segunda-feira, 19 de março de 2018

À distância de um telefonema


(onde realizamos inesperadamente um sonho)


Andei uns tempos perdida, depois de ter desistido do meu projecto de empreendedorismo. Por um lado, sentia-me aliviada por ter conseguido perceber a tempo que aquilo não era exactamente a minha praia. Por outro lado, instalou-se um vazio que parecia interminável. Uma escuridão profunda. O que diabo iria eu fazer da vida, em termos profissionais? Sem os meus diplomas oficialmente aprovados, só podia aspirar a empregos sub-qualificados. Não me entendam mal… não tenho qualquer problema em arregaçar as mangas e fazer o que for preciso. Trabalhar nunca poderá ser sinónimo de vergonha, seja lá qual for o trabalho. O problema é que eu não sei fazer nada. Essa é que é essa. Toda a minha existência se construiu à volta da literatura e das línguas. Trabalhei numa biblioteca. E numa livraria. Muito brevemente, numa editora. Dei aulas de Português. Fui revisora. E tradutora. Geri uma livraria. Escrevi artigos. Especializei-me em tradução e legendagem. Fui professora de Inglês e Espanhol, enquanto o processo de reconhecimento dos meus diplomas na Bélgica estava em curso. Geri um centro de documentação e comunicação, onde ninguém se importava com as burocracias… E agora, o que raio poderia eu fazer?

Há já vários anos que andava calmamente à procura de um emprego a tempo inteiro, porque financeiramente era complicado viver apenas com um part-time. Quando a “minha” biblioteca encerrou devido ao corte de subsídios, eu já sabia que seria praticamente impossível voltar a ter a mesma sorte. Na Bélgica, é preciso diplomas para tudo. Qualquer tipo de trabalho é feito mediante habilitações próprias. Os poucos empregos que não exigem diplomas, requerem impreterivelmente experiência. Ora a única experiência profissional que eu tenho gira em torno dos livros, das línguas, do ensino… ou seja, de conhecimentos que têm mesmo de ser certificados. Eis-me, então, presa num círculo vicioso do qual era muito difícil sair. Foi precisamente para tentar dar a volta a este problema que enveredei pela ideia do abrir um negócio meu, na sequência do insistente pedido do gestor de carreira idealista.

E foi mesmo no escritório do Yannick que a situação se desbloqueou, como que por magia. Em Janeiro recebi uma das suas habituais convocatórias, para fazer um ponto de situação. Estávamos em amena cavaqueira, quando entrou um homem na sala com um passo decidido. Sem pedir licença, puxou de uma cadeira e instalou-se. Enquanto ligava o computador, apresentou-se rapidamente: “Sou o chefe do Yannick. Já sei que desistiu do seu projecto de empreendedorismo, por isso tenho aqui uns empregos para lhe propor…”. Em apenas cinco minutos, fiquei a saber que os Serviços Sociais tinham criado um estatuto especial que permite aos desempregados trabalharem até terem direito ao subsídio de desemprego por completo, deixando de depender de ajudas sociais. A entidade patronal são os próprios Serviços Sociais que põem o trabalhador à disposição de um empregador a custo zero. O tempo de trabalho varia consoante a idade, mas o salário é igual para todos. Tendo em conta que a maioria dos cidadãos que recebe ajudas do Estado é um caso perdido, sobram poucas pessoas aptas para o trabalho… como eu. “Você é normal”, lançou-me o Chefe de chofre. Pela primeira vez na minha vida, a normalidade deixou-me desconfiada. O facto de o pobre Yannick se contorcer pouco à-vontade na cadeira também acabou por levantar suspeitas. Como sou lesta de raciocínio (além de aparentemente normal), respondi: “Acho que estou a perceber... Vocês devem ter uma quota qualquer de inserção no mundo do emprego e, como a maior parte das pessoas que recebe ajudas sociais é pouco dada ao trabalho, eu vou ter mesmo que aceitar um emprego qualquer que me proponha, certo?” A cara do Chefe abriu-se com um sorriso: “Você faz parte dos 10% que sobram se excluirmos os toxicodependentes, os alcoólicos, os que não têm quaisquer estudos, os que sofrem de problemas psicológicos… e os completamente destituídos”. Fiquei a saber que os "destituídos" são pessoas incapazes de trabalhar por não terem qualquer tipo de hábitos de trabalho… tipo, as pessoas que já nasceram dependentes do sistema e que continuam a transmitir essa dependência crónica à progenitura. “A Rita não se insere em nenhum destes casos, pois não?” Ehhh… Acenei lentamente que não e preparei-me para a sentença. “Ora, bem me parecia! Então, vamos cá ver qual o emprego que mais lhe convém…”.

Vinte minutos volvidos, tínhamos esgotado todas as fantásticas ofertas do Chefe. O Yannick parecia cada vez mais infeliz. Eu estava a ficar ligeiramente em pânico. A “proposta” era clara: se eu não aceitasse nenhum trabalho, arriscava-me a ficar sem o complemento do subsídio de desemprego que os Serviços Sociais me pagam todos os meses. Decidi ser sincera. A ideia de voltar a trabalhar agradava-me imenso. Desde que desisti do meu projecto, caí numa espécie de buraco sem fim à vista. Além disso, o que estava a receber não era nenhuma fortuna. O problema é que eu não queria passar os próximos 18 meses da minha vida a fazer aqueles trabalhos horrorosos que o Chefe me propunha. Tenho oito anos de estudos universitários. De certeza que havia outros empregos onde poderia ser mais útil do que a limpar o lar de idosos da commune ou a trabalhar na lavandaria comunitária. O Chefe fechou o computador, tirou os óculos e perguntou com interesse: “Útil? É importante para si sentir-se útil?” O Yannick veio prontamente em meu auxílio: “Eu disse-te que a Mme Barroso era diferente…”. Tive de concordar. “Apesar de ser normal, como o senhor disse, sou ligeiramente diferente. Não andei a estudar tantos anos para fazer um trabalho que qualquer pessoa pode fazer melhor do que eu. Detesto fazer limpezas e passar a ferro. Aliás, em minha casa, não engomamos a roupa. Agora que penso, nem sequer sei onde pára o ferro de engomar… Mas, olhe, há outras coisas que eu posso fazer. Que eu sei fazer. Coisas úteis… Se o senhor me está a oferecer um emprego de bandeja, acho que é o momento ideal para encontrarmos algo que eu não conseguiria fazer de outra maneira.”

O Chefe parecia ter desistido definitivamente das suas fenomenais ofertas de emprego. O computador continuava fechado. “A sua perspectiva é interessante... Pode dar-me um exemplo de um sítio onde gostasse de trabalhar e se sentisse útil?” Respondi de rajada, sem precisar de pensar: “Há cinco anos que respondo a anúncios para trabalhar nos diferentes centros de acolhimento de refugiados. Já respondi a todo o tipo de ofertas de emprego, nunca fui sequer chamada para uma entrevista. A verdade é que não tenho qualquer experiência… Mas eu própria sou emigrante. Falo quatro línguas. E acho que podia ser útil. Olhe, por exemplo, há várias semanas que ando a acompanhar dois refugiados venezuelanos gratuitamente… podiam perfeitamente remunerar-me por este trabalho.” O Chefe largou a rir e pegou no telemóvel. “Já me podia ter dito. Colaboramos regularmente com o centro de refugiados estatal da nossa região. Temos lá seis pessoas a trabalhar neste regime. Vou ligar agora à directora a ver o que ela me diz…” A resposta chegou três semanas mais tarde. Chamaram-me para uma entrevista. O serviço de Animação e o serviço de Integração Local do Fedasil estavam interessados em “contratar-me”. Decidiram criar um posto especial feito à minha medida, uma espécie de elo de ligação entre os dois serviços. E eu – que para trabalhar no Fedasil, estava disposta a fazer qualquer tipo de trabalho – fiquei incrédula por terem encontrado uma função que é a minha cara. Sem nunca me terem visto, parecia que já me conheciam e que estavam decididos a tirar partido do meu "potencial". O que quer que isso fosse…

Comecei a trabalhar no dia 1 de Março. E todos os dias percorro os 10 minutos que me separam do trabalho com um sorriso de incredulidade. Ainda sinto vontade de me beliscar. Sabem o que é um sonho tornado realidade? É o meu trabalho no Fedasil. Tenho sempre pressa de chegar e saio sempre depois da hora. Se pudesse, passava lá a vida. Falo diariamente as minhas quatro línguas e esforço-me por aprender algumas palavras numas mil outras. Já ensinei jovens mães a fazer massagens aos seus bebés. E aprendi a fazer crochet com uma senhora idosa, que conseguiu reproduzir fielmente as pegas que a minha avó Clarisse fazia com as guitas de embrulhar as caixas dos bolos. Consegui fechar um projecto de colaboração com a academia de música onde andam os meus filhos, que me encheu de orgulho. Provei comida de terras longínquas, generosamente oferecida por quem nada tem. Aprendi danças folclóricas com os nossos residentes. E organizei uma palestra para pais solteiros. Fiz cartazes que são verdadeiras obras-primas, em diversas línguas. Ajudei as crianças a fazerem os trabalhos de casa, numa luta titânica contra a conjugação francesa. Participei numa festa de homenagem aos nossos voluntários. Animei um atelier sobre a situação dos refugiados para um 10º ano e consegui não chorar com as histórias que foram narradas. Enchi-me de medo a conduzir uma carrinha por montes e vales. Só passaram duas semanas e já fiz tantas coisas diferentes. Coisas que, afinal, eu sei fazer. Que eu consigo fazer. Que eu gosto de fazer. Coisas que fazem a diferença na vida de muitas pessoas. Mas, principalmente, na minha. Às vezes, sinto-me cansada só de pensar nos constantes malabarismos que tenho feito nos últimos cinco anos para nos conseguir sustentar. Não há meio de desencantar uma rotina qualquer, que me permita finalmente baixar as armas. Parece que sou constantemente obrigada a sair da minha zona de conforto. No fundo, sei que me queixo sem razão. A verdade é que eu gosto de recomeços. De novas oportunidades. De páginas em branco. De sonhos tornados realidade.

3 comentários:

  1. Oh meu deus, mas que maravilha!
    Adoro sonhos realizados, faz-me ter fé para acreditar nos meus.
    :)
    Tu és, sem sombra de dúvida, uma pessoa fantástica, cheia de força e generosidade. Boa sorte!

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