quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Nature Provides

(e a casa foi mobilada aos poucos com o que ia aparecendo)


Primeiro, apareceram as cadeiras, umas horas depois de ter alugado uma casa completamente vazia. Íamos a caminho de Amesterdão, onde o amigo que me acompanhou na road trip até à Bélgica ia apanhar o avião. Estávamos cansados, irritados, perdidos. Encostámos o carro na berma para consultar o mapa. No meio da discussão, mesmo à nossa frente, vimos três cadeiras de madeira maciça absolutamente fantásticas no lixo. Olhámos um para o outro e, sem dizermos uma palavra, pegámos nas cadeiras e enfiámo-las no carro, estilo Tetris.
 
Este meu (grande, tão grande) amigo, tinha passado a viagem a dizer que ia correr tudo bem, que não me preocupasse, que quando precisamos mesmo nature provides. A partir daquele momento, decidi começar a ter um pouco de fé, pela primeira vez na vida. E as coisas começaram a aparecer aos poucos. Não sei se fui eu que nunca prestei atenção, se de facto a natureza (há quem lhe chame Deus, providência, destino…) veio em meu auxílio naquela altura. Nos dias seguintes, achei o móvel da sala no lixo em Monschau, na Alemanha (onde também andava perdida), dois troncos lindíssimos que fazem de móvel de TV na orla de um bosque, um sofá com um papel a dizer “Para oferecer” à porta de uma casa  e, mais engraçado, o tampo da mesa no contentor de uma loja em 2ª mão onde tinha ido ver mesas.
 
Todos os outros móveis da casa foram oferecidos, comprados em 2ª mão ou recuperados, como a minha secretária, que era a antiga bancada da cozinha dos meus "pais belgas". Sei quanto custou cada coisa, porque o orçamento estava controlado ao cêntimo. A semana que antecedeu a chegada dos rapazes, passei-a a consultar sites e a palmilhar o país para ir buscar tralha. Uma tarde, vi um anúncio de um hotel que ia fechar. Meti-me a caminho e, por 44 euros, trouxe as camas dos rapazes, colchões plastificados, almofadas, edredons, lençóis, um espelho e um caixote do lixo. E ainda me ofereceram vários brinquedos. O senhor teve de me empurrar para conseguir fechar a porta do velho citroën saxo, que veio com o porta-bagagens completamente aberto. Com medo de ser apanhada pela Polícia naqueles preparos, fiz o caminho de regresso por estradas secundárias. Demorei mais de 3 horas e cheguei já era noite cerrada, mas lembro-me que foi a primeira vez que senti que as coisas iam mesmo correr bem.
 
Felizmente, esta casa tinha uma cozinha equipada com frigorífico e fogão. O congelador e grande parte da nossa loiça foram oferecidos pelo meu "irmão" Benoît e pela mulher. Só no dia de Natal, quando ela me mandou um sms a pedir para levar pratos, é que percebi que tinha dividido o serviço de jantar comigo. Quando nos mudámos, a vizinhança foi aparecendo tímida com alguns tarecos. Ainda hoje, temos tudo desirmanado nesta casa: tampas demasiado grandes para as panelas, um copo de cada nação, fronhas às riscas com lençóis às flores, toalhas desbotadas todas diferentes. Mas eu, que sempre tive uma noção de estética muito apurada, adoro. Um dia, vejo dois vizinhos à gargalhada rua acima, um sentado numa cadeira de computador e o outro a empurrá-la. Entre os dois, tinham arranjado peças suficientes para montar este mamarracho que range cada vez que me mexo.
 
Apesar de tudo, a casa demorou a ficar operacional. Os rapazes não esquecem os primeiros tempos, em que passávamos os fins-de-semana a pintar e a calcorrear vendas de garagem nos arredores. Na altura, preocupava-me que isto os pudesse traumatizar. Vejo, agora, que comer sentados no meio do chão, usar as malas como armários e falar baixinho por causa do eco, era uma aventura para eles. O Diogo ainda se ri ao lembrar-se da minha cara quando, depois de mais um périplo por estradinhas, cheguei a casa e lhe mostrei orgulhosa a minha fantástica aquisição: uma velha cama de ferro forjado do Ikea... e percebi que não tinha instruções de montagem. Passámos horas a aparafusar e desaparafusar, até chegarmos lá por tentativa e erro.
 
Houve coisas que demoraram mais tempo a arranjar, dado o seu custo elevado, mesmo em 2ª mão. Passei meses como uma cigana, com a trouxa da roupa atrás para ir lavando onde calhava. Uma noite, aproveitei o passeio do Fuas para ir buscar um cesto de roupa lavada a casa de uma vizinha. O maluco puxou tanto que nem me dei conta que fui espalhando o que estava em cima pelo caminho. Na manhã seguinte, ia morrendo de vergonha quando um vizinho bateu à porta com um monte de meias e cuecas nas mãos. Quando lhe perguntei admirada como sabia que eram nossas, ele riu-se e disse que se tinha limitado a seguir o rasto.

Sou contra cartões de crédito, por isso, não tive outro remédio se não ir comprando qualquer coisa todos os meses. Este mês, comprei o tão ansiado micro-ondas. Depois de o esfregar várias vezes, percebi que ainda tinha os plásticos de protecção originais por baixo e fiquei contente como uma miúda. É que isto de comprar coisas em 2ª mão é sempre uma lotaria, mas a verdade é que, até agora, tenho tido sempre sorte. Quando comprei uma cafeteira eléctrica toda suja por 3 euros, a minha "mãe belga" decretou que, desta vez, aquilo não ia funcionar. Passados muitos meses, ainda está ali para as curvas. Agora, andamos à procura de uma máquina fotográfica, porque a nossa morreu, após muitos anos de fiel serviço. Quando encontrar uma por 15 euros logo ponho fotografias da casa…
 

[Quando o Nature Provides não funciona, os meus queridos tios em Inglaterra dão uma ajuda, portanto acho que posso manter o título em inglês…]

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