(porque o Natal oferece a desculpa ideal
para nos tentarem impingir um ideal único e estereotipado de família)
fa·mí·li·a
(latim familia,
-ae, os escravos e servidores que vivem sob o mesmo tecto, as pessoas de uma casa)
substantivo feminino
1. Conjunto de
todos os parentes de uma pessoa, e, principalmente, dos que moram com ela.
2. Conjunto formado
pelos pais e pelos filhos.
3. Conjunto formado
por duas pessoas ligadas pelo casamento e pelos seus eventuais descendentes.
4. Conjunto de
pessoas que têm um ancestral comum.
5. Conjunto de
pessoas que vivem na mesma casa.
6. [Figurado]
Raça, estirpe.
7. [Gramática]
Conjunto de vocábulos que têm a mesma raiz ou o mesmo radical.
8. [História
natural] Grupo de animais, de vegetais, de minerais que têm caracteres comuns.
9. [Química]
Grupo de elementos químicos com propriedades semelhantes
"família", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Por mais que o mundo
evolua, é difícil mudar o paradigma da família. Infelizmente, há quem continue
a defender a todo o custo a definição que vem descrita no dicionário. De tão
redutora, acaba por cair no extremismo, aproximando-se do seu sentido etimológico
primário que incluía “escravos e servidores”. Ao serviço de uma causa. Como
apanágio da perfeição. Como vitrina do sucesso pessoal, que se expõe numa
qualquer rede social. Obviamente, é a altura propícia ao elogio desta noção de
família engagée. Ao abrigo de um
suposto espírito natalício, aproveita-se para publicitar sub-repticiamente a
família estereotipada, porque encerrada em ancestralidade bacoca e convenções.
Mas os laços familiares
não vêm no ADN. Também não vêm com um contrato de casamento. Porque há irmãos
que nunca serão família. Porque há sogros que nunca serão família. E porque há
amigos que são a nossa família. Por vezes, a única que temos. Que são pedras
basilares que moldaram o nosso passado, a nossa história, a nossa
personalidade. Que sustentam a nossa existência. Amigos sem os quais não
concebemos o futuro. A minha amiga Ana é família. Mas não precisa de prendas. Nunca
precisou.
Por outro lado, a
família não precisa de um número mínimo para existir. Pode ter muitas formas. Duas
pessoas podem ser família. Mesmo que sejam duas pessoas do mesmo sexo. Mesmo
que sejam duas pessoas de idades muito diferentes. Mesmo que sejam duas pessoas
que não estão casadas. Ou que nem sequer vivam debaixo do mesmo tecto. Mesmo
que sejam duas pessoas que nunca terão filhos em comum. Aliás, nem precisam de
ser duas pessoas… basta ser uma só pessoa e o seu animal de estimação. Há
animais que são mais família que muita gente. D. Fuas Roupinho é família. É um elemento
da tribo. Apesar disso, também nunca precisou de prendas. Um bocadinho de
atenção e algumas festas são suficientes.
Família é quem nós
escolhemos levar no coração. Pela vida fora. Apesar das mudanças. Apesar dos
pesares. Família é a avódrasta vir passar um fim-de-semana prolongado connosco
para levar o Vasco à exposição do Harry Potter em Bruxelas. Família é mimar um
menino e fazê-lo sentir-se único por um dia. Mesmo que isso exija fazer quase
cinco mil quilómetros. E perder horas num avião. E num comboio. E outras tantas
de carro. Família é trazer as nossas pastilhas elásticas preferidas. Sem
açúcar. E acertar na papa do Diogo. E no vinho do Pascal. E nas minhas
farinheiras. E no chocolate do Vasco. Família é trazer pastéis de nata e
travesseiros do dia. Mais o café, que adoramos. Família é dizer de imediato que
não queremos prendas de Natal, quando percebemos que a avódrasta se perdeu na
loja da exposição. Porque família é pôr os interesses de alguém acima dos
nossos, encolhendo os ombros às normas vigentes. Quem mima um dos nossos, mima-nos
a nós também.
Família
não é obrigar um adolescente que está em plena época de exames a fazer prendas
para treze pessoas. Família não é atropelar o afecto, nem apelar ao sentido de obrigação
filial. Família não é manipular, trasvestindo a exigência egocêntrica dos
adultos em desafio infantilóide. Família não é justificar a ausência de espírito
natalício juvenil com o núcleo familiar reduzido. Porque a tribo pode ser pequena, pode não ser convencional, pode ser um pouco
louca e até nem estar imbuída de um grande espírito natalício este ano, mas vai
obviamente ajudar a resolver este problema. Nem que para isso tenha de comprar
e fazer prendas de enfiada. Porque isto é ser família.
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