quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Não digam nada a ninguém, mas nesta terra faz-se contrabando

(onde se explica a complexidade da separação do lixo)

 
Nunca perdi muito tempo a pensar na questão do lixo. Para mim, a coisa era simples: o papel no contentor azul, o vidro no verde e o plástico no amarelo. O resto ia para o contentor do lixo no fundo da rua, que era recolhido diariamente. Até ao dia em que vim para esta terra e percebi que é preciso tirar um curso para perceber o que se deve fazer com os detritos. Demorei séculos a entender como é que a coisa funcionava. E tive de rever toda a minha noção de “lixo”.

Em Malempré, não há contentores do lixo. Há dois caixotes que estão sempre a abarrotar e vidrões à porta do cemitério (desconfio que é para podermos despejar as garrafas de álcool discretamente, porque até prova em contrário os mortos não falam). Há uns tempos, uma dirigente da Câmara veio fazer uma consulta popular e andamos pela aldeia a identificar os pontos fracos. A cada esquina, lá vinha um velhote: “Aqui, ficava mesmo bem um banquinho… e um caixote do lixo.” Se a senhora aplicar todas as sugestões, daqui por uns tempos Malempré terá bancos e caixotes do lixo com fartura e viveremos todos muito mais felizes. Até lá, é um ver se te avias…
 
A recolha do lixo faz-se às quartas. E só podemos pôr o lixo na rua na quarta-feira de manhã. Quer dizer, podemos pôr antes, mas os sacos aparecem rasgados e o lixo todo espalhado, como se andassem ursos esfomeados a rondar a aldeia. Falo de ursos, porque comprei um caixote grande de plástico e os sacanas conseguem abrir a tampa sem o mandar ao chão. Resultado: o lixo guarda-se em casa. Nos sacos verdes biodegradáveis põem-se os detritos orgânicos. Nos pretos, o lixo doméstico. Como é que eu sei que os sacos verdes são mesmo biodegradáveis? Porque se desfazem todos antes de chegar à rua. E como é que a Câmara sabe que somos cumpridores e não metemos o lixo todo nos sacos pretos? Porque são transparentes e o nosso lixo está exposto aos olhos de quem passa, sem qualquer pudor.
 
A uns cinco quilómetros daqui, há um centro de reciclagem onde se deposita o lixo reciclável. A ideia é encher o carro com tralha e, uma vez por mês, ir lá despejá-la. Até podemos ir mais vezes e levar poucas coisas para reciclar, mas não nos põem um carimbo na caderneta. E toda a gente precisa de doze carimbos até ao final do ano para conseguir diminuir o imposto anual do tratamento do lixo. Ora isto é um sistema caótico para quem tem uma casa pequena, sem espaço para os sacos do lixo que têm de esperar por quarta-feira, mais o lixo reciclável que tem de esperar pelo final do mês. Já para não falar do mau cheiro.
 
A primeira vez que fomos ao centro de reciclagem parecia que tínhamos entrado noutro mundo. A reciclagem nesta terra é uma coisa complicadíssima, só ao alcance de espíritos iluminados ou gente nativa. Cada detrito tem um sítio específico onde deve ser colocado. E andam por lá uns senhores à paisana a controlar tudo. Há vidro branco e vidro colorido. Uma embalagem de shampoo não tem nada a ver com uma embalagem de detergente da loiça. As rolhas reciclam-se. E as tampas. O plástico sem elasticidade não é reciclável. As embalagens de iogurte também não. Mas as cuvettes de esferovite são. A madeira também. E as folhas. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa… e uma coisa não tem nada a ver com a outra. O truque é levar os miúdos para ajudar e, se fizerem disparate e ouvirmos um ralhete, é ralhar-lhes por cima com um ar de desilusão profunda por a progenitura ser incapaz de dividir o lixo reciclável. Ah… e mandar o Vasco com o seu olhar cândido pedir um carimbo.

E porque é que me lembrei agora do problema do lixo? É que entrámos na época do ano em que esta questão se torna particularmente complicada. Em Janeiro, a Junta distribui os sacos do lixo atribuídos a cada agregado familiar. Quando se acabam, é preciso comprar mais… a peso de ouro, mesmo. Portanto, quando o final do ano se aproxima e o stock de sacos está quase a acabar, a imaginação dos malempresianos atinge o seu auge. Vale tudo para não deitar dinheiro literalmente para o lixo.

A população arranjou um verdadeiro sistema de contrabando de lixo para fugir às autoridades. As pessoas que trabalham no Luxemburgo levam o lixo doméstico para o Luxemburgo e distribuem os sacos que têm a mais pelos vizinhos. Eu não tenho ninguém que me passe a fronteira com o lixo, mas ando sempre à cata de caixotes de lixo públicos para esvaziar o que trago escondido no carro. O problema é que deve haver mais pessoas com esta ideia peregrina e os caixotes do lixo públicos têm uma abertura minúscula tipo caixa do correio. Eis-me, portanto, em tudo quanto é espaço público, discretamente a espalmar o lixo muito bem espalmadinho e a empurrá-lo com toda a força lá para dentro.

O lixo biodegradável é distribuído pelos galinheiros da vizinhança sem cerimónias. Ou pelos coelhos da vizinhança, como é o meu caso. No outro dia, uma vizinha que tinha vindo beber café ficou muito escandalizada porque o Diogo despejou a serradura suja da gaiola do coelho no caixote preto. Segundo ela, a serradura vem da madeira, logo é biodegradável e pode perfeitamente voltar à natureza. De agora em diante, vou aproveitar os passeios nocturnos do Fuas para ir despejar serradura nos bosques. Não sei se não darei muito nas vistas com um saco de pai Natal às costas, mas a vizinhança já está habituada a este contrabando de lixo e não deve estranhar...
 

 

1 comentário:

  1. Adorei conhecer esta sua história. Se fosse por cá, eu estava feita. Onde guardar lixo uma semana?

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