domingo, 25 de fevereiro de 2018

Um desabafo profético


(onde a crise dos refugiados

nos entra pela casa adentro sem pedir licença)



Desde que começou a crise dos refugiados que abriram diversos centros de acolhimento na nossa região. Com mais ou menos problemas, a integração foi-se fazendo. Aos poucos, habituámo-nos à sua presença constante. À sua presença discreta. A ponto de se confundirem com a paisagem, tornando-se quase invisíveis. O meu amor espanta-se sempre com as histórias que tenho para contar sobre as pessoas com as quais me vou cruzando. Porque para ele – e, sejamos sinceros, para a maioria dos belgas – a situação dos refugiados tornou-se quase banal. Normalizar o inimaginável talvez seja apenas uma questão de sobrevivência, não sei. Mas sempre achei preferível o desconforto à ignorância. Talvez porque também sou estrangeira. E me “refugiei” neste país. Talvez porque também sou mãe, o que mudou a minha forma de olhar para todas as crianças. Talvez porque adoro uma boa conversa. Uma boa história. Por isso, não perco uma ocasião. Um olhar compreensivo. Um gesto de simpatia. Uma ajuda a explicar algo. Quase sempre recebo um pequeno relato em troca. Saio sempre mais rica.

Sei que o Vasco tem uma menina síria na turma, a Zainab, que esteve dois anos sem ver o pai. Sei que na escola do Diogo há vários menores não acompanhados (nome frio que designa a triste realidade dos meninos que, sabe deus como, chegaram sozinhos a este país). Sei que, na minha rua, mora um químico que trabalhava para o Ministério do Ambiente num longínquo país africano e que, durante uma reunião em Bruxelas, soube que tinha a cabeça a prémio. Sei que, na cozinha do restaurante chinês onde costumamos ir, trabalha um jovem da Eritreia cujo maior sonho era tirar a carta. Sei que o senhor afegão que passeava de motoreta sem capacete com o filho pequeno já conseguiu arranjar casa (e capacetes). Sei que a carrinha do centro de refugiados vem buscá-los ao fim da tarde, na praça em frente à nossa casa. E que o motorista tem de contá-los cuidadosamente, porque se não o fizer leva sempre mais do que os que trouxe.

Até que a realidade com que nos cruzamos nos irrompe casa adentro. Peito adentro. As breves narrativas transformam-se numa longa história de vida com contornos dantescos, que aos poucos vamos descobrindo. Já não sentimos um ligeiro desconforto, mas uma profunda tristeza pela dor alheia.

Os belgas têm uma qualidade que eu adoro: são gente desenrascada. As coisas raramente são feitas by the book. O que interessa é o fim, os meios são de somenos importância. Bate-se às portas que for preciso bater até se obter resultados concretos. Porque de teorias está o mundo cheio. Foi assim que, um dia, acordei com o telemóvel. Atendi atarantada, ainda meio a dormir. Do outro queriam saber se era mesmo eu. Quem mais haveria de ser? Não-sei-quem tinha dito que eu falava espanhol. Queriam saber se falava mesmo espanhol. Confirmei. Outro-não-sei-quem tinha dito que talvez eu estivesse disponível para ajudar. Porque tinha chegado um casal de refugiados venezuelanos que estava completamente perdido. Que a assistente social encarregue do dossier queria fazer o ponto da situação, mas tinha esbarrado numa total incapacidade comunicativa. Eles não falavam uma palavra de inglês. Francês, muito menos. E o espanhol dela nem para as férias em Maiorca servia. Será que eu poderia ajudá-los… Tipo, dali a umas horas? No centro de acolhimento de transição da nossa commune. Claro que sim. Como não? Nessa tarde, conheci o Jaime e o Jhony. Um advogado e um artista plástico a quem a vida trocou as voltas demasiadas vezes. Com demasiada crueldade. E recusei-me a ser mera espectadora da situação. Nunca senti que estivesse a fazer grande coisa. Limitei-me a fazer aquilo que outros fizeram por mim, quando aqui cheguei sozinha com duas crianças.

Por circunstâncias várias, o Jaime e o Jhony entraram na nossa vida quando outras pessoas à minha volta também estavam a precisar de ajuda. O vizinho do lado, cuja mulher teve finalmente autorização para deixar o Congo (talvez valha a pena referir que foi o presidente da Câmara que conseguiu este feito, quando todas as vias legais se esgotaram). A minha amiga Christine, que andava a lutar com um grave problema de saúde. E, finalmente, a vizinha do outro lado, histérica com o seu novo cão. Quando dei por mim, andava esbaforida a gerir mil outras vidas. A marcar consultas de diversas especialidades. E a esperar séculos nas salas de espera. A tomar conta do cachorro, quando a vizinha ia trabalhar à noite. A ver preços dos voos de Kinshasa para os diferentes aeroportos aqui perto. A comprar o que faltava ao meu vizinho para melhor acolher a esposa. A correr todas as lojas da Cruz Vermelha de roupa em segunda mão. A servir de intérprete no percurso do combatente da burocracia belga… Às tantas, já não tinha tempo para mim, nem para os meus. Muito menos para as traduções que nestes últimos meses têm vindo em catadupa. O meu amor desabafou: “Ou arranjas depressa emprego a tempo inteiro ou esta casa vai acabar por se transformar no Exército da Salvação!”. Sem que nenhum de nós soubesse, estas palavras vieram a revelar-se proféticas. Afinal, ajudar os outros acabou por me salvar a mim. Mas isso fica para outra conversa, que este post já vai longo.

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