terça-feira, 15 de abril de 2014

As madalenas de Proust

(onde se mostra como se passa da raiva à saudade num ápice)


Sempre que os meus rapazes vão de férias para Portugal aproveito para fazer uma limpeza a sério nos domínios deles. Antes de partirem, peço o favor de deixarem o quarto arrumado. Um favor simples, parece-me. Relativamente rápido. Um favorzinho, vá.

Normalmente, eles fingem que arrumam qualquer coisa. E depois eu finjo que não vejo a desarrumação reinante. É uma espécie de acordo tácito que temos. Mas, desta vez, admito que ia tendo um ataque quando lá entrei e me deparei com um cenário de guerra…

Pacotes vazios de leite com chocolate nos sítios mais insuspeitos. Dezenas de lenços de papel ranhosos amarrotados. Pautas de músicas que nunca os ouvi tocar. O arsenal de armamento de defesa dos Playmobil rodeado que Chocapics debaixo da cama do Vasco. Meias desirmanadas que andavam há meses desaparecidas. Embalagens amarfanhadas de doces e pastilhas que não faço ideia onde vão desencantar. Phones com os fios descarnados. Listas de palavras para decorar em Latim. Espadas e raquetes de ténis. DVDs da série 1, 3 e 4 do “Criminal Minds” fora das caixas. Milhares de minúsculas peças de Lego. Ah… e carregadores. Certamente mais carregadores do que aparelhos electrónicos a carregar. Substâncias estranhas derretidas, que suspeito terem sido rebuçados numa outra encarnação.

À medida que vou metendo isto tudo indiscriminadamente dentro de um saco de plástico preto, sinto uma raiva medonha crescer dentro de mim. Amaldiçoo o facto de estarem a salvo a muitos milhares de quilómetros. Apanho as almofadas atiradas cada uma para seu canto… E não resisto a cheirá-las na esperança de reencontrar o odor suave dos meus filhos. A raiva dissolve-se em saudade.

Acabo sempre estas minhas incursões ao quarto deles a tirar os DVDs do saco do lixo e a guardá-los nas caixas. A reunir uma a uma as infernais peças de Lego. A alisar as pautas de música. A enrolar os fios dos carregadores. Aos poucos, tudo volta aos seus devidos lugares.

Sou um coração mole, é o que é! Estranho poder este, o das madalenas de Proust.

 

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