domingo, 22 de junho de 2014

Às vezes

(ou os efeitos secundários) 


Às vezes gostava que tudo fosse mais fácil. Gostava que isto de ser mãe não fosse tão complicado. Que isto de agora sermos dois não me deixasse tão insegura. Às vezes gostava de conseguir ser mais feliz. Ou durante mais tempo. Ser mais feliz durante mais tempo. Porque sinto que só sou feliz por momentos. Mas se calhar toda a gente sente isso e eu não sei. 

Às vezes queria que as coisas corressem bem. Ou melhor. Queria não ter de contar os dias que faltam para o final do mês. Queria gostar de receber elogios por ser inventiva na cozinha. É só no final do mês, mas eles não notam. Tenho mais imaginação à medida que tenho menos. Mas eles não notam. E ainda bem. Mas eu gostava de não me sentir envergonhada com o elogio. 

Às vezes queria poder falar sobre isto de não ter mais filhos. Da esterilidade. Não gosto desta palavra e nunca a digo. Mas talvez devesse dizê-la. A alguém. O meu amor não gosta de crianças, nunca quis tê-las. Não percebe a diferença entre algo que não queremos mas podemos escolher e algo que não queremos e não podemos escolher. A diferença é subtil, mas está lá. E dói. No outro dia, tentei explicar-lhe. Ele franziu o sobrolho. Eu chorei. E ele pediu desculpa. Disse que era um hipopótamo. Não percebi a metáfora, mas percebi a ideia. E chorei mais. Às vezes apetecia-me falar sobre isto com alguém que não fosse um hipopótamo. 

Às vezes a vida corre muito depressa. E eu queria que parasse um bocadinho. Porque hoje são 13 e amanhã são 18 e ele vai poder conduzir. E beber. Quer dizer, eu sei que ele vai beber antes disso, mas finjo que não. Às vezes penso nisso e sinto um remoinho. E hoje ele diz-me que eu sou o sol e que vai levar-me com ele para a América. E eu sei lá se ele me vai levar mesmo. E diz que nunca vai deixar o violino. Mas um dia pode trocar o violino por uma miúda qualquer que lhe parta o coração. Às vezes penso nisso. Espero que não. Quer dizer, espero que a miúda não lhe parta o coração. 

Às vezes pergunto-me o que raio estou aqui a fazer. Longe de casa. Da família. E do sol de Lisboa. Depois olho em volta e vejo uma casa. E um menino a brincar ao longe no quintal. Sei que tenho um carro lá fora à nossa espera. Lá fora, não. Está na garagem. Um carro que comprei este ano. É vermelho. Nunca pensei ter um carro vermelho que adoro. É graças ao meu trabalho na biblioteca. Na biblioteca, não. Na Unidade de Documentação, porque tenho um jornal para editar esta semana. E o trabalho na escola que já acabou. Para o ano vou ter mais uma turma. Penso que consegui fazer aquilo a que me propunha, quando o chão me fugiu debaixo dos pés: sustentar sozinha duas crianças. Aulas de solfejo, instrumento, equitação, natação. Livros. Médicos. Passeios. Sozinha. Às vezes pergunto-me por que faço esta pergunta cuja resposta é mais do que evidente e está à nossa volta. Temos o coração cheio. E uma nova máquina de fazer pipocas.

Às vezes tenho medo. E tenho pesadelos. E depois tenho medo de ter pesadelos. Tento ficar no escuro de olhos muito abertos para não adormecer. Adormeço sempre. Às vezes sem pesadelos. Mas acordo exausta. Não gosto do meu novo quarto com paredes carmesins. Gosto de ter a cama ao lado da janela para ver o céu. Gosto de ter pesadelos e de esticar a mão para encontrar outra maior. E de me aninhar a ver o céu no escuro. 

Às vezes estamos a falar de coisas várias e questiono-me. Porque o meu amor é a pessoa mais inteligente que eles conhecem. Estão sempre a dizer isso. E eu gosto de ver quantidade de coisas que aprendem. Gosto de ver que são curiosos e querem saber sempre mais. Mas às vezes pergunto-me se não seria melhor falarmos de nós, do que sentimos, do que desejamos, do que receamos. Porque de nada serve sabermos muito se não conseguirmos olhar para dentro. 

E depois lembro-me da lista infindável de efeitos secundários do novo medicamento. Penso que já estou na fase final. Um quarto a cada dois dias. Nunca é bem um quarto, o comprimido é tão pequeno. Desfaz-se todo. Mesmo muito pouco dá vómitos. Sabe a fel. Talvez seja o novo medicamento que me faz sentir assim. Meia chorona e meia sensível. Permanentemente a questionar-me. E depois digo a mim mesma que sempre fui assim. Sempre tive pesadelos, mas nunca tive uma mão maior que me trouxesse de volta com tanta segurança.

4 comentários:

  1. Esta canção acalma-me desde que nasci.
    https://www.youtube.com/watch?v=2vQcNKXp-1w

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  2. Às vezes a vida real devia parecer-se mais com os filmes cor de rosa de antigamente...Mas neste, cujo argumento temos vindo a acompanhar, acho que há uma corredora direita à meta, talvez em câmara lenta, mas com uma música muito especial a tocar quando se dá a vitória! Os fios que se se perdem num novelo irão começar a aparecer no sítio certo...Boa semana!!!

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  3. Este mega-post dava pano para mangas. Vou reter-me na tua força imperturbável apesar de tudo, e no desejo que essa recta final do tratamento passe num instantinho, com os melhores resultados possíveis. Às vezes todos temos dúvidas. Que essa mão maior não deixe de trazer-te de volta quando mais precisas :)

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  4. @ Obrigada, Mel. Lembra-me as músicas brasileiras que a minha mãe punha a tocar no escuro do meu quarto para eu adormecer.

    @ Mariana B, ainda não tinha pensado nisso... nos fios que se desfiam de um lado para tecer outro novelo. Bonita imagem! :)

    @ Sim, Gralha, as dúvidas parecem ter sempre soluções mais fáceis quando temos uma mão para nos manter à tona da água.

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