontro eu no Luxemburgo)
Pastéis de nata tostadinhos (preferencialmente do próprio dia)
Massa de pimentão (frasco grande)
Travesseios de Sintra (caso fique fora de mão, num cafézinho do Colombo há uns bastante aceitáveis)
Farinheira (em quantidade e qualidade, que somos grandes apreciadores)
Pastilhas Gorila sem açucar (para os netos basta isso, que eles não são esquisitos)
Chapéuzinho de chocolate da Regina (a dar-me discretamente em segredo porque faz mal aos dentes dos meninos e do Pascal também)
Nestum Mel
Bolachas Maria (sim, sim... aqui também se arranja, mas a 2€ o pacote)
Farinheira (em quantidade e qualidade, que somos grandes apreciadores)
Pão com chouriço (fresco, hein?)
Pudins Mandarim ou Royal de laranja (ou os dois)
Postas de bacalhau salgado (se embrulhares em jornal, não empesta a mala)
Colorau em pó
Tremoços
Farinheira (em quantidade e qualidade, que somos grandes apreciadores)
 
E, pronto, acho que é tudo. Pelo sim, pelo não, mantenham os telemóveis ligados até embarcares no avião, porque posso lembrar-me de mais alguma coisa entretanto. Não te preocupes com o vinho do Porto para o belga, que eu compro aqui uma garrafa e dizemos que vem daí. Se a mana tiver comprado o último livro da Isabel Allende e já tiver acabado, traz. Se não tiver acabado, traz na mesma que eu não digo que foste tu. Se o Sérgio Godinho ou o Jorge Palma tiverem lançado mais algum álbum, traz porque eu tenho a certeza de que vais gostar de ouvir enquanto aqui estiveres. Por amor de Deus, não tragas mais nenhuma colectânea da Mariza para ver se não avivamos a paixão do Vasco. Ah... já que estamos a falar de música, faças o que fizeres, não peças ao Diogo para te mostrar o que anda a ouvir. A sério, mãe, não peças. Há coisas sobre o teu neto mais velho que é melhor não saberes.
 
Não te preocupes, vai correr tudo bem. O aeroporto do Luxemburgo é muito pequenino, não há qualquer hipótese de não te ver. Excepto se te esqueceres da lista supra citada. Nesse caso, posso correr o risco de não dar por ti mesmo que esbracejes como uma doida à minha frente. Como já não nos vemos há vários meses, é melhor combinarmos uma palavra-passe. É que pode dar-se o caso de tu ires atrás de outra filha e de eu trazer para casa outra mãe. E de só darmos por isso dias depois, o que era uma maçada. Portanto, o código é: “trouxe tudo o que pediste, filhinha querida do meu coração”. Não te esqueças, hein?





 


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Viver das palavras – parte II

(a produção de palavras)


Tinha acabado de fazer 25 anos quando rebolei gorda como uma baleia até à editora para entregar as disquetes com os últimos livros traduzidos. E foi nessa altura que soube que estavam a passar por uma grave crise financeira, devido à falência inesperada da distribuidora. A crise era tão grande que tinha atingido outras editoras e ninguém ia fazer novos investimentos nos tempos mais próximos. Portanto, não só não ia receber o pagamento previsto, como também não tinham mais trabalho para me dar. Estava muito calor. E eu estava muito assustada. Lembro-me de fugir do sol e de me encostar à entrada de um prédio, a respirar devagarinho para ver se me acalmava. Não me lembro de chegar a casa, só me lembro do medo que senti naquele momento. O Diogo nasceu poucos dias depois.

Eis-me, então, em casa com um bebé e uma tese para escrever. O Diogo não era um bebé difícil, mas passou os primeiros anos sempre doente. Nós tínhamo-nos mudado para um subúrbio-campo de Lisboa que me afastou da família e dos amigos. Nunca havia dinheiro para nada, vivíamos com um parco salário. Foram tempos algo esquizofrénicos, comigo dividida entre a felicidade daquele primeiro filho por quem estava perdidamente apaixonada e uma angústia face ao futuro que me deixava desesperada. Sentia-me muito sozinha. Anos depois, uma homeopata que seguia o Diogo perguntou-me se eu tinha percebido que tinha passado por uma depressão pós-parto. Não dei por isso, mas lembro-me de chorar muitas vezes.

Fiz a minha tese de mestrado numa altura em que a Internet estava a dar os primeiros passos. Havia pouquíssimas coisas sobre literatura infantil editadas em Portugal. O pouco que havia era mais pedagógico do que literário, o que espelhava, aliás, o desprezo com que os estudos literários encaravam a literatura infantil. Apesar de tudo, fiquei chocada com a incredulidade com que a minha proposta de tese foi recebida pela faculdade. Parecia que estava a gozar com eles... “Literatura infantil?!” “A construção do leitor infantil?!” “Cruzar Umberto Eco com Piaget?!” “A usurpação do Winnie-the-Pooh de Milne pela Disney?!” “Mas estará tudo louco?!” A única alma caridosa que aceitou orientar a minha tese dava aulas na Universidade do Minho. Foi um trabalho moroso, duro, sofrido, muito exigente intelectualmente. Quando terminei, jurei que nunca mais na minha vida escreveria uma linha que fosse.

Por mais inacreditável que pareça, foi a primeira tese em Literatura Infantil entregue na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi defendida em Julho de 2003. Tive muito bom por unanimidade. E eu, que até entrar para a universidade, sempre fui uma aluna medíocre, acho que saí de cena airosamente. Para mim, o mais importante foi a sensação de ter quebrado um tabu, de ter aberto caminho a outros. Acabei por nunca fazer nada com esta tese que, sem falsas modéstias, julgo ainda ter interesse. Mas tenho a certeza absoluta de que desbravei terreno. E isso enche-me de orgulho. Isso e o facto de ter escrito aquelas páginas todas com o Diogo sempre ao meu lado. Ao meu colo, a mamar, a gatinhar por ali, a babar para cima dos meus livros e dos dele, sentado a riscá-los, a falar comigo, a trepar pelas minhas pernas… O meu filho tornou-se leitor perante os meus olhos espantados e isso foi muito bonito. Desses tempos, não recordo apenas as dificuldades financeiras e a solidão. Recordo o Diogo a crescer. E eu a crescer com ele. Tornei-me verdadeiramente adulta nesse ano. E recordo o Miró aos meus pés, a velar-me pela noite dentro. Que saudades do meu dálmata doido!

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Um agradecimento sentido

(onde se aproveita também para fazer um rápido rewind

do ano que passou)


O Amigo Imaginário celebrou um ano de existência. Aproximamo-nos das 25 mil visualizações. Continuo surpreendida com o facto de um blog familiar ser lido por tanta gente por esse mundo fora. Esta foi sem dúvida a maior surpresa que o Amigo Imaginário me trouxe. Comecei a escrever sem grandes expectativas, apenas para a família e amigos que ficaram em Portugal. Para o meu amor, que estava a viver em Itália. E para mim, que me sentia muito sozinha. Para organizar ideias. Para memória futura dos meus filhos, que embarcaram comigo nesta aventura de viver 2500 quilómetros a Norte. Sempre pensei que só iria passar por aqui gente amiga. Sei quem me lê no Reino Unido (kisses, family!), na Alemanha (beijinho, Rui!) e em França (bisous, Carla!). Ou lá longe, no Canadá (beijo grande, Christine!). Eu até sei quem me leu este Verão em Cabo Verde (só não mando beijos, que não sou cínica). Mas não faço ideia nenhuma de quem me lê na Europa do Leste ou nas terras longínquas do Oriente. No Brasil. Nos Estados Unidos. Não sei quem são, mas agradeço de coração. Este foi um ano de grandes transformações e fico profundamente comovida por tanta gente nos ter seguido de longe. Espero que a nossa história toque mais alguém. Que faça pensar no fenómeno da emigração sob outro ângulo. Que sirva para mostrar os locais bonitos que vamos descobrindo. Que faça acreditar que os novos recomeços são sempre possíveis. Mesmo que tenhamos medo...

Neste ano que passou, aprendemos a viver com saudades do meu amor, entre reencontros fugazes e despedidas tristes. Ganhei a guarda dos meus filhos, perdi a pensão de alimentos. Comprei uma guerra. Comecei a dar aulas à noite, num horário reduzido. Aprendemos a viver com menos. Vi os meus filhos crescerem. O Vasco partiu um pé, mas não perdeu a alegria. Fomos visitar o tio Rui a Frankfurt. Alimentei um amor por correspondência. O Diogo adolesceu de repente. Recebemos o melhor presente de Natal da família inglesa. O meu amor apareceu de surpresa em Seaford no meio de uma tempestade. O Vasco teve a sua primeira doença e apanhámos um susto. Arranjei um novo emprego que me impõe novos desafios diariamente. Tivemos que reajustar horários. Conheci novas pessoas. Viajámos muito. Andei a galope com o Diogo nos bosques. Fomos a Portugal no Carnaval, mas o tempo passou demasiado depressa. O nosso jardim zoológico cresceu. Fui confrontada com um medo crónico ao descobrir uns problemas de saúde. Fiz muitos exames, tomei muitos medicamentos. Pedi tréguas e sofri nova investida. O Diogo anunciou que quer regressar a Portugal. Senti-me afundar. O meu amor estendeu-me a mão. Regressou de Itália para ficar connosco. Mudámos de casa e iniciámos uma nova vida a quatro. Prestámos depoimento na Polícia. O meu pai e a mulher passaram o Verão connosco e ganhei ao King. Plantámos uma macieira no quintal. Fiz amigos. Recebemos a minha madrasta e fizemos um piquenique no lago. As vizinhas elogiaram os dotes musicais dos meus filhos. Fui tia, mas ainda não conheço o meu sobrinho. Começou mais um ano escolar. O Vasco mudou de escola e fez muitos amigos. Criámos novas rotinas. O meu amor impôs regras. Vou ter outro sobrinho, a quatro horas de distância de mim a quem tenciono dar muito mimo. Deram-me os parabéns por o Vasco não ter vergonha de andar no ballet, senti um orgulho imenso. Li mais livros, ouvi novas músicas, revi séries, fui muitas vezes ao cinema. Aprendi a aceitar que já não estou sozinha, que agora somos dois a educar os rapazes. E escrevi, escrevi muito.

 [ Nós, há um ano atrás. Eles cresceram. Nós também, não é estranho? ]



[ "Chega aonde tu quiseres, mas goza bem a tua rota" ]

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A ti, que às vezes passas por aqui…

(um grande beijinho de parabéns, maninha)


 Acordavas sempre muito cedo. Espreitavas pelas grades do berço e chamavas, baixinho: “Tatá?”. Eu mandava-te dormir, zangada. Mas tu continuavas. Sabias que eu acabava por desistir. Levantava-me sem fazer barulho e metia-te na minha cama. E tu ali ficavas, a brincar, enquanto eu dormitava mais um pouco. Mal ouvia passos no andar de cima, voltava a pôr-te no berço. Às vezes, éramos apanhadas e eu ouvia um ralhete. Porque no final do ano ia-me embora e não te podias habituar a tanto mimo. Ouvi muitos ralhetes. Como naquele dia em que choramingavas doente e fui terminantemente proibida de te meter na minha cama. Tinhas tanta febre. Peguei no édredon e na almofada. Dormi a noite toda no chão, de mão dada contigo.

Quando voltei, muitos meses depois, estranhaste-me. Andavas à minha volta, desconfiada. Não vinhas para o meu colo. Já sabias dizer o meu nome e falavas pelos cotovelos. No final dessa noite, aproximaste-te de mim e perguntaste, a medo: “Tatá?”. As memórias demoraram a chegar, mas estavam lá.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Viver das palavras – parte I

(a certeza das palavras)


Quando entrei para a Faculdade de Letras, há vinte anos atrás, o meu objectivo era ser professora de Português e Francês. A dificuldade nas colocações não me assustava, queria instalar-me algures numa terriola perdida no Alentejo. E por ali ficar, a dar aulas e a ter filhos, numa vida bucólica completamente idealizada. Enfim, não se pode dizer que aos 18 anos as minhas ambições fossem grandes…

Felizmente, tive a oportunidade de dar aulas durante o último ano da licenciatura e percebi que aquilo não era bem o que eu tinha imaginado. Nem teve a ver com o facto de ter calhado numa escola problemática, na Brandoa. Adorei lidar com a miudagem revoltada, mas detestei o “sistema”, por assim dizer, que a condenava tão precocemente. E que me condenaria certamente a uma vida de insatisfação. Nunca me ocorreu pôr em causa a minha escolha inicial, estava no curso certo. E na faculdade certa, diga-se de passagem. O meu mundo sempre girou à volta das palavras. Decidi, então, fazer um mestrado. Literatura Comparada, uma paixão que perdura até hoje. Estava convencida de que havia um leque de possibilidades à minha espera: crítica literária, revisora, bibliotecária, editora… A tradução era a única área que recusava terminantemente por me parecer desenxabida, para tristeza da minha mãe que achava a tradução literária o máximo. Mas acho que se pode dizer que aos 22 anos as minhas ambições já eram bastante maiores.

Durante os dois anos de seminários, fiz várias coisas. Não que precisasse, que sempre fui um bocadinho menina do papá. Dei aulas no ensino recorrente, trabalhei numa editora, num “call center” de dúvidas da língua portuguesa e numa livraria. Nada daquilo me satisfazia plenamente. O que eu queria mesmo experimentar era a revisão. Atraía-me a ideia de trabalhar a palavra, no sentido mais técnico do termo, de a polir. Uma das minhas colegas de mestrado editava numa pequena editora e eu pedi-lhe para me arranjar um manuscrito para rever à experiência. Experiência gratuita, obviamente. Qual não é o meu espanto, quando percebi que o livro que era suposto rever tinha ficado inacabado… Como o tempo urgia, ofereci-me para desenrascar o editor que tinha sido apanhado desprevenido. Esse trabalho foi bastante elogiado e acabou por ser pago, por insistência da editora. E nunca mais parei de fazer traduções. Não me canso de dizer que não fui eu que escolhi esta profissão, foi ela que me escolheu a mim, a contragosto. Tornei-me tradutora porque fui a pessoa errada, no local errado, à hora errada. E ainda bem que assim foi.

Aos 24 anos, achava que tinha o mundo a meus pés. Engravidei do Diogo na fase final do mestrado. Como era trabalhadora independente, não tinha direito a subsídio de maternidade. Fiz um esforço nos últimos meses para traduzir toda uma colecção que me daria o suficiente para me dedicar em exclusivo à redacção da tese e ao bebé nos primeiros meses. E foi aqui que a vida me trocou as voltas e me colocou na dependência de alguém durante os 10 anos seguintes. Por várias vezes, tentei escapar mas acabava sempre por voltar à casa da partida. Este foi o primeiro de muitos erros que cometi no passado.

sábado, 11 de outubro de 2014

Mudança de paradigma

(reflexões que provêm de muitas horas de trabalho

num salão dedicado às famílias)


Olho à minha volta. O zunzum é ensurdecedor. Bandos de casais com crianças a reboque. Muitas crianças. Demasiadas crianças, que os belgas são gente que gosta de procriar. Os filhos únicos, aqui, são uma raridade. Na verdade, são uma raridade tão rara, que eu nunca vi nenhum. A maioria dos casais que conheço tem, no mínimo, três filhos. Quatro, cinco, seis… Começam bastante cedo e têm-nos todos seguidos. Três anos de intervalo parece ser a média nacional consensualmente defendida.

E eu, que sonhava com uma prole numerosa e me derretia à visão de um bebé, sinto-me de repente enjoada. Enfastiada. Este é um sentimento deveras estranho e novo para mim. Mas a realidade é que olho agora para estes casalinhos todos com uma imensidão de filhos – filhos vários, filhos cópia-conforme, filhos em fila, filhos a choramingar nos slings, a esbracejar nos carrinhos, a correr bamboleantes à frente ou a arrastar os pés atrás – e já não me revejo nesta imagem. Sinto mesmo uma certa repulsa.

Que sociedade é esta em que dois jovens apaixonados (ou nem por isso) têm como sonho supremo criar uma família? Em que as pessoas justificam a sua existência através de uma imagem consensual de família? Uma família que, depois, vive anos a fio exclusivamente em função destes filhos? Cujo dia-a-dia se esgota na sua função parental? Em que um mais um não dá dois, mas obrigatoriamente muitos?

Estou feliz com os dois filhos que tenho, são perfeitos. Chegam-me bem. Sinto-me plenamente realizada. Sinceramente, pergunto-me como diabo pude um dia desejar ter mais filhos? A certeza de que essa parte da minha existência está definitivamente encerrada e resolvida, dá-me uma paz imensa que nunca antes tinha sentido.

Foi preciso muito trabalho interior para eu perceber finalmente que os meus filhos são a coisa mais importante do meu mundo, mas que há mais vida para além daqueles dois seres. Que respeitá-los é continuar a evoluir como pessoa. Trilhar o meu caminho individual. Que amá-los é também ter vida própria. Que nós os dois, o meu amor e eu, formamos uma entidade de per se. Onde os meus rapazes são uma parte central, são a maior parte. Mas não são tudo, longe disso. Gostamos de viver um para o outro, num amor que se quer exclusivo. Namorar é um verbo que se conjuga apenas na primeira e na segunda pessoa do singular. E é exactamente por isso que seremos eternamente namorados.
 

[ No meu trabalho há seis colegas grávidas. Muito grávidas. Obviamente, os filhos são um tema recorrente. Toda a gente conhece o meu amor e lhe gaba o amor imenso que tem pelo Diogo e pelo Vasco. Volta e meia, lá vem a pergunta da praxe: “Quando é que vocês têm um filho?” “Ehhh… Nunca? Ele nunca quis ter filhos e eu não quero mais.”, respondo inflexível. Por vezes, perguntam-me se não tenho pena de não ter um filho só nosso, de não ver o meu amor ser pai. A questão é que eu vejo o meu amor ser pai todos os dias. Pela primeira vez, tenho alguém ao meu lado com quem divido tudo. Quando estão doentes, ele está lá. Sempre. Quando é preciso fazer os lanches para levar para a escola. Ou o chocolate quente com pepitas de chocolate que o Vasco adora. Quando é preciso levar às aulas de música ou rever a matéria que sai no teste. Quando é preciso secar lágrimas e ouvir segredos. Por isso, não. Não sinto falta nenhuma de ter mais um filho para sermos uma família como todas as outras. A família que nós somos deixa-me plenamente feliz. ]

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Recado aos chantagistas

(aproveito para recordar que a chantagem é um acto criminoso perante a lei)

 
Por uma questão de princípio, não cedo a chantagens. Venham de onde vierem. Venham de quem vierem. Tenham o custo que tiverem. Estou disposta a pagar o preço. Fui educada assim e faço questão de educar os meus filhos segundo esta mesma premissa. Se também eles forem obrigados a pagar um preço demasiado elevado, azar. É uma questão de ética de vida. Há lições duras de aprender, mas ninguém disse que a vida era simples. Em minha casa, mando eu. E recuso-me a ceder às artimanhas encapotadas de seres desprezíveis que pensam que conseguem alguma coisa acossando-nos. Porque eu não tenho medo. Até me podem voltar a ameaçar de morte. Até podem fazer os meus filhos sofrer pelas minhas decisões. A minha resposta será sempre a mesma: Não cedo a chantagens. Por princípio.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Passeios de fim-de-semana – Vianden, Luxemburgo

(onde se mostra que os adultos também fazem birras)


 
O céu parece chumbo. Chove há dias sem parar. Está frio. O meu amor sorri. “Gosto de dias assim, sente-se o aconchego do lar”. Eu cá não sinto nada, nem os meus próprios pés… Estou cada vez mais portuguesa, para mal dos meus pecados. Espanto a neura a ver as fotografias do passeio que fizemos no último fim-de-semana de Setembro. O Verão ainda se estava a despedir e, depois de muita hesitação, decidimos aproveitar… apesar do clima tempestuoso que se vivia nesta casa.

É que há dias assim. Dias em que os miúdos acordam com os pés de fora e só nos apetece fugir. Explosões de mau-humor à mínima contrariedade, discussões constantes, brigas feias. Violência, mesmo. Pensámos seriamente em desistir do passeio que tínhamos programado. Mas a outra opção era amarrá-los e amordaçá-los, portanto, decidimos arriscar. No carro, mais discussões. Porque um invadia uns míseros centímetros do espaço do outro. Porque um jogava numa consola e o outro não tinha trazido nada. Porque um detestava a música que passava na rádio e tínhamos de pôr mais baixo. Porque o outro adorava a música que passava na rádio e tínhamos de pôr mais alto. Mais alto... Ainda mais alto...
 
A hora e pouco que nos separava de Viaden, no Luxemburgo, foi um verdadeiro suplício. Eu olhava de soslaio para o meu amor, à espera de uma explosão. Amo os meus filhos de paixão, mas estava capaz de os atirar pela janela. Tentei falar calmamente, chamá-los à razão. Ralhei. Castiguei. Tirei consolas e telemóveis. Gritei. Nada, o resultado era zero. Por volta das duas da tarde, capitulei. Decidi adoptar a atitude estoico-heroico-zen do meu amor. Que se matassem um ou outro, queria lá saber.

A chegada à Vianden só tirou o fôlego aos adultos. Tínhamos visto uma maquete do castelo no museu de Clervaux e andávamos há meses a sonhar com este passeio. As expectativas não eram grandes, acho que estávamos ambos demasiado exaustos. Mas, para além do enorme castelo que se vislumbrava no cimo de um monte, a cidadezinha rodeada pelo rio Our era linda. Havia imensas coisas para fazer e tão pouco tempo. Tínhamos perdido metade do dia com discussões. 




Num outro monte ao lado do castelo, havia um teleférico. Num instantinho, púnhamo-nos lá em cima. Depois, era só fazer o resto do percurso a pé pelo meio dos bosques até ao castelo. A malta começou a animar-se. O Vasco estava com nervoso miudinho, mas numa excitação doida com a ideia do teleférico. Até que o Diogo decidiu estragar a festa e decretou que não punha os seus reais pezinhos no teleférico. Nem pensar. Nem morto. Que tinha vertigens, que se sentia mal só de pensar. Que nem valia a pena tentar. Não, ponto final.

Viver com um adolescente é reviver a fase dos “terrible two”. Em looping. Anos a fio, tipo pesadelo sem fim à vista. Birras sem motivo, medir forças só porque sim, esgrimir argumentos para lá de toda a dialéctica possível, testar os limites uma e outra vez. Os limites do próprio, do irmão e dos adultos que o rodeiam. O problema é que, contrariamente à fase dos dois anos, não podemos encerrar uma discussão com um “Sim, porque eu digo e acabou-se a conversa”. Muito menos com uma palmada no rabo, quando o diálogo se esgota. Viver com um adolescente é fazer uma viagem ao passado e reencontrarmos o nosso filho birrento de dois anos, com mais 80 cm e 35 kg em cima. E uma vontade férrea contra a qual pouco ou nada podemos.

Fomos, pois, obrigados a subir monte acima a toque de caixa. O adolescente embezerrado grunhiu um mal-amanhado agradecimento por lhe fazermos, mais uma vez, a vontade e deu corda aos sapatos. O Vasco puxado por mim. Eu puxada pelo meu amor. Os três contrariados. Até que eu explodi. Por que raio de motivo dois adultos e uma criança tinham de fazer o que um adolescente birrento decide?! Eu mato-me a trabalhar toda a santa semana em dois sítios diferentes. Às vezes, ainda faço umas traduções para equilibrar as contas. Os meus tempos livres são para os levar às mil e uma actividades. Mais os médicos. Mais os trabalhos de casa. Mais as refeições para as marabuntas. A bicharada toda. As limpezas. A montanha de roupa para lavar, estender, apanhar, coser, dobrar, arrumar. No caso do Diogo, dobrar e arrumar inúmeras vezes, porque aqueles armários são um caos. O dinheiro que é preciso desencantar às horas mais impróprias para pagar de imediato as folhas milimétricas, a flauta, o almoço, os livros, a piscina, as revistas, as visitas de estudo, as mil e uma merdices que aparecem rabiscadas em papelinhos perdidos naquelas mochilas. Tudo para ontem, pois claro. Que além de ser mãe a tempo inteiro, piloto de Fórmula 1, secretária expedita, cozinheira capaz de adivinhar desejos e multibanco aberto 24 horas por dia que dá fiado e trocado, também sou fazedora de magias várias. Ora… porra para isto. A sério. Quando é que posso fazer o que EU quero, por uma vez na vida?! Por que razão não posso, no meu fim-de-semana, experimentar uma coisa que me está mesmo a apetecer?! Às vezes, uma mãe também desaba, também faz birras. E eu fiz a minha, monte acima. O adolescente fez um sprint final, a fingir que não ouvia. A coisa pequena arregalou muito os olhos e não disse uma palavra. O meu amor continuava estoico-heroico-zen a puxar literalmente por nós.

Finalmente, chegámos ao castelo de Vianden, exaustos. Eu mais do que os outros, porque tinha vindo a praguejar o caminho todo. Mas, pronto, aquilo acalmou-me. O Diogo acabou por acusar o toque e decidiu começar a portar-se bem. O Vasco estava demasiado assustado com a visão da mãe birrenta para fazer mais disparates. O meu amor continuava na onda zen-coiso. O castelo valeu bem a subida de quase 400 metros. De estilo tipicamente românico, começou a ser construído no século X em cima das fundações de um castellum romano e de um refúgio carolíngio. A sua singularidade deve-se às diferentes modificações e ampliações que foi sofrendo até ao século XVII. Muito, muito giro. A vista era fantástica.






Depois de visitarmos o castelo e de bebermos um café, decidimos fazer o percurso pelos bosques até ao outro monte. A vista do cimo do teleférico prometia. O passeio pelo parque natural foi muito giro, com os rapazes novamente mais quezilentos e excitados. Apanha paus, sobe montes, trepa árvores, salta rochas, bate com os paus em alguém… gritos, discussão, corre, apanha, bate… Lá chegámos ao outro monte e, quando vislumbrámos o teleférico colossal, o Diogo ia desmaiando só com a visão dantesca. O Vasco deu um risinho nervoso. Eu acalmei as hostes, dizendo que, de qualquer modo, não íamos andar no teleférico. Estávamos a preparar-nos para fazer a descida a pé, quando o meu amor decidiu fazer uma birra. Normalmente é assim… No meio da tempestade, mantem-se sereno como um rochedo, quando há uma acalmia, ele desaba. Mas sem gritos, nem confusões, que o homem é profundamente nórdico. Quando faz birra, fica de cara fechada e impõe a sua vontade sem concessões. Portanto, estava decretado: ele, eu e o Vasco íamos mesmo fazer a descida no teleférico. O Diogo que se desenrascasse. Tínhamos feito o caminho todo com ele até ali, ele só tinha de refazê-lo no sentido inverso. O percurso estava balizado, cheio de gente, e o sol ainda estava alto. Marcámos encontro à frente do posto de turismo e lá fomos.


 
 
Custou-me um bocado, admito. Que eu tenho vontade de os atirar pela janela teoricamente. Na prática, sou uma pseudo mãe-galinha. Ou seja, gosto que sejam desenrascados, mas debaixo da minha asa protectora. Mas o meu amor estava irredutível… “Também és mãe do Vasco.” Não havia discussão possível. O Diogo lá foi a correr monte abaixo e eu pude finalmente ser só mãe do Vasco. Concentrar-me na minha coisa pequena. Para imitar o irmão que idolatra, o Vasco também já diz que tem vertigens e que detesta alturas. Foi para contrariar esse medo induzido que o meu amor decidiu fazer a descida no teleférico. Haja alguém que mantém a lucidez e me defende do apetite voraz do meu adolescente. É verdade que há momentos em que o Diogo se esquece que já não é filho único, que o mundo não gira à volta do seu umbigo e que o Vasco também precisa de espaço, tempo e atenção para ser gente. Às vezes, é muito difícil ser mãe de dois. Ser mãe de dois filhos únicos, com idades e necessidades diferentes. E, no meio disso tudo, ser uma pessoa com direitos e vontades próprias. Sermos dois. Mantermo-nos apaixonados e atentos um ao outro. Às vezes, perco-me. Felizmente, o meu marinheiro nunca perde de vista a rota traçada e recusa-se a abandonar o leme para deixar o barco vogar à deriva.
 
A descida foi impressionante. O Vasco começou firmemente agarrado aos nossos braços, sem olhar para baixo. Acabou a rir, descontraído. Eu também fiquei feliz por ter feito uma coisa que queria, por ter feito a vontade ao meu amor doce. O Diogo aprendeu que os seus medos podem e devem ser respeitados, mas que têm consequências que terá de assumir sozinho. Fomos dar com ele à porta do posto de turismo, com um ar falsamente descontraído. Tenho a certeza que desceu aquele monte a correr, como se estivesse a ser perseguido por um serial killer directamente saído do “Criminal Minds” que ele adora. Olhando para trás, acho que foi um dia em cheio. Cansativo, intenso em emoções… mas feliz. “Foi um dia bom, não foi?”, perguntou-me o meu amor quando chegámos a casa já tarde. Foi…não sei como, mas foi. Se isto não é amor, não sei o que será.
 





sábado, 4 de outubro de 2014

A rua

(onde fui tão feliz em criança)


Nasci e cresci em Lisboa. No meio da cidade e, no entanto, tão perto do campo. Uma simples linha do comboio separava-nos de Monsanto. Naquele tempo, as crianças andavam em grupo à solta na rua. Era assim que nós lhe chamávamos: “A rua”. Abria a porta de casa e gritava: “Vou para a rua!”. E ia, simplesmente. A rua tanto podia ser as traseiras do meu prédio, como toda a zona que ia das portas de Benfica ao Jardim Zoológico. Ou Monsanto, lugar interdito que supostamente não podíamos explorar. A garagem do meu prédio, onde esvaziávamos os pneus dos vizinhos com quem implicávamos. Os terraços dos prédios ao lado, onde testávamos a pontaria com ovos roubados em casa à socapa. A rua era também as casas uns dos outros, onde éramos visita frequente.

Ninguém em casa sabia muito bem por onde eu andava. Sem telemóveis, nem supervisão de irmãos mais velhos. O grupo das minhas irmãs era outro e o seu território também. A minha única obrigação era voltar à hora das refeições. O papo-seco com manteiga e açúcar podia ir comê-lo para a rua, mas a hora do jantar era sagrada. Às 19h30, em ponto. Sempre fui uma exímia perdedora de relógios (e de chaves de casa e de passes e de módulos de autocarro, que substituíam o passe desaparecido até ao final do mês). Safavam-me os gritos das mães dos outros, que viviam muitos andares abaixo do nosso: “Ó não-sei-quantos, anda jantar!”.

Éramos muitos. Não sei quantos. Rapazes e raparigas, de idades diferentes. Vizinhos, amigos desde sempre. Muitas vezes, amigos de segunda geração, dado que os nossos pais já eram amigos ainda antes de nascermos. A esses chamávamos “primos”. Uns tinham as mesmas origens, outros vinham de meios completamente diferentes. Havia os filhos únicos e os que tinham 7 irmãos. A única coisa que nos unia era o espaço físico que partilhávamos. As coordenadas geográficas. A infância comum. As aventuras e os castigos quando éramos apanhados. Alguns apanhavam tareias de cinto. Eram os mesmos que vestiam a roupa que deixava de nos servir e que não tinham dinheiro para comprar bolos na padaria, quando a fome apertava e não tínhamos ninguém em casa. Mas os disparates que nos passavam pela cabeça eram os mesmos. Fazer telefonemas anónimos, gozar com os donos das lojas da zona, roubar pastilhas Gorila no supermercado, saltar a fogueira no Santo António mesmo no meio, descobrir grutas em Monsanto, espiar vizinhos “suspeitos”. Adoptar cães abandonados. Desde que me lembro, a nossa rua tinha sempre um cão. O cão de todos. O cão da rua.

Passei muitos meses à janela a vê-los brincar lá em baixo. Já os conhecia quase todos, claro. Uns melhor do que outros. Mas demorei mais tempo a ter autorização para ir brincar para a rua “sozinha”. Um dia, o meu pai chegou e viu-me empoleirada em cima da mala de trabalho dele a espreitar a rua. Perguntou-me se eu também queria ir brincar para a rua. Não sei porquê, nunca lhe tinha pedido. Mas, nesse dia, levou-me pela mão até lá. Dirigiu-se a uma menina mais velha e apresentou-me. “Esta é a Rita. Quando ela quiser, podes levá-la a casa?” Assim, sem mais. Eu tinha 5 anos. Nesse dia, a rua passou a ser também minha.

A Ângela só me levou a casa no primeiro dia. Depois, tive de me desenrascar sozinha. Por sorte, o meu prédio tinha uma espécie de assentos de mármore à entrada, onde eu me encavalitava para tocar à campainha da porta. O pior eram os elevadores. Sempre fui muito pequenina e só consegui chegar ao botão do 9.º andar muitos anos depois. Primeiro, comecei por subir as escadas a correr, mas morria de medo quando a luz se apagava. Eu também não conseguia chegar ao botão do patamar para voltar a acendê-la. Depois, descobri uma técnica que fui aperfeiçoando. Começava por carregar no botão do 5.º andar, o máximo onde chegava. Depois, enquanto o elevador subia, saltava o mais que podia até chegar ao botão do 9.º. Se, quando chegasse ao 5.º, ainda não tivesse conseguido tocar no botão do meu andar, tinha mesmo de continuar a subir a pé pelas escadas, porque a luz do elevador apagava-se automaticamente. Um dia, não sei porquê, esqueci-me de saltar e saí no 5.º a pensar que estava no meu andar. Distraída como era, só dei pelo erro quando uma velhota que eu nunca tinha visto me abriu a porta. Apanhei um susto tão grande, por pensar que tinha entrado noutra dimensão, que nunca mais me esqueci dos meus saltos. Sim, essa era a época em que víamos a “Quinta Dimensão” todos juntos na sala à noite.

[ Ontem fomos ao parque no final da tarde com o Vasco. Enquanto namorávamos afastados num banco, vi-o fazer dois novos amigos com aquele à-vontade que só as crianças têm. Ainda estiveram um bom bocado na brincadeira. E ao vê-los a correr livres por ali, bicicletas atiradas uma para cada lado, lembrei-me da minha infância. Lembrei-me da minha rua e dos meus amigos. Uns ainda hoje são meus amigos, outros a vida encarregou-se de nos separar. Muitos foram levados pela droga, pela Sida... Senti uma moinha de saudades no coração. ]

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Faça você mesmo para poupar

(onde se inicia uma nova rubrica do tipo Do It Yourself

em tempos de crise)


Pois que esta que vos escreve tem um talento escondido. Um talento escondido é como quem diz. Não será bem um talento. Talvez seja mais um jeito. Vá, sejamos sinceros... Esta que vos escreve tem uma paixão secreta. Ao diabo com o talento e o jeito.

Sabem aquela coisa do DIY, mais conhecida entre nós por “Faça Você Mesmo”? E aquela outra do “No poupar é que está o ganho”? Pois eu cá consegui juntar as duas numa só e ainda elevar a cena a passatempo. Hobby, para ser mais fino. Toda uma inovação, portanto.

E que raio de hobby é esse, perguntam vocês? E eu respondo, honestamente. Até podia mentir que ninguém ia perceber, mas prefiro ser honesta. É tipo “Faça Você Mesmo Para Poupar Dinheiro”, onde a poupança está longe de ser o mais importante. O meu hobby preferido consiste em ter uma desculpa perfeitamente válida para me pôr a fazer as coisas mais estapafúrdias cá em casa com as minhas próprias manitas. Que eu sou pessoa que até tem um certo jeito de mãos. Ou, pelo menos, que está convencida que tem. Pronto, não é bem convencida… Bom, na verdade, o jeito também não interessa por aí além, como já devem ter percebido.

Na prática, por vezes até acabo por gastar mais dinheiro do que se comprasse o objecto já feito numa loja qualquer. A soma das partes é frequentemente mais cara do que o resultado final. Mas tento. E isso é suficiente para me deixar de consciência tranquila. Porque posso dedicar-me ao meu hobby sossegadinha, sabendo que um dos objectivos é tentar poupar dinheiro. Não estou apenas a divertir-me… estou a divertir-me sem gastar muito dinheiro com isso. O que, bem vistas as coisas, é bastante nobre. Nobre talvez não seja a melhor palavra. É apaziguador para o eterno sentimento de culpa tipicamente materno.

Mas, afinal, estamos a falar exactamente do quê? De tudo e mais um par de botas, basicamente. Porque desde que seja exequível e sirva para poupar, já é positivo. A utilidade também é importante. Quanto mais não seja, a utilidade decorativa. Ah… e o facto de ser um desafio para as minhas supostas competências manuais. Ou para a minha imaginação.

Neste caso concreto, iniciamos esta nova rubrica com algo que é útil e que, de facto, me permitiu poupar imenso dinheiro. É pá… parece que a desculpa da poupança não é assim tão esfarrapada quanto isso, bem vistas as coisas.

Findo o preâmbulo para introduzir a nova rubrica, passamos à apresentação propriamente dita. Quem nos segue, conhece a nossa paixão por animais. Bem… a paixão de três dos quatro humanos que habitam nesta casa. O adolescente, entretanto, cresceu e deixou de achar piada à bicharada. Se me permitem um aparte, devo admitir que estou convencida de que a paixão pelos animais é uma fase típica da infância que acaba sempre por passar, mais cedo ou mais tarde. O meu amor e eu ainda estamos à espera que passe. Felizmente, parece que não está para breve.

Ora a questão é que a bicharada é uma fonte inesgotável de despesa. Há que comprar os bichos, as gaiolas, os diferentes objectos que as compõem, a alimentação das feras… Podem argumentar que, normalmente, a maior despesa é feita no início. Depois, é só comprar a comida. E pagar uma ida ao veterinário, de vez em quando. Sim, sim… mas o problema aqui reside precisamente no facto de que o adjectivo “feras” não é uma hipérbole. Se quisermos ser rigorosos, será mesmo um eufemismo. Todos os nossos roedores são armas de destruição massiva. O coelho e o porquinho já destruíram três gaiolas. O hamster já vai em quatro. Portanto, há que ser inventivo no que toca a estas bestas. Invenção essa que esteve logo na base da compra do aquário das tartarugas. Vai daí, comecei a pensar numa maneira de melhorar as condições dos bichos e de poupar dinheiro. Eis, então, as minhas novas três invenções: uma gaiola exterior para o Peanuts e o Dó Ré Mi, uma nova gaiola “insonorizante” para a Belle e um aquário transportável para as tartarugas.

Na Bélgica, todos os coelhos domésticos têm uma espécie de casinhas exteriores onde vivem no Verão. Só que custam uma verdadeira fortuna… assim, qualquer coisa entre os 150 e os 200 euros. Eu resolvi o assunto por 15 euros, com um parque para bebés que comprei numa loja em segunda-mão da Cruz Vermelha e que vedei com rede. Esta minha invenção permite-me deixar os bichos no quintal durante o dia, evitando que o Peaunuts tenha os seus ataques de animal enraivecido que destroem gaiola atrás de gaiola. Por outro lado, como posso ir deslocando o parque todos os dias, eles vão comendo ervas diferentes, permitindo-me economizar na comida e fazendo de “cortador de relva ecológico”.







A Belle também vivia na casinha do quintal, juntamente com os outros bichos. O problema é que começou a fazer demasiado frio para ela e tivemos mesmo que a trazer para dentro de casa… a salvo dos avanços caçadores do D. Fuas, evidentemente. O Vasco ficou todo feliz por tê-la no quarto, mas o barulho à noite era ensurdecedor. Mal as luzes se apagavam, a bicha parecia possuída pelo diabo e começava a roer furiosamente as grades. Experimentámos tirar as grades de cima e pôr um livro pesado a tapar a entrada. Nunca percebemos muito como, mas de manhã íamos sempre dar com ela enroscada no meio dos brinquedos. Foi, então, que me lembrei de adaptar uma simples caixa de plástico transparente que me custou 12 euros. Uma caixa alta, muito alta… que enchi de coisas para ela brincar, porque os hamsters são animais espertos como tudo e precisam de desafios constantes. A ponte que construí é, sem dúvida, o preferido. Há que dizer que a Belle é o animal mais asseado que conheço. Preferiu fazer o ninho cá fora e usar a casinha para fazer as necessidades.





As tartarugas fomentaram toda uma discussão nesta casa. O meu amor tinha prometido ao Vasco um piriquito como prenda de passagem de ano. Mas eu tive medo que o bicho acabasse esfrangalhado pelo D. Fuas. A minha ideia de substituir o passarinho por duas tartarugas foi bastante mal acolhida. Porque as tartarugas não têm piada nenhuma, porque as tartarugas precisam de uma lâmpada de aquecimento senão morrem de frio, porque as tartarugas são um bicho hiper sensível… A verdade é que as bichas já cá andam há umas boas semanas e até já cresceram. Não me perguntem é os nomes, que eu não sei. O Vasco vai mudando os nomes e já desisti de os fixar. O aquário também é uma caixa transparente de plástico comprida que custou 8 euros, que decorámos com umas pedras do quintal e uns peixes de brincar. A vantagem é que podemos passar o dia atrás do sol com a caixa. E elas lá andam, com a cabecita toda esticada a apanharem banhos de sol. Quando ficar frio, espeto com elas ao lado do aquecedor e pronto. E não pensem que são uns bichos inertes sem piada nenhuma. Já se habituaram a nós e adoram festinhas na cabeça e massagens na carapaça com uma escova de dentes.





Pronto, não é exactamente o “Faça Você Mesmo” mais artístico do mundo. Mas diverti-me à brava a fazer estas coisas, a magicá-las. Foram baratas e garanto que são mesmoooo úteis. Prometo que, mal estiver pronta, vos mostro a cama de casal que comecei a construir. Não que sejamos umas bestas, até somos uns seres com hábitos noctívagos bastante discretos. Mas devo admitir que a cama que veio de Malempré já estava imprópria para consumo… :)