sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Uns segundos

(onde se descobre uma máquina fotográfica 

que captou os instantes que precederam uma longa história)



Uns segundos depois desta fotografia ter sido tirada, D. Fuas Roupinho desencantou um osso enterrado. E rosnou baixinho, como quem diz: “O velho, aqui, sou eu. Enterrei este osso algures no Inverno de 2014, não te aproximes.” Mas o Yogi, que estava a passar umas férias em casa dos tios, decidiu responder do alto da sua juventude que ainda não aceita limites. Saltou-lhe ao pescoço, sem qualquer aviso prévio. Pela segunda vez na vida, vi o meu cão ser sacudido no ar como se fosse uma bola vazia. O Yogi estava tresloucado e abanava, abanava, abanava... D. Fuas soltava ganidos cada vez mais fracos. Mas era impossível soltá-lo.

Uns segundos antes desta fotografia ter sido tirada, eu tinha acabado de estender a roupa, no quintal. E foi isso que me safou. Fui a correr buscar a capa do édredon que estava na corda e atirei-a para cima do Yogi. Na versão oficial, dei-lhe um empurrão e consegui arrancar-lhe o Fuas da boca. Na versão oficiosa, dei-lhe um pontapé no lombo. (Lembrei-me do que tinha feito o meu vizinho em Malempré, quando o Fuas foi atacado pelo American Staff.) Em ambas as versões, o Yogi mordeu-me. Felizmente mordeu-me quando ainda estava perdido debaixo da capa do édredon. Felizmente a boca dele é grande e o meu pulso pequeno.

Muitos segundos antes desta fotografia ter sido tirada, o coelho tinha estado a apanhar sol no jardim. O parque ficou montado. E foi isso que me valeu. Quando finalmente consegui arrancar o Fuas, atirei-o para dentro do parque, para o pôr a salvo. Agarrei no Yogi ainda embrulhado e atarantado e levei-o para casa. Fui buscar uma ligadura para pôr no pulso. Não havia. A única que temos estava na mão do meu amor, que tinha sido mordido no dia anterior. Peguei em dois panos da loiça, um para mim, outro para o Fuas.

Muitos segundos depois desta fotografia ter sido tirada, D. Fuas Roupinho jazia no meio da relva. Um furo mesmo por cima do olho. Outro furo ao lado da jugular. Foi por pouco. Pouquíssimo. Amarrei-lhe o pano à volta da cabeça para estacar o sangue e embalei-o. Oito quilos de bicho que sobrevive a tudo. Oito quilos de D. Fuas que já passou por tanto. O caçador que o tratava mal. Um dono que não gostava dele e lhe bateu. E eu… eu que o entreguei a outros donos, quando vim para a Bélgica. D. Fuas teve de morder muita gente até voltar para mim. Nunca mais mordeu (excepto quando me zango com os rapazes). Deixou de fazer chichi quando alguém ralha com ele. Hoje, é um cão feliz. Disse-lhe isso ao ouvido muitas vezes, enquanto esperava que o meu amor chegasse. O veterinário estava fechado, tínhamos de esperar. Mas os anos que o meu amor passou em Veterinária foram suficientes para tratar o Fuas. Isso e o afecto enorme que ganhou a este cão. O nosso cão.

Semanas depois desta fotografia ter sido tirada, encontrei a máquina fotográfica perdida no quintal. Devo tê-la atirado para cima da relva, quando fui buscar a capa do édredon. O Yogi já voltou para a Holanda, depois de ter passado onze longos dias connosco. Não tivemos coragem de o pôr num hotel para cães. A verdade é que, uma vez completamente separado do Fuas, tornou-se um monte de pêlos pateta. Aliás, os pêlos eram tantos que o meu amor ficou com uma alergia como eu nunca tinha visto. Mas não teve coragem de ir para um hotel e deixar-me sozinha com dois cães, permanentemente separados por uma porta. Mais as cobras e os pássaros da vizinha, que estavam à nossa guarda. D. Fuas recuperou milagrosamente, como sempre. Um pouco ofendido connosco por ter deixado temporariamente de ser rei e senhor da casa. Do nosso colo. Do quintal, com os seus ossos escondidos. E da tigela da água. Eu também fiquei bem. A enorme nódoa negra (que, na realidade, até era verde) demorou muito tempo a desaparecer. Obrigou-me a contar esta história ao vendedor da Renault, que me olhava de forma suspeita. E ligeiramente apiedada. Como se eu fosse vítima de violência doméstica e precisasse de um carro para fugir com os filhos. E os cães. Talvez seja por isso que me deixou levar um carro, sem antes entregar o outro. Sem os papéis em ordem. Com uma matrícula falsa. Aqueles primeiros dias de Agosto com o Yogi foram infernais. (Creio que só faria isto pelo meu irmão. E definitivamente pela minha irmã mais velha.) Mas estou desconfiada que aceleraram imenso a compra do carro.


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