sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Outra liberdade

(e as despedidas no passeio que improvisámos de carro,

 a caminho do aeroporto)

 

Decidimos sair de casa com muito tempo de antecedência. Tempo para experimentar novos caminhos. Para fazer turismo. Tempo para parar onde nos apetecesse. Para nos irmos despedindo devagarinho.

O Diogo quis despedir-se depressa, à porta de casa de um amigo. Não quis acompanhar-nos neste périplo pelas estradas nacionais do Luxemburgo até ao aeroporto. A idade já vai condicionando as demonstrações de afecto.

“Vais fazer-me falta”, disse o Vasco à avó. Eu ri-me da tradução literal do francês. “Vou sentir a tua falta”, corrigi.

Falámos do que sentimos mais falta. Acho importante falarmos sobre isso. Das saudades. Eu também digo que sinto saudades.

O Vasco sente saudades de comer pão com chouriço. E eu de beber uma bica. Sentimos falta do nosso peixe e de marisco. Somos dois bons apreciadores. Sinto falta de ler um jornal, em papel que se vira com o vento e mancha as mãos. Gostava que o Vasco lesse mais livros em português, mas ninguém lhos manda. Ele disse que também gostava de pastilhas Gorila. E de Sugos. Isso mandam-lhe, sortudo.

Falámos sobre a necessidade de falar as duas línguas em permanência. Por mais que as pessoas gozem connosco, por mais que seja difícil. Mas a minha madrasta concorda que o Vasco mantém um excelente domínio do português. E as notas, na escola, mostram que o francês dele está muito acima da média dos colegas. Mas é cansativo.

A minha madrasta queixava-se do frio. Disse que até podia sentir falta da gastronomia. Dos livros e dos jornais. Da nossa língua. Mas o que ia ser mesmo muito difícil, se fosse emigrante, seria suportar o clima. Os dias cinzentos, a falta de luz, o frio.

“Não”, disse eu. “Não é verdade. Acabamos por nos habituar a isso tudo, acredita.” E ela insistia que não. Que este frio matava uma pessoa. “O que me mata não é frio, a comida diferente. O que me mata não é a língua. Ou o facto de as pessoas serem tão diferentes. O que me mata são as saudades que sinto dos amigos e da família. Ninguém substitui a nossa própria família. Ninguém substitui os amigos de uma vida que deixámos para trás. A solidão é a única coisa que pesa verdadeiramente.”

À noite, fiquei à espera que o meu amor chegasse do curso. Fiquei quieta e enroscada, horas à espera. Sozinha, em silêncio. Quando ele  chegou, chorei finalmente. Nada consegue dissipar esta solidão negra que trago constantemente no coração, mas é muito bom poder chorá-la nos braços de alguém que amamos tanto. Adormeci assim, embalada. Com palavras meigas e festinhas no cabelo.
 
"Eu sei que te sentes sozinha, mas agora és livre. E as pessoas que mais amas estão, aqui, contigo", disse-me ele. É verdade. Mas ninguém me disse que a liberdade era tão pesada.

6 comentários:

  1. Que texto tão bonito! A vida é feita de pessoas e lugares. Quando a distância e a ausência começam a corroer por dentro, sentimos uma parte da nossa existência abalada. Falta-nos os rostos e os lugares que espelham aquilo que somos, aquilo em que nos tornamos, as circunstâncias que nos fizeram quem somos. Penso que compreendo o que sente. Já passei pelo mesmo. Um abraço sentido

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  2. Obrigada, Miss Smile. Os abraços são sempre bem-vindos! :)

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  3. Hoje sonhei que tinha ido visitar-te. Tinhas uma casa muito gira e muito arrumadinha, já vês como te tenho em boa conta ;) Também deve ter sido o meu subconsciente a recordar-me que ainda não tinha comentado este post, que me diz tanto. É verdade, a liberdade pode ser pesada mas vale sempre, sempre a pena.

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  4. Já me fizeste dar uma gargalhada, Gralha! Logo hoje, que eu estava tanto a precisar. A casa é mesmo muito gira, antiga, cheia de escadas e pormenores de madeira. E é verdade que sou neurótica com a arrumação. Como é que adivinhaste?

    Há neve por todo o lado e acabámos de comprar uma "máquina" para fazer bolas de neve... os gralhinhos iam adorar! :)

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  5. Além dos dias cinzentos e frios, e da saudades das "nossas pessoas", eu ia morrer, estando tão longe do mar!

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  6. Sim, Naná... eu também tenho muitas saudades do mar, no "nosso" mar. Aqui, se me fizer à estrada, também o tenho. E nem sequer é assim tão longe. Mas é muito diferente, não me mata as saudades.

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