quinta-feira, 23 de abril de 2015

Façamos um suponhamos…

(sonhei que tinha recebido um e-mail tão ridículo que nem resposta merecia, mas não podia desperdiçar o seu imenso potencial literário)


 

Ora, então, muito boa tarde!

Aguardo ansiosamente que te pronuncies sobre a sentença, como prometido… até porque pensava que apenas os juízes podiam fazê-lo. Sempre achei que a única forma que o comum dos mortais tinha de se pronunciar sobre uma decisão jurídica era interpondo recurso. Agradeço-te imenso a correcção.

Aproveito também para agradecer a sugestão de reprimenda que tenho de dar a minha advogada, que teve acesso à decisão do tribunal três dias depois de a acta do julgamento ter sido lavrada. Uma pessoa a pensar que está a lidar com uma profissional séria e vai-se a ver é uma malandra de primeira que tem acesso a informações confidenciais sabe-se lá como. Prometo que vou seguir a sugestão e passar a ter mais cuidado com estas questões legais.

Quando à viagem de regresso dos rapazes, estou perfeitamente de acordo: o Vasco não pode viajar de avião vestido de fato treino. É uma autêntica vergonha! A partir de agora, passarei a mandá-lo de fato e gravata para estar à altura de tão selecto meio de transporte. Agradeço o cuidado posto no envio do dito fato de treino, que vinha tão bem engomado. Sou uma desleixada de primeira! Não só mando o miúdo nesses preparos, como nem lhe sei engomar a roupa… pfff! Já agora, se me é permitido, gostaria apenas de esclarecer que as meias número 23-26 que o Vasco trazia calçadas não me pertencem. Sei que sou má mãe e que as meias que mandei não eram de marca… mas, pelo menos, eram um 34 e não lhe apertavam os pés.

Fico imensamente feliz por saber que os meus filhos passaram umas excelentes férias. De facto, como bem dizes, a batalha contra o vento que travei para pedir uma pensão de alimentos deve tê-los deixado completamente desnorteados. Pobres crianças, que injustiça! Garanto que nunca mais os farei passar por esse infortúnio. Graças a Deus, existe quem ponha o seu bem-estar em primeiro lugar, quem lhes dê o amor e respeito que, manifestamente, sou incapaz de lhes oferecer. Tenho a certeza de que a minha família agradecerá efusivamente quando souber que os consideras como membros da tua própria família. Haja amor! Fiquei muitíssimo espantada ao descobrir que a minha irmã do meio é bem-educada e manda cumprimentos! Afinal, sempre há esperança nessa rapariga! De facto, sinto-me muito triste e sozinha aqui, no exílio, longe dessa família unida, como tão bem explicaste. Prometo fazer o que pedes e tentar aprender que agir bem trás sempre bons resultados. Aliás, também tenho de aprender a escrever correctamente com urgência! E a usar o novo acordo ortográfico para poder justificar os meus erros (mesmo os sintácticos ou semânticos).

Não fazia ideia nenhuma que, no centro de Lisboa, se respirava ar puro do mar que tão bem faz aos pulmões… Aposto que também abre o apetite e que é por isso que os rapazes vão tantas vezes comer ao McDonalds! Ainda bem que vão intercalando essa alimentação saudável com a sopa de gengibre com que curaste a constipação do Diogo. Tens toda a razão, xaropes para a tosse e pingos no nariz são uma medicamentação completamente desnecessária nos dias que correm. Eu e a minha mania dos químicos! Por favor, manda-me já a receita. Já agora, a sopa de gengibre também serve para a tosse alérgica ou é só para tomar quando o Diogo estiver constipado?

Gostaria de aproveitar ainda para perguntar qual o comprimento de cabelos mais adequado. Certamente há uma medida ditada pela etiqueta que me escapa. Peço imensa desculpa pelo desleixo! Aliás, fiquei morta de vergonha quando disseste que o Vasco ia com as unhas enormes. Sacana do miúdo, pedi-lhe que as roesse no avião, mas ele deve ter-se esquecido! Pelo menos, isso permitiu-te conquistar o título de “melhor cortador de unhas do mundo”, que te deixou tão vaidoso! Por mais que me custe, vejo-me obrigada a dar-te os meus sinceros parabéns.

Agradeço-te a explicação dada sobre esse flagelo que tento infligir quotidianamente aos meus pobres filhos. Graças a ti, fiquei a saber que a alienação parental é uma das maiores variantes de violência psicológica. Prometo nunca mais ir por esse caminho, de modo a evitar mostrar quem verdadeiramente sou aos olhos de toda a humanidade (e até mesmo dos extraterrestres).

Dei pulos de alegria quando soube que leste um livro inteiro em português com o Vasco! Inteiro, hein?! Uau… deve ter sido um esforço inimaginável! E que felicidade ao ver que ele trouxe mais dois na mala para eu ler com ele! Infelizmente, não são o estilo de livro que o rapaz mais gosta, mas está descansado que vou obrigá-lo, nem que seja ao estalo. Aliás, aproveito para responder ao teu pedido urgente de informações: o Vasco vai passar a fazer duas horas diárias de exercícios nos livros escolares em português. Acho que as oito horas que passa na escola, mais os trabalhos que faz depois em casa, são claramente insuficientes. É um preguiçoso! A partir de agora, vai passar a trabalhar 11 horas por dia e acabou-se a conversa!

Lamento dizer que fiquei estupefacta com o grave problema que me colocas. O Vasco ainda não sabe nadar bem?! As aulas de natação na escola são insuficientes?! Apesar de saber que não o vês a nadar há mais de 8 meses, longe de mim duvidar. Pensava sinceramente que ele já sabia… no ano passado, recebeu um certificado a dizer que já conseguia nadar 50 metros. São uns gatunos! Fazes muito bem em não pagar o 1.10€ por semana que eles exigem! É um roubo! Proponho meter os três professores de natação que ele já teve aqui, na Bélgica, em tribunal. E, já agora, o Ministério da Educação, por ser cúmplice nesta vigarice. Mas não te preocupes, para além das 11 horas de estudo diárias, do solfejo, das aulas de violino e do ballet, o Vasco vai passar a ter aulas de natação também fora da escola. Nem que tenha de acordar às 6h da manhã… quem madruga, Deus ajuda, não é verdade? No pior dos casos, tiro-o do ballet. Tens toda a razão, aquilo são influências nefastas do Billy Elliot e mais nada! Escusas de te preocupar com míseros detalhes de ordem financeira, quem paga integralmente quatro actividades, também paga cinco! E o meu patrão tem de compreender que tenho de deixar de trabalhar para poder acompanhar este marinheiro de água doce. É que se não fosses tu, nem me lembraria do risco enorme que o Vasco corre por morarmos perto de um lago. Só andam por lá patos, mas nunca se sabe se o miúdo não se lembra de se mandar à água quando o calor infernal típico das Ardenas apertar!

O próximo problema que levantas é, sem dúvida, o mais vergonhoso para a minha pessoa. Sou obrigada a concordar contigo e a declarar que sou uma incompetente a educar o meu filho mais novo. Tens toda a razão, não lhe sei passar as regras mínimas. Eu tento, juro que sim… mas não consigo. Não tenho resposta para te dar, desculpa. Não consigo explicar o porquê de o Vasco ainda comer com as mãos, de meter os dedos dentro da boca e de falar com a boca cheia. E esqueceste-te de referir os puns à mesa. É um javardo, não há outra palavra. Eu até gosto do miúdo, mas é um autêntico porco. No entanto, lamento informar-te que a educação extremosa que lhe tentam dar nesse sentido em Portugal não surtiu grande efeito… Ainda ontem o vi tirar a cebola do prato com os dedos. Felizmente, usou apenas dois dedos, como manda a etiqueta. Mas, pronto, sei que é grave. Vou passar a flagelá-lo todos os dias à mesa. Olha… com um bocado de sorte, vai chegar a casa tão cansado das 11 horas de estudo seguidas e das suas inúmeras actividades, que adormece sem jantar e o problema fica automaticamente resolvido.

Já escrevi à ortodontista do Vasco a pedir explicações sobre a ausência do kit de higiene ortodôntico. Nunca tinha visto nada de tão sofisticado, muito obrigada pela generosa oferta do escovilhão! Não há dúvida que o mau profissionalismo grassa neste país! Peço imensa desculpa pelo meu desleixo, pensava que esses escovilhões eram usados apenas por quem tem aparelhos tipo caminho-de-ferro nos dentes. O do Vasco é amovível e lava-se com a escova de dentes. Aliás, a ortodontista disse que o Vasco devia mexer o mínimo possível no aparelho que une os dois dentes da frente para evitar voltar a parti-lo e eu, parva, acreditei! Agora que estou devidamente informada, prometo corroborar.

Embora, a principal preocupação seja com o selvagem pequeno que tenho aqui por casa, vejo que também há inquietação em relação ao Diogo. Concordo perfeitamente que a conexão que ele tem com Portugal é muito boa (e eu que estava com medo que o wifi não chegasse ao 3º andar…). Lamento todas as injustiças, desrespeitos e desigualdades que ele é obrigado a sofrer diariamente. Juro que vou esforçar-me por lhe fazer todas as vontades daqui para a frente e mantê-lo sempre satisfeito. Só não entendo quando dizes que, se não cumprir a minha palavra, ele terá de ficar aqui mais um ano. Desculpa a burrice, mas pensei que o tribunal tinha decidido que os rapazes ficavam entregues à minha guarda definitivamente. Tipo, até à maioridade. Se calhar, tenho de reler aquela papelada toda para perceber melhor porque sou nitidamente estúpida.

Não é preciso zangares-te em relação à escolaridade do Diogo! Eu ainda não tinha percebido que desejavas estar presente em todas as reuniões escolares, tendo em conta que não falas a língua, não percebes patavina do que se diz e estás a 2500 km de distância. Mas, a partir de agora, passarei a comunicar-te todas as datas, de modo a poderes estar presente quando for para decidir se escolhe 4 ou 5 horas de Matemática no próximo ano. Longe de mim querer tomar decisões desta ordem de importância, capazes de comprometer para todo o sempre o futuro do rapaz!

Quanto ao último boletim escolar do Diogo, nada feito. Lamento mesmo muito a minha negligência. Os rapazes recebem 4 boletins escolares, mais 6 na música. Anualmente, mando 20 boletins escolares. Como há quase três anos que aqui estamos, já vamos em perto de 60 boletins enviados… Por uma vez, não encontro um scanner que fiz. Sou uma despistada! Obviamente, é motivo mais do que suficiente para escrever ao tribunal a queixares-te. Tens toda a razão, factos graves deste tipo devem ser de imediato notificados a instâncias superiores. Aquele bando de preguiçosos também tem de tratar disso, para além dos casos menos graves de crianças maltratadas ou abusadas. Já agora, poupa-me o trabalho e o selo e explica-lhes, de uma vez por todas, os motivos que te levam a não desembolsar a verba que te condenaram a pagar. Parece-me que, agora, ficou perfeitamente esclarecido o porquê de não pagares despesas médicas, escolares e extracurriculares, tendo em conta a falta de profissionalismo bem patente de todos os envolvidos neste país merdoso.

Fico a aguardar novas instruções de vida, críticas diversas, informações adicionais e rectificações de vária ordem, sempre no intuito de me tornar uma pessoa melhor e uma mãe à altura da progenitura. Afigura-se uma missão quase impossível, mas com a tua simpática ajuda talvez ainda um dia chegue lá…
 
Com os meus melhores cumprimentos,
Amigo Imaginário.

Sem comentários:

Enviar um comentário