quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A hora do almoço... e tudo o resto

(onde se fala da ausência de peneiras)


Hoje, desci da minha torre de marfim para picar o ponto à hora do almoço. Estava a meio do percurso e já ouvia gargalhadas. Na secretaria, estavam todos em amena cavaqueira. A secretária-mor andou na cave à procura de uns documentos e encontrou velhos álbuns de fotografias que encafuei na prisão*, à falta de ideia melhor.

Fui buscar o meu almoço e por ali fiquei, a ver fotografias do século passado. A rir ao reconhecer os carecas com cabelos. E as velhotas de mini-saia. Quando os meus 15 minutos da praxe acabaram, subi e comecei a lavar a loiça. O meu chefe veio atrás, pegou num pano da loiça e pôs-se a limpá-la. Uma das psicólogas da associação arrumou-a. A aprendiza de psicóloga fez mais café para todos. Depois, voltámos calmamente ao trabalho.

Esta é talvez a característica que mais gosto nos belgas: a falta de peneiras. A simplicidade. No trabalho, somos todos iguais. Todos nos cumprimentamos com um beijinho de manhã. Da senhora da limpeza ao director. Todos trazemos comida de casa, que aquecemos à vez no micro-ondas. Para economizar tempo e dinheiro. Da senhora da limpeza ao director. Almoçamos com quem está mais à mão, com quem precisamos de falar, em frente ao computador, se houver trabalho para acabar… sozinhos, se estivermos num dia não. Da senhora da limpeza ao director. Ninguém se rala por hoje fazermos uma coisa e, amanhã, outra. Não há cá mexericos, nem comentários. Reina a descontração.

A casa de banho é só uma e, às vezes, há fila. No início, fazia-me um bocadinho confusão fazer chichi, sabendo que o meu chefe estava à espera atrás da porta. Mas depois habituei-me. Tal como me habituei a vê-los descalços, nos dias mais quentes. Ou a percorrer os gabinetes para ver se alguém deixou um casaco esquecido, quando arrefece subitamente. Com o passar dos meses, comecei a sentir-me em casa.

A roupa que já não serve ao Vasco vai para os filhos da secretária mais nova que, depois, os dá à contabilista. A assistente social vai dar-me uma estante. As coisas passam de uns para os outros, simplesmente. Quem se quer desfazer de algo, passa primeiro a palavra para ver se alguém precisa. Não há desperdícios inúteis. Tal como toda a gente sabe que, se houver fruta a estragar-se no frigorífico, qualquer pessoa pode comê-la. É assim uma espécie de espírito comunitário, de microcosmos social, que resulta. E resulta bem. Sem peneiras.

 
[ *A sede da associação onde trabalho fica no antigo edifício centenário da Junta de Freguesia. Na cave, há uma prisão verdadeira, ao estilo dos Irmãos Dalton, que servia para curar bebedeiras e resolver disputas entre vizinhos. Actualmente, serve para arrumar tudo o que não tem arrumação. No sótão onde fica a “minha” biblioteca, há um chão falso com um buraco especialmente concebido para guardar tesouros. Infelizmente, está vazio. Nas traseiras do edifício, há uma salinha que comprometemo-nos a ceder a quem precisasse. Às terças-feiras de manhã, ouvimos os aplausos que pontuam as reuniões do WeightWatchers e, aos sábados, a cantoria inflamada dos seguidores de uma igreja africana qualquer. ]


 

2 comentários:

  1. Começo a achar que as peneiras são um exclusivo lusitano. Dispensava-o tão bem.

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  2. Todas as nacionalidades têm os seus "exclusivos" especialmente irritantes. Sem dúvida que as peneiras são apanágio do tuga! :)

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