segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Omnipotência familiar

(porque o Natal oferece a desculpa ideal 

para nos tentarem impingir um ideal único e estereotipado de família)


fa·mí·li·a
(latim familia, -ae, os escravos e servidores que vivem sob o mesmo tecto, as pessoas de uma casa)

substantivo feminino
1. Conjunto de todos os parentes de uma pessoa, e, principalmente, dos que moram com ela.
2. Conjunto formado pelos pais e pelos filhos.
3. Conjunto formado por duas pessoas ligadas pelo casamento e pelos seus eventuais descendentes.
4. Conjunto de pessoas que têm um ancestral comum.
5. Conjunto de pessoas que vivem na mesma casa.
6. [Figurado] Raça, estirpe.
7. [Gramática] Conjunto de vocábulos que têm a mesma raiz ou o mesmo radical.
8. [História natural] Grupo de animais, de vegetais, de minerais que têm caracteres comuns.
9. [Química] Grupo de elementos químicos com propriedades semelhantes

"família", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Por mais que o mundo evolua, é difícil mudar o paradigma da família. Infelizmente, há quem continue a defender a todo o custo a definição que vem descrita no dicionário. De tão redutora, acaba por cair no extremismo, aproximando-se do seu sentido etimológico primário que incluía “escravos e servidores”. Ao serviço de uma causa. Como apanágio da perfeição. Como vitrina do sucesso pessoal, que se expõe numa qualquer rede social. Obviamente, é a altura propícia ao elogio desta noção de família engagée. Ao abrigo de um suposto espírito natalício, aproveita-se para publicitar sub-repticiamente a família estereotipada, porque encerrada em ancestralidade bacoca e convenções.

Mas os laços familiares não vêm no ADN. Também não vêm com um contrato de casamento. Porque há irmãos que nunca serão família. Porque há sogros que nunca serão família. E porque há amigos que são a nossa família. Por vezes, a única que temos. Que são pedras basilares que moldaram o nosso passado, a nossa história, a nossa personalidade. Que sustentam a nossa existência. Amigos sem os quais não concebemos o futuro. A minha amiga Ana é família. Mas não precisa de prendas. Nunca precisou.

Por outro lado, a família não precisa de um número mínimo para existir. Pode ter muitas formas. Duas pessoas podem ser família. Mesmo que sejam duas pessoas do mesmo sexo. Mesmo que sejam duas pessoas de idades muito diferentes. Mesmo que sejam duas pessoas que não estão casadas. Ou que nem sequer vivam debaixo do mesmo tecto. Mesmo que sejam duas pessoas que nunca terão filhos em comum. Aliás, nem precisam de ser duas pessoas… basta ser uma só pessoa e o seu animal de estimação. Há animais que são mais família que muita gente. D. Fuas Roupinho é família. É um elemento da tribo. Apesar disso, também nunca precisou de prendas. Um bocadinho de atenção e algumas festas são suficientes.

Família é quem nós escolhemos levar no coração. Pela vida fora. Apesar das mudanças. Apesar dos pesares. Família é a avódrasta vir passar um fim-de-semana prolongado connosco para levar o Vasco à exposição do Harry Potter em Bruxelas. Família é mimar um menino e fazê-lo sentir-se único por um dia. Mesmo que isso exija fazer quase cinco mil quilómetros. E perder horas num avião. E num comboio. E outras tantas de carro. Família é trazer as nossas pastilhas elásticas preferidas. Sem açúcar. E acertar na papa do Diogo. E no vinho do Pascal. E nas minhas farinheiras. E no chocolate do Vasco. Família é trazer pastéis de nata e travesseiros do dia. Mais o café, que adoramos. Família é dizer de imediato que não queremos prendas de Natal, quando percebemos que a avódrasta se perdeu na loja da exposição. Porque família é pôr os interesses de alguém acima dos nossos, encolhendo os ombros às normas vigentes. Quem mima um dos nossos, mima-nos a nós também.

Família não é obrigar um adolescente que está em plena época de exames a fazer prendas para treze pessoas. Família não é atropelar o afecto, nem apelar ao sentido de obrigação filial. Família não é manipular, trasvestindo a exigência egocêntrica dos adultos em desafio infantilóide. Família não é justificar a ausência de espírito natalício juvenil com o núcleo familiar reduzido. Porque a tribo pode ser pequena, pode não ser convencional, pode ser um pouco louca e até nem estar imbuída de um grande espírito natalício este ano, mas vai obviamente ajudar a resolver este problema. Nem que para isso tenha de comprar e fazer prendas de enfiada. Porque isto é ser família.

Sem comentários:

Enviar um comentário