quinta-feira, 31 de julho de 2014

Pena de prisão de um ano

(posso perdoar muita coisa, mas isto nunca)


Incorro numa pena de prisão de um ano. E o que fiz eu, para merecer tal condenação? Dei um calduço ao meu filho Diogo, quando o ouvi chamar “filho da puta” a alguém pela primeira vez na vida. E obriguei-o a pedir desculpa, claro. Suponho que terei feito o que qualquer mãe de um adolescente faria.

“De um calduço, faz-se um par de estalos”, pensei eu, quando soube que tinham feito queixa de mim à Polícia. Arrolando várias testemunhas. Não. Um simples calduço transformou-se em várias chapadas, que terei continuado violentamente a desferir, mesmo depois de um homem de quase um metro e oitenta me ter agarrado para defender o filho. De um simples calduço faz-se uma queixa por ofensa à integridade física de um menor, punida com um ano de prisão. Coups et blessures”, diz-se em francês. Coups et blessures”… palavras que não me saem da cabeça.

Eis-me, então, intimada a ir ao posto da Polícia de Vielsalm prestar declarações. Eu e o Diogo, claro. Ser oficialmente ouvida porque me acusam de espancar o meu próprio filho foi humilhante. Mas ver o Diogo ser levado por um polícia para prestar declarações foi dilacerante. Porque ele só tinha duas hipóteses e qualquer uma dela implicava acusar um dos pais. E isto parece-me demasiado cruel para um miúdo que acabou agora de fazer 13 anos. Se dissesse a verdade e explicasse que eu lhe dei apenas um calduço, o Diogo estaria a admitir que o pai é mentiroso e que prestou falsas declarações. Se confirmasse a acusação que me era feita, o Diogo estaria a admitir que eu era uma mãe violenta. Em qualquer dos casos, um dos pais estaria a mentir sobre um assunto muito grave e cabia-lhe a ele – e apenas a ele – dizer qual deles era.

O Diogo disse não ter visto o pai a agredir-me, nem ter ouvido todas as ofensas que proferiu. O Diogo disse não ter visto a minha cara cheia de vidros, quando o pai partiu o vidro da frente do Jeep do meu companheiro com um murro. Defendeu o pai como conseguiu, porque é um filho excepcional. Mas não foi capaz de mentir. Contou com palavras dele que ofendeu o “padrasto” e que eu lhe dei um simples toque com a mão na nuca para o forçar a pedir desculpa. Que não o espanquei. Que não o magoei. Que não o feri. Que não se sente lesado.

E embora seja a mais pura das verdades, não deve ter sido simples de admitir. Não há vingança que justifique obrigar um filho a passar por isto. O Diogo quer regressar a Portugal e sabe que bastava concordar com a acusação que me era feita para o seu desejo ser satisfeito de imediato. O Diogo idolatra o pai e sabe que essa imagem idealizada ficou para sempre destruída. Porque quando um polícia nos lê uma acusação completamente falsa, cujas consequências podem ser gravíssimas, não há maneira de desculpar o indesculpável. E quando uma mentira cai, fica muito mais difícil continuar a desculpar tantas outras.

O Diogo entrou naquele posto de Polícia com 13 anos e saiu de lá adulto. Ter a coragem que ele teve, sem vacilar, sem se sentir culpado, sem ter medo das consequências da sua lealdade para comigo, é de homem. E eu tenho muito orgulho no homem em que este meu filho se está a tornar. Não é fácil, temos dias muito complicados. A adolescência põe a nu o nosso lado mais negro, mais sombrio. É preciso ter uma força incrível para continuar a lutar por um ser que nos mostra toda a raiva que sente contra o mundo, contra as injustiças, contra tudo o que se opõe às suas mínimas vontades egocêntricas, contra mim. Mas o meu amor é inabalável. Eu sei que à fase de conflito típica desta idade se junta toda uma manipulação maniqueísta que ultrapassa o Diogo. Nem sempre é evidente, mas consigo não misturar as coisas. E o Diogo também conseguiu, quando pôs a verdade à frente dos seus desejos imediatos e de um amor endeusado.

Não sei se o processo será arquivado depois das nossas declarações, espero que sim. Eu tenho a minha consciência tranquila. O polícia pediu-me muitas vezes desculpa, que em 31 anos de serviço nunca tinha visto um disparate tamanho fazer 2500 km para aterrar na secretária dele. Acompanhou-nos à porta e disse-me que tivesse coragem com uma doçura que destoava com o seu corpanzil. É verdade que entrei lá de coração partido e os olhos inchados de tanto chorar. Com meu amor, rochedo sólido ao meu lado. Com um miúdo a arrastar os pés atrás de mim. Mas saímos de bem com a vida. Nós que nos tínhamos zangado na noite anterior, unimo-nos naquela manhã quando fomos apanhados de surpresa. Depois de uma tarde bem passada no mini-golfe, acabámos a noite enroscados uns nos outros a ver televisão. A dar miminho, sem saber onde acabava um e começavam os outros. A mãe a lamber as suas crias.

 

[ Um obrigada especial ao meu pai e à mulher dele que ficaram na retaguarda a guardar o forte. O Vasco ficou em pânico quando viu a Polícia à minha porta logo pela manhã. Pensou que me vinham prender. Enervou-se muito com tudo isto. Mas a segurança, a calma e a firmeza da família são sempre o melhor antídoto. ]

7 comentários:

  1. Bolas...
    Pega daqui um abraço apertado, que não sei o que mais te posso dar.
    Que situação...

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  2. Horrível, ninguém merece passar por isto, muito menos tu e o Diogo. Fico muito contente que tenha acabado bem, dentro do possível numa situacao destas e que seja de facto o fim desta acusacao ridícula e o processo fique por aqui. Cada vez tenho mais orgulho em ti e no meu sobrinho! Tu és a prova viva de que a coragem nao se mede aos palmos, se assim fosse tinhas bem mais de dois metros de altura! Felizmente que o teu pai e a esposa dele estavam aí para ficar com o Vasco, que coitado, também nao merecia um susto destes. E fico muito contente também por teres alguém do teu lado que te apoia nestes momentos tao difíceis. Adoro-vos! Um beijo muito grande e um grande abraco com muitas saudades.

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  3. Indignações, abraços e beijinhos fazem sempre bem à alma. Obrigada. :)

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  4. Sem vos conhecer, gosto muito de te ler.
    Força! Que isto fique para trás rapidamente.
    Abraços apertados.

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  5. Obrigada, ddm. Suponho que ao ler-me, já nos conheces um bocadinho. Não deixa de ser estranho... :)

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  6. Sem palavras... fiquei de coração apertado ao ler isto...

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