quinta-feira, 24 de julho de 2014

A madrasta

(porque há pessoas que não partilham os nossos genes,

apenas o coração)


A história da minha família é daquelas que dava um livro. Tipo saga familiar imbricada no contexto histórico e político cambiante do país. Quando os meus pais se conheceram, cada um deles tinha uma filha pequena de um primeiro casamento. Os meus pais partiram para Angola, os pais das minhas irmãs juntaram-se. As minhas irmãs – que não são irmãs – são mais irmãs uma da outra do que minhas. Os meus pais separaram-se, mas ficaram a viver na mesma rua. Eu saltitava de casa em casa. O meu pai teve mais um filho com outra mulher, com quem vivi desde que me lembro de ser gente até à adolescência. Entretanto – e porque há gajos que demoram imenso tempo a achar a pessoa certa, mas nunca desistem – o meu pai voltou a separar-se. Não teve mais filhos. Vive há mais de 20 anos com a mesma mulher.

Em nossa casa, não havia madrastas, nem padrastos. Excepto nos contos de fadas. Cada um tinha o seu lugar e nunca houve atropelos. Um dia, a Lena chegou a casa a rir. Uma colega minha da Primária encontrou-a no café e perguntou-lhe descarada: “Você é que é a madrasta da Rita, não é?”. Na altura, ainda não havia muitos divórcios em Portugal e eu era um bicho raro. O termo ficou, por brincadeira. A Lena passou a ser a minha “madrasta” e assim se manteve mesmo depois de se ter separado do meu pai. Aliás, chamo-lhe muitas vezes “Bruxa”. Ao que ela responde “Parva”. Entre nós é só amor, como se pode ver.

A minha madrasta não é minha madrasta, mas eu não me importo. É a pessoa mais bruta que conheço. Mas é também a mais sensata. Diz as verdades todas na cara e às vezes dói. Magoa. Não chora, nem é pessoa de grandes mimos. Passou anos a dizer que me estava a meter num buraco sem saída, apesar de eu não a compreender. Não aprovou a pessoa que escolhi e deixou-o sempre bem claro. Recebeu com desagrado cada uma das minhas gravidezes. Olhou com desprezo para a vida que fui construindo e que ela via que não me deixava feliz. Que era uma armadilha. Mas esteve sempre presente. Do primeiro ao último momento. Quando tudo se desmoronou, foi em casa dela que me refugiei. Disse-me “eu bem te avisei” muitas vezes. Demasiadas vezes. Mas, depois, também me disse que estava na altura de andar para a frente, de fazer alguma coisa da minha vida. Tenho a certeza que ficou de coração partido quando vim para a Bélgica com os miúdos, ela que já tinha visto o filho emigrar para a Holanda. A ambos nos disse que era a melhor solução possível.

A avó preferida dos meus filhos não é avó deles, mas eles não se importam. Foi a primeira pessoa a quem chamaram “avó”, ainda antes de completarem um ano. Dá-lhes os mimos todos que nunca a vi dar a ninguém. Em casa dela podem fazer tudo o que estão proibidos de fazer nos outros sítios. Dá-lhes prendas e pizzas e gelados. E cinema. Deixa-os alugar os filmes mais idiotas e enrosca-se com eles a vê-los no sofá. Faz os programas mais absurdos. Deixa-os deitarem-se às tantas. Foi a pessoa que mais vezes nos veio visitar. Com a mala sempre cheia de guloseimas e papa Cerelac. Conheceu a casinha de Malempré quase vazia e, agora, o novo palácio onde já pode fumar no quintal. O sorriso foi sempre o mesmo.

A minha madrasta é a prova viva de que as madrastas são más e rabugentas. Que estão sempre a lançar-nos à cara todos os nossos defeitos. Os disparates da infância e as histórias escabrosas da adolescência. Que dizem que somos más mães e que só fazemos disparates. Que nunca aprovam o que fazemos. Mas que têm uma confiança cega de que os nossos filhos estão melhor connosco do que com qualquer outra pessoa. E de que havemos de nos safar, de uma forma ou de outra. Que o caminho se faz andando, sempre para a frente, sem olhar para trás. Que as saudades não matam ninguém.

A minha madrasta nunca se fez de boazinha para ser amada, bem pelo contrário. E também nunca disse mal da minha mãe. São amores complementares, feitos de anos de convivência, de memórias e histórias passadas. É ser família sem dizer que somos, sem impor. É partilhar o nosso coração, mas não os genes. É estar presente, sempre, mesmo que ao longe.


(os três da vida airada, há uma eternidade atrás)

3 comentários:

  1. Tomara todos os que têm madrastas poderem tecer estes elogios! Porque há madrastas que são segundas mães :-)

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  2. Que bonita homenagem. Cada vez conheço mais casos de bons padrastos e madrastas e são uma luz neste mundo em que as famílias já não têm nada a ver com o "tradicional" do século passado.

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  3. Conquistar um lugar no coração dos filhos do outro e ser por eles conquistado não é para quem quer, é para quem pode! E as coisas estão a mudar, é certo. Mas continuo a achar que isto ainda é para poucos...

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