terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Há vida em marte

(onde se chega à conclusão que por vezes a idade faz milagres)


Filho crescido começou a tocar trompete com gosto. Finalmente. Esperei nove longos anos por este dia. É de referir que o Diogo foi forçado a escolher um instrumento de sopro, numa tentativa desesperada de resolver os problemas auditivos de que sofria em criança. [ se houver por aqui pais à procura de soluções não-cirúrgicas/não-invasivas – sendo a proposta mais comum a colocação de “tubinhos” – eis um excelente método alternativo que superou todas as expectativas, tendo em conta que o Diogo chegou a perder 70% de audição. ]
Aos sete anos, não lhe passava pela cabeça tocar nenhum instrumento… muito menos, trompete. Admito que, não fora a sugestão do otorrino, provavelmente nunca o teria incentivado a tocar um instrumento. Não era exactamente uma tradição familiar. Não só não tenho qualquer instrução musical, como sou completamente destituída de musicalidade. Mesmo. C.o.m.p.l.e.t.a.m.e.n.t.e.
Eis-nos, portanto, na academia musical lá do burgo, onde os miúdos aprendiam solfejo a martelo com adolescentes pouco dotados pedagogicamente e o instrumento com um militar. Não estou a brincar, o professor de trompete do Diogo era mesmo um militar no activo. Até eu tinha medo dos berros do homem (e tinha uma porta a separar-nos). Obviamente, os primeiros anos de aprendizagem foram um suplício. Para o Diogo e para mim. Suponho que também deve ter sido traumático para o cão, que tem uns ouvidos mais sensíveis do que os nossos.
Quando viemos viver para a Bélgica, estava fora de questão abandonar o trompete. Era o meu único meio de controlo da audição do Diogo. E, verdade seja dita, descobri-lhe outra otite serosa enquanto assistia a mais uma miserável aula. Foi, aliás, a última otite que o Diogo teve até hoje. Já lá vão quatro anos. Por isso, há algum tempo, disse-lhe que podia abandonar finalmente o malfadado instrumento de tortura (dele, minha, do professor… e do cão). Na última consulta de otorrino, ficou claro que as consequências dos problemas auditivos estariam sempre presentes (para seu grande desgosto, o Diogo nunca poderá fazer mergulho com o meu amor), mas estava curado. Há inúmeros problemas de ouvidos que se resolvem com o crescimento, pois o próprio canal e o tímpano também crescem.
Na altura da "libertação", já faltavam poucos anos para o Diogo obter o seu diploma de fim de curso, pelo que decidiu continuar. Apesar dos pesares. Sendo que… hum… o maior pesar neste caso nem sequer é a pouca aptidão para tocar trompete. Ou a falta de amor pelo bicho em si. A dificuldade intransponível do Diogo é o terror do público. Filho grande pura e simplesmente não consegue tocar à frente de ninguém. Nem sequer de mim, que sou mãe. E musicalmente surda.
Depois, da desgraça que foi o último exame de trompete – que era suposto ser, na realidade, o penúltimo exame da sua longa carreira de trompetista forçado – obriguei-o a entrar para a banda dirigida pelo professor. Tive mesmo de o obrigar, foi triste. Mas, depois, as coisas até correram bem. O Diogo acabou por decidir não se apresentar aos exames finais e chumbar de ano. Custou-me a aceitar, mas compreendi a decisão. E, aqui entre nós que ninguém nos ouve, achei-a bastante madura. Mas combinámos que iria fazer um esforço no ano seguinte para obter o diploma. Já que tinha chegado até ali, era uma idiotice desistir.
Este ano – o segundo último ano – as coisas não começaram bem. O professor do Diogo é algo especial, mas já nos habituámos. O senhor conhece bem o entusiasmo transbordante do seu aluno, mas acho que ficou ofendido por ver o amor crescente pelo órgão de igreja. Os ecos desta paixão devem ter-lhe chegado aos ouvidos, por portas e travessas. Não há muitos adolescentes na academia a escolher este instrumento. Tal como não há muitos que conquistem o professor de órgão (este, sim, verdadeiramente sui generis) e que obtenham excelentes notas. Um leigo ainda pode argumentar que o miúdo tem “talento”, mas um velho professor de música sabe perfeitamente que a excelência só se alcança com muito trabalho… trabalho esse que o Diogo sempre se recusou a fazer nas aulas dele. Com o instrumento dele.
Nos últimos meses, filho crescido arrastou-se até às aulas de trompete com um andar ainda mais pesaroso. O professor vingou-se airosamente dando-lhe partituras horrorosas, semana após semana. Que o Diogo se limitava a tocar mal e rapidamente uns minutos antes da aula. Decidi fingir que não via a desmotivação crescente do meu trompetista en herbe. Na vida, apanhamos com gente muito diferente pela frente. E temos que aprender a engolir sapos e a lidar com feitios lixados. Portanto, mandei-o calar e comer (que é como quem diz, calar e tocar). Disse-lhe que aprender a dar a volta ao texto faz parte do crescimento. Ele que se desenrascasse. Ou, então, que acabasse de vez com a história do trompete. Para minha surpresa, o adolescente decidiu continuar. [ ainda não tenho uma teoria muito definida, mas estou desconfiada que uma das vantagens do ensino precoce da música é dar endurance. Dir-me-ão que a prática desportiva na infância tem o mesmo efeito… ao que eu responderei que a única coisa que o hóquei fez pelo meu filho foi dar-lhe uma insegurança que perdura até hoje. Mas tanto no Diogo, como no Vasco, parece-me que a música os ensinou a persistir, a teimar, a repetir uma e outra vez sem desmoralizar. ]
A primeira decisão que o filho grande tomou para tentar dar a volta à situação foi retomar os ensaios com a banda do professor de trompete. E ensaiar mais as músicas que por lá se tocam. O sadismo do professor não vai ao ponto de obrigar a "Ardennaise" em peso a tocar músicas merdosas. E, aos poucos, a coisa deu-se… O Diogo tem andado a tocar quase todos os dias. Há uns tempos, a vizinha mandou uma mensagem a perguntar se era um CD que estávamos a ouvir ou o Diogo. Dá gosto ouvi-lo, claro. Mas, principalmente, dá gosto ver o prazer com que toca. Não faço ideia se, no final do ano, conseguirá tocar publicamente e obter o tão almejado diploma. Mas a verdade é que também já não me interessa muito. Neste momento, nada me parece mais importante que vê-lo a tocar tão bem o instrumento que lhe mudou a vida. Hoje, a música é uma parte fundamental da existência do Diogo. Fala, respira e bebe música diariamente. Passa horas infinitas a tocar órgão. A ouvir música de todos os géneros, especialmente clássica. Vai frequentemente à Opèra de Liège. Conseguiu convencer a namorada a voltar às aulas de violino, que tinham ficado pelo caminho há uns anos. Se o Vasco conseguir acabar este ano o curso de solfejo deve-o sem dúvida à ajuda (algo selvagem, é certo) do irmão. E eu, que não tenho uma única célula musical, fico feliz por ver que o primeiro amor-ódio começou a receber a atenção que merecia.


( como não podia deixar de ser, filho crescido está escondido atrás do microfone 
e do suporte das partituras… e recusou-se a usar aquelas calças muito pouco discretas! )

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