quarta-feira, 2 de março de 2016

Audição

(e outras histórias)


Filho crescido teve hoje a sua primeira audição de órgão. Não deixa de ter a sua piada fazer um exame na igreja, rodeado por aqueles santos todos nas cornijas. E se ele precisava de protecção! O Diogo tem terror absoluto de tocar em público. O professor de trompete – que o conhece bem de outros Carnavais – dispensou-o de todos os exames, no ano passado. Acho que deve ter ficado traumatizado com a última audição, quando o Diogo saiu a correr da sala ainda o som ecoava no ar, branco como a cal, com falta de ar. Quer dizer, não sei se ficou mais traumatizado com a apneia do Diogo ou com a nossa reacção de gozo absoluto, porque sabemos bem o que a casa gasta.
[ Sempre que mencionamos este trauma do professor de trompete, lembramo-nos de um outro, bastante mais cómico. Para a história familiar ficou o dia em que o dito professor de trompete, homem bonacheirão dos seus cinquenta anos, foi como habitualmente lá a casa dar aula, ainda nós vivíamos em Malempré. Estava um dia chuvoso e eu tinha posto o estendal da roupa na sala. O senhor estava em amena conversa comigo, enquanto o Diogo ia buscar o trompete lá a cima. Nisto, foi-se aproximando cada vez mais do estendal... até que bateu com os olhos numas cuecas de renda vermelhas com umas fitinhas de cetim de lado. O pobre homem deu um pulo para trás, como se tivesse apanhado um choque. E ficou todo corado. Eu acho que também corei, mas depois fiquei cheia de vontade de rir com a atrapalhação dele. A partir dessa altura, passámos a ter o cuidado de meter o estendal na casa de banho, sempre que era dia de trompete, para não ferir a susceptibilidade do senhor. ]
A audição de órgão correu bem, embora o ensaio antes da chegada do director da Académie tivesse corrido bastante melhor. Pelo menos, o filho grande conseguiu respirar. E tocar, que era o que se pretendia. Engasgou-se um bocadinho no início da primeira música, mas a segunda saiu impecável. Eu – que não percebo rigorosamente nada de música – fico sempre espantada ao ouvi-lo tocar, após apenas cinco meses de aulas.
[ Desta vez, também fiquei espantada por vê-lo todo aperaltado para a ocasião. Na Bélgica, a partir do 10º ano, é suposto os alunos irem bem vestidos para as orais na escola. Os rapazes costumam levar uma camisa e casaco de fato. Por isso, nos últimos saldos, aproveitei para lhe comprar um casaco azul de gente grande na H&M, que me pareceu ficar giro com umas calças de ganga. A ideia não é transformá-los em “mini-homens”, é apenas ensiná-los a adaptarem a indumentária às diferentes ocasiões. Com esforço, lá o conseguimos convencer a vestir uma camisa e o casaco novo para a audição. Pensei que íamos fazer um trajecto de porta a porta, que ele só ia passar um bocado de frio na igreja. Enganei-me. No final das audições, fomos convidados a esperar lá fora pelo resultado das deliberações. O Diogo, que tinha a custo sobrevivido aos nervos, ia morrendo de frio. Está visto que vou ter de lhe comprar também um sobretudo de gente grande para as ocasiões… ]
Desta vez, não me esqueci da máquina fotográfica. Apesar de o Diogo me ter implorado por todos os santinhos que não o filmasse. Felizmente, os santos presentes naquela igreja estavam de certeza completamente congelados de frio e consegui filmá-lo, mal o apanhei sentado de costas para a audiência. Estava tão bonito! Bom…não consegui filmar grande coisa, é preciso que se diga. Lembrei-me da máquina, é certo. Até me lembrei de carregar a bateria, acto inédito. Mas esqueci-me completamente de esvaziar o cartão de memória, pelo que só deu para uns minutos de filme. Mas ficaram mesmo bem filmados, caramba! Os bancos da igreja têm uns apoios altos para o pessoal descansar os bracinhos enquanto reza, que dá um jeitaço para apoiar a máquina e evitar os tremeliques habituais. Portanto, bem vistas as coisas, a reportagem materna até correu relativamente bem. O único problema foi ter-me esquecido da bolsa da máquina fotográfica num banco da igreja, com o carregador lá dentro. Detalhe menor, que espero corrigir amanhã, mal a primeira rata de sacristia der o ar da sua graça. A culpa deste esquecimento foi da coisa pequena, que não pára quieta e me obrigou a procurar rapidamente um pouso seguro, num banco afastado.
[ O Diogo fez uma birra enorme, porque não queria que o irmão fosse à audição. Aparentemente era um convite-só-para-pais-não-extensível-a-irmãos-bicho-carpinteiro-com-cabelos-em-desalinho-e-fato-de-treino-todo-porco. Resumindo, não queria que fôssemos em comitiva, tipo família de ciganos. O meu rapaz gosta de se manter low-profile. Tentei argumentar que três pessoas dificilmente poderiam ser consideradas uma multidão, mas não consegui demovê-lo. “Só-para-pais”, grunhiu. Lá lhe expliquei que já estávamos a quebrar essa regra, dado que ele também tinha convidado o meu amor. Respondeu, muito senhor de si, que o meu amor era “uma-figura-paterna”. E eu encerrei a conversa, dizendo que ou íamos todos ou não ia ninguém, porque recusava-me a deixar o irmão em casa sozinho, como se fosse um cão sarnento. O Vasco é uma peste, mas nós gostamos dele assim. ]
O resultado finalmente lá apareceu, antes que enregelássemos todos. Pouco depois, começou a nevar (e ainda não parou…). O Diogo teve “Muito Bom”, mas ficou desiludido. Achou que podia ter feito melhor. Eu fiquei absolutamente deliciada com o que ele fez. O meu amor também. O Vasco ficaria de qualquer modo, mesmo que o irmão tivesse trocado as notas todas. É o seu ídolo máximo. Elogiei-lhe os progressos, no que ao controlo dos nervos diz respeito. E o casaco janota, claro. Aliás, não fui a única. O professor também o elogiou. E a loirinha mais velha que por lá anda, que ele vai mais cedo só para ouvir, também lhe deitou um olhar de admiração, que eu bem vi…

2 comentários:

  1. Parabéns por este "salto no tempo": é o que parecem os seus posts agora, um dia eles são uns petizes, no outro estão de fatinho com uma loirinha a espreitar... Aproveite muito "a coisa pequena", não tarda nada também largou o fato de treino e vai usar o primeiro de crescido do mano!

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    1. talvez seja por estar a sentir que a coisa pequena está a crescer demasiado depressa que ando mais saudosista... ;)

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