terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Um emigrante de palmo e meio

(post dedicado à Carla, minha amiga do coração emigrante em França,

cujo único defeito é amar o Tony Carreira de um amor assolapado

e cego e surdo… principalmente surdo)

 
Às vezes, penso que os filhos são a nossa cuspidela para o ar. A imagem não é lá muito bonita, mas é fiel. Tenho a certeza que sempre que dizemos “Se fosse eu…”, “Ah, comigo…”, “Filho meu, não…”, há algures no universo uma entidade maléfica que nos ouve. E que decide tramar-nos. Enviando-nos um filho que faz questão de contrariar as nossas firmes decisões prévias. Um filho que faz questão de nos sair, assim, meio torto. Enviesado. Só para nos pôr à prova. Só para nos mostrar que não nos devemos armar em espertos. Toda uma lição de vida, portanto.
 
A verdade é que o meu filho Vasco é a personificação do emigrante tuga, em palmo e meio de gente. Aquele emigra que eu sempre abominei quando ouvia falar uma mistura de português com francês, num atabalhoado de coisa nenhuma, por essas praias fora em Agosto.
 
A criatura a quem chamo filho fala emigrantês fluentemente. Essa é que é essa. Começa uma frase numa língua, salta para outra e termina na que começou. Eu exemplifico: “Maman, je crève de faim. Posso comer uma gaufrette? Aujourd’hui à l’école, comi uma pomme. Posso, mãe? S’il-t-plaît?”. É um desespero. É de bradar aos céus. Já percebi que perdi a luta contra a passagem constante de uma língua para a outra. Apenas peço que ele comece e termine uma frase na mesma língua. Simples? Nem por isso. Do alto dos seus sete anos, o meu pequeno emigra vai buscar a palavra que tem ali mais à mão nos dois dicionários que coabitam na sua cabeça estouvada. E pelo meio, de vez em quando, ainda vai inserindo um “What?!” ou uma citação do Star Wars, só para confundir ainda mais as coisas.
 
Mas não é só o aspecto linguístico que me assusta. É o pendor para aderir de imediato aos dois mundos. Uma adesão feita de gastronomia, cultura, música, geografia, literatura, cinema. Uma adesão feita de saltinhos entre um mundo e outro, que me deixa tonta e exausta. Ora me fala do Tio Patinhas, ora do Picsou. Adora bifanas e frites. Devora pastéis de nata e pains au chocolat. Mistura o 25 de Abril com a libertação da Bélgica pelas tropas aliadas. Insiste que nasceu em Lisboa, mas que é de Malempré. Diz “Stáre Wuárres”, porque em francês é assim que se diz. E lê muito bem em português, com um sotaque brasileiro que não faço ideia onde foi buscar.
 
E a última, a cereja em cima do bolo, o top dos tops na lista do tuga emigra que se preze… No outro dia, ouviu um anúncio de um concerto do Tony Carreira na TF1 e começou logo a trautear uma música. Daquelas bem conhecidas, que fala de saudades, da terra que ficou para trás, dos velhos pais, da infância miserável e da labuta diária para vencer no país que nos acolheu. Ó pá… alguém me tire deste filme, eu prometo nunca mais cuspir para o ar!

2 comentários:

  1. E ainda não começaste tu a falar emigrês? Mais dia, menos dia, calha a todos :)

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  2. O único que não se baralha aqui em casa é o Diogo. É mesmo muito raro vê-lo misturar duas línguas. Eu cá tenho um pé a fugir para o chinelo, saio ao Vasco! No ano passado, comecei a falar português no meio de uma aula de Inglês sem me dar conta... Mas acontece mais quando estou cansada.

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