segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O meu trabalhador-estudante


(e uma não-resposta)


 

Um belo dia num já longínquo 2012, quando dava aulas na Athénée de Spa castiguei um aluno do 10º ano especialmente enervante com um longooo trabalho de casa. Na Bélgica, não se manda ninguém para a rua. Os relapsos vão trabalhar para o "Étude". O miúdo lá se acalmou, mas informou-me que não ia conseguir fazer tudo naquele dia. Desconfiada, perguntei porquê. Era 4ª feira, dia em que as aulas terminam ao meio-dia. Explicou-me que, à tarde, trabalhava como caixa no Carrefour. E eu fiquei de boca aberta, literalmente. O miúdo, franzino para os seus 15 anos, era um autêntico bicho-carpinteiro. Não estava nada a imaginá-lo a fazer um trabalho de responsabilidade. Quer dizer, não estava nada a imaginá-lo a trabalhar no que quer que fosse. Tanto mais que era "menino de boas famílias", muito snob e altivo... aliás, como a maioria dos alunos daquela escola. Foi nesse momento que comecei a perceber que o trabalho de estudante é uma instituição neste país.

Os jovens são incentivados a trabalhar durante todo o seu percurso escolar, a partir dos 15 anos. Esse incentivo começa no próprio Estado, que oferece vantagens fiscais elevadas às entidades empregadoras. O salário mensal inicial por oito horas diárias é de 1050 euros, independentemente do trabalho. E vai sempre aumentando... A partir dos 18 anos, passa para 1500 euros. Por outro lado, o mundo do trabalho está perfeitamente adaptado aos horários escolares. Os miúdos trabalham durante as férias escolares, aos fins-de-semana e às quartas-feiras à tarde. Há sempre uma enorme rotação de trabalhadores-estudantes nos supermercados, nas lojas e nos restaurantes, porque só podem trabalhar no máximo 52 dias por ano. Quando terminam os estudos secundários ou universitários e entram finalmente no mundo do trabalho, é-lhes exigida experiência. É impensável, aqui, um jovem sair da universidade sem qualquer experiência profissional. Não interessa se trabalhou numa friterie, num campo de férias, num supermercado ou a limpar a via pública para a Commune. O que interessa é mostrar-se trabalhador, proactivo, motivado. O que interessa é provar que se soube ter a humildade de começar por baixo, a fazer trabalhos menores durante as pausas lectivas.

Obviamente, o Diogo está desejoso de começar a trabalhar, à semelhança de todos os seus amigos mais velhos. E não é por falta de dinheiro, é mesmo porque tem vontade de ganhar o seu próprio salário. Ainda ontem, quando lhe dei dinheiro para ir ao cinema com uma amiga, me disse que estava deserto de começar a trabalhar para poder pagar as suas próprias saídas. A rir, disse-lhe que não se preocupasse porque eu tinha tirado o dinheiro da conta dele... ao que o Diogo me respondeu que, de qualquer modo, era eu que lhe pagava a mesada. Não deixa de ser verdade. E fico satisfeita por ver que ele percebe bem a diferença.

Nunca me passou pela cabeça que a entrada do filho crescido no mundo do trabalho pudesse ser tão problemática para o outro lado. Poder-me-ão dizer que sou demasiado ingénua. Passados tantos anos, parece que ainda não me habituei a esta acção concertada para minar a educação que nos esforçamos por dar a estes dois miúdos. Toda a sua existência neste país é pura e simplesmente escamoteada, negada, ignorada. É destilado um desprezo contínuo por tudo o que envolva a Bélgica e a nossa filosofia de vida. Porque o Diogo "está na idade de dar, não de receber". Porque agora devia era fazer "trabalho voluntário", bastante mais valorizado pelas "universidades". Que não é vantajoso para o currículo trabalhar na caixa de supermercado de "uma aldeola ou de um vilarejo". Que um adolescente precisa mais de contacto familiar que de trabalho. Que a maneira "ruinosa" como giro a minha vida começa a espelhar-se na vida dos meus filhos, de quem comecei a tentar "tirar proveito"... Uma pessoa lê este ror de disparates e nem sabe por que ponta lhe há-de pegar.

Explicar que, num país economicamente saudável, a sociedade cívil não precisa de colmatar as obrigações do Estado e que, portanto, não existe trabalho voluntário para um miúdo de 15 anos?! Explicar que no Norte da Europa há trabalho específico para jovens e que usufruir dessa benesse do Estado é bem visto? Explicar que o Diogo se candidatou todo contente para trabalhar no Verão numa espécie de colónia de férias para idosos e que esse trabalho será profissional, logo... que merece ser devidamente remunerado?! Explicar que trabalhar na caixa de um supermercadozinho de aldeia pode ser altamente enriquecedor para um jovem?! Que com 15 anos a vida familiar irá entrar naturalmente numa fase de pousio, porque a descoberta do mundo e os amigos ganham outra dimensão?! Que terei de pôr, uma vez mais, a minha vida pessoal atrás do crescimento saudável do meu filho... impedindo-me de ir de férias para ele poder trabalhar, precisando que eu vá levar e buscar sempre que necessário ao trabalho, fazendo as tarefas domésticas que lhe competem, porque trabalhar cansa e o rapaz vai chegar derreado nos primeiros tempos?! Explicar que se avizinham discussões com o Diogo porque ele terá mesmo de pôr metade do que ganhar na sua conta-poupança em vez de esbanjar tudo em parvoíces?! Que o dinheiro amealhado não servirá para pagar a universidade, mas os interRails, as férias e as borgas normais de um adolescente?! Enfim... são tantas as explicações a dar a gente encarcerada na sua visão poucochinha do mundo que mais vale não me desgastar.

Na sexta-feira passada, o meu amor fez o currículo do Diogo, porque eu fiquei perdida a olhar para uma página de vida ainda vazia. Em menos de um nada, apareceram três páginas de gente. Afinal, aquela vida incipiente tinha tanto para contar! As opções que escolheu na escola, as línguas que já domina, os instrumentos que toca, os gostos musicais e literários, os desportos que pratica nos tempos-livres, o amor pela culinária, todas as qualidades que fazem do Diogo um miúdo especial, capaz de o diferenciar dos outros. Fiquei enternecida por ver o filho crescido tão bem descrito pelos olhos do meu amor, que o conhece como ninguém. Achei aquilo um bocadinho exagerado, mas limitei-me a colar uma bonita fotografia do miúdo (sem borbulhas).

No sábado de manhã arranquei um Diogo estremunhado da cama. Na "Maison de l'Emploi" de Vielsalm havia um salão dedicado aos trabalhadores-estudantes. Não lhe disse nada de propósito, para o apanhar de surpresa e ele levar a coisa na desportiva. No salão, havia vários stands com empregadores da região. Todos os jovens presentes estavam acompanhados pelos pais durante as entrevistas, mesmo os mais crescidos. Excepto no stand de uma empresa que fazia construções de madeira nos campos, o Diogo quis inscrever-se em todos os tipos de trabalho disponíveis: hotéis, restaurantes, parques de atracções, casas de repouso, etc. Fez as entrevistas um bocadinho nervoso, mas acho que se desenrascou muito bem. Às vezes, eu corrigia-o discretamente em português: "Não digas que te é indiferente o tipo de trabalho que podes fazer, diz antes que tudo te interessa". Entregou uma série de currículos como gente grande. Fotocópias do bilhete de identidade e do cartão multibanco, com o número de conta dele. Agendou novas entrevistas. Eu estava orgulhosa, confesso. E espantada. É estranho ser mãe deste novo filho crescido. Quando, no final, vi a senhora dos serviços sociais de Vielsalm toda interessada no currículo dele, em detrimento do CV de um miúdo bem mais velho, percebi que o meu amor tinha acertado em cheio na descrição que fez do Diogo. De todos os trabalhos propostos, o trabalho com os idosos foi o que o deixou mais interessado. Nem sequer se importou de se inscrever para fazer limpezas no lar, o que me deixou arrepiada só de pensar, admito.

E nesse preciso momento lembrei-me subitamente de uma outra história de um jovem "trabalhador" muito diferente daquele meu aluno rico de Spa. Uma história antiga de um adolescente com 18 anos já feitos, que ficou a fazer apenas uma disciplina do 12º ano em horário nocturno. Um miúdo que não teve inteligência para entrar numa universidade do Estado, embora os pais não tivessem dinheiro para lhe pagar uma privada. Um miúdo que estudou às custas do dinheiro amealhado a duras penas pelos avós, que teve oportunidade de conhecer mundo graças ao pai da namorada. Um jovem que, quando um amigo da família lhe arranjou o primeiro emprego a lavar janelas num hotel de 5 estrelas, desistiu antes do final do dia pois não aguentava a dureza e a humildade do trabalho. E apareceu a chorar baba e ranho na universidade da namorada, que naquele dia anteviu envergonhada as premissas do homem que se estava ali a formar. Sempre achei que isto era o resultado da triste sobranceria típica do português de classe média... a tal que um dia mais tarde vem dizer que fazer voluntariado aos 15 anos é mais digno do que trabalhar. Felizmente, o meu filho Diogo deu com anos de atraso uma lição de humildade a este homem, deixando-me muitíssimo orgulhosa.

9 comentários:

  1. É por isto que esta vinda me enriquece, saber como é a vida real desse país...E estou espantada com a minha ignorância, não imaginava que fosse assim a passagem para a vida adulta e que os futuros empregadores valorizassem esse primeiro percurso enquanto jovens! Tão longe do que aconteceu há vários anos com o tal jovem mas também com outro já menos jovem que entrou na vida, por ligação com a minha filha... Boa sorte para a escolha do Diogo! Beijinhos, mãe de filho crescido!

    ResponderEliminar
  2. Às vezes questiono-me se será interessante para quem aqui passa ler os posts que escrevo sobre as diferenças culturais entre os dois países, mas depois penso que há tanta coisa que só quem vive esta experiência na pele pode saber... mais vale, aproveitá-la. ;)

    ResponderEliminar
  3. Falo por mim: tenho aprendido tanto por aqui! E não só sobre como é diferente viver por aí mas também sobre como é possível dar a volta por cima, partindo do ponto (quase) zero. Gosto de comunicar um pouquinho consigo, ainda que não nos conheçamos e que haja tanto a separar-nos! Beijinhos, Rita!

    ResponderEliminar
  4. Sabes que acho que vais ser sempre presa por fazer e presa por não fazer, no que aos teus filhos diz respeito, pelo "outro lado"...

    Quem me dera que cá fôssemos assim civilizados a essa ponto, há tanto puto hoje em dia que bem precisava de trabalhar a partir dos 15 anos, para aprender a ser homenzinho/mulherzinha... por cá certos valores andam pelas ruas da amargura e o "trabalho faz calo"... e por isso não é bom....

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, nas últimas vezes que estive em Portugal fiquei surpreendida com os miúdos que vi no Colombo: telemóveis caríssimos, roupa e ténis de marca. Não sei como os pais conseguem pagar aquilo tudo. Parece que a crise é mesmo só para alguns... Aqui também se vê isso, claro. Mas a maioria dos jovens trabalha para pagar esses luxos.

      Eliminar
  5. Não é só na Bélgica que o trabalho dos estudantes é uma instituição prestigiada e considerada indispensável para a formação dos jovens liceais.
    E surpreende-me que o assunto te tenha surpreendido... É que o mesmo se passa em Inglaterra, e tu tens duas primas inglesas, que começaram a trabalhar aos 14 anos - se bem me lembro, a Claire começou em vendas numa loja de roupa desportiva (onde teve formação inicial sobre como atender os clientes, contou-me ela, na altura), e a Alison num Post Office, a vender selos. É claro que aos 14 anos só podem trabalhar um número muito limitado de horas, que vai crescendo depois. A minha irmã ficou um bocado surpreendida, mas o John nem admitiu discutir tal “instituição britânica”. Aliás, além da experiência e responsabilidade que adquirem - e que, como é óbvio, é muito maior se forem pagas do que se fizerem só voluntariado- é esse dinheiro que assim ganham que lhes dá mais cedo alguma "independência" face aos pais e os obriga a aprender a gerir o seu (curto) orçamento.
    Ah, e ambas fizeram depois o “gap year”, que era então obrigatório entre o fim do liceu, aos 17 anos, e a entrada na Universidade, aos 18, para serem maiores e saírem de casa, pois a regra em UK (como nos Estados Unidos) é fazer a Universidade longe (e fora) de casa – e já não voltar depois... Aliás, o quarto de cada uma foi transformado numa saleta, que tinha um sofá-cama onde podiam ir a casa dos pais dormir quando quisessem, mas que "já não era a casa delas" – o que também surpreendeu a minha irmã, mas conformou-se, porque em Inglaterra é assim - sendo por isso que não há casos de jovens a viverem em casa dos pais até aos 30 como cá ou em Espanha.
    Nesse "gap year", A Alison foi fazer voluntariado para a América Latina e a Claire trabalhou em criptografia, num trabalho que depois manteve nas férias até acabar o curso (mas onde parece que não terá conhecido o Bond…) e que, em troca, lhe pagou boa parte das propinas, muito caras em Inglaterra, pois as boas Universidades lá são privadas, ao contrário do que se passa cá, em que só os medíocres vão para as (medíocres) Universidades privadas (com a única excepção da Católica, que tem qualidade aceitável). Para mais esclarecimentos, pergunta-lhes detalhes, ou sugere ao Diogo que lhes pergunte...
    Aliás, é de um tolo provincianismo pensar-se que a “forma portuguesa” de fazer as coisas é “a boa”, pois em todos os países da Europa as coisas se fazem de forma diferente da que se fazem cá (e diferente entre eles), como os meus alunos de Portfolio do IST, que iam de Erasmus, percebiam claramente logo no princípio do semestre. Ah, e a forma portuguesa de fazer as coisas foi o que conduziu o país aos resultados que se conhecem; portanto, deve ser mesmo má!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O que me surpreendeu não foi a existência do trabalho para estudantes, que eu conhecia bem, porque o meu primeiro trabalho foi exactamente neste país a fazer babysitting com 14 anos, se bem te recordas. E obviamente também conhecia a experiência das minhas primas. Fiquei foi espantada por aquele meu aluno, especificamente, trabalhar. Uns dias antes desta descoberta, ia sendo atropelada pelo pai dele à porta da escola, que conduzia um Audi espampanante... e tu sabes que eu nem sou de reparar em carros!

      Na Bélgica, tal como em Inglaterra e nos EUA, também é hábito sair de casa aos 18 anos para ir para a universidade. Nem outra coisa me passa pela cabeça! Aliás, pela do Diogo também não. Quanto ao ano sabático, é pouco comum. Mas a Benedicte fê-lo e espero sinceramente que o Vasco também faça. Entrar aos 17 anos para a universidade é um perfeito disparate. Pode ser que tantos anos de violino sirvam para o tipo ganhar dinheiro a tocar no metro e poder correr mundo... pelo menos, onde houver metro! :D

      Eliminar
  6. Pois, esse babysitting acabou por ser a tua sorte grande, para salvar o descalabro desse ano - embora, a partir de Macau, depois de uma noite ao telefone, eu já te tivesse arranjado uma alternativa, mas em Bruxelas, o que te obrigaria a mudar de escola. Assim foi melhor... E serve para ilustrar outra vantagem de trabalhar - os contactos que se fazem...
    Mas, voltando à tua "surpresa", a questão não é se o pai é rico ou pobre, se conduz uma Audi ou um Mini, é que trabalhar, a partir dos 14 anos, e enquanto se estuda, é considerado nesses países uma "experiência educativa" tão importante como uma qualquer disciplina escolar e, possivelmente, mais importante do que muitas disciplinas...
    Finalmente, nos locais onde não há metro, há sempre uma Praça central onde ninguém vai preso por tocar violino. Tocar no metro é que está a cair em desuso, por ser mais perigoso face aos assaltos...

    ResponderEliminar