quarta-feira, 8 de julho de 2015

O segredo

(porque é preciso amadurecer a coragem de ser diferente)


 

O Vasco tem um segredo. Segundo ele, é assim um bocadinho como as vidas duplas dos super-heróis. Agora que penso, é engraçado que a coisa pequena tenha descoberto os super-heróis este ano. Ele que nunca se aventurou muito para além do universo do Star Wars. O mais curioso é que o Vasco não se interessou exactamente pelas histórias típicas dos super-heróis, como seria de esperar. Os livros que ele agora devora são um género de biografia. Falsa biografia, evidentemente. Tipo, “Batman, o super-herói” ou “Superman em construção”. Livros que exploram o nascimento do super-herói, a sua vida dupla. Acho que funcionam mais como material de pesquisa do que como objecto literário.

Seja como for, há quase um ano que o Vasco mantém o seu segredo. Ninguém sabe que ele anda no ballet. Aqui, diz-se dança clássica. Como é evidente, a família e os amigos mais chegados sabem. Mas ele prefere não falar muito sobre o assunto. Faz questão de cultivar esse segredo, essa vida dupla. Em casa, nunca está quieto. Bicho-carpinteiro em acção. Passa a vida a correr, a dançar, a rodopiar, a fazer saltinhos e piruetas. A ensaiar o pas de bourré, o chassé, o coupé… Dá gosto vê-lo fazer pequenos passos, completamente distraído. Alheado do mundo que o rodeia. Nunca faz os esquemas completos, só excertos, vindos do nada. E apenas quando estamos em família. Treina a memória do corpo. Às vezes, mostra-me o que aprendeu. “Olha aqui este novo passo, mãe…” O jeito não é muito, sejamos sinceros. Mas o importante é que ele gosta.

A professora é muito dura com eles. Está sempre a ralhar nas aulas. Principalmente com o Vasco, que começou há menos tempo e não tem a graciosidade da meninada. Nem a mesma capacidade de concentração. Mas ele adora-a. Acha-a engraçada, sabe-se lá porquê. O boletim do Natal não foi extraordinário e ele desmotivou. Nunca tinha recebido más notas na vida, não foi fácil. Voltou a animar com o espectáculo que deram em Março, onde se portou lindamente… apesar de ter tido medo que algum colega da escola pudesse reconhecê-lo em palco. Do pouco que pude ir espreitando das aulas, pareceu-me que estava a melhorar. Além de gostar muito de dar asas ao corpo, o Vasco também aprecia toda a componente física, anatómica, da dança clássica. Às vezes, a professora explica o movimento de uma determinada parte do corpo e eles têm de pôr as mãos naquela zona para sentirem o movimento, de tal forma é imperceptível a olho nu. Têm de aprender a sentir o corpo, a ouvir o corpo, que é uma coisa que os homens fazem pouco na nossa sociedade.

Há pouco tempo, fomos consultar dois ortopedistas, porque o Vasco começou a coxear e a professora de ballet me alertou para rigidez de certos músculos. Depois de um susto inicial e de vários exames, percebeu-se que não era nada de grave. O Vasco dificilmente será um bailarino, mas tem de continuar a fazer dança clássica, porque funciona como uma espécie de fisioterapia localizada. A coisa pequena teve muita dificuldade em admitir que andava no ballet, à frente dos diferentes especialistas que o analisaram. A dada altura, um médico germanófono que falava um francês atabalhoado, explicou que era uma sorte o Vasco gostar de ballet e não de futebol, um desporto que nunca poderia fazer. A coisa pequena percebeu que o médico queria que ele se inscrevesse no futebol e exclamou, aflito. “Futebol?! Mas eu detesto futebol!” Compreendi, então, que esta história do segredo do Vasco tinha outra dimensão. Porque não só ele não diz a ninguém que anda no ballet, como passa os recreios a jogar à bola. E a dar-me cabo dos ténis e das calças. Quando o questionei, respondeu-me que é o que todos os colegas fazem. Tipo efeito de grupo. Que não quer ser diferente. Que não quer que gozem com ele. Lembrei-o da inveja que o Diogo e o amigo tinham sentido quando lhes contou que, durante o espectáculo de ballet, as miúdas todas – da mais nova à mais velha – se tinham despido à sua frente, nos balneários. “Deixa-os crescer mais um pouco e tu vais ver…”, disse-lhe para o animar. Ele fez-me um sorriso cúmplice. “Eu sei, mãe!” É esperto este meu filho pequeno.

Igualmente esperta é uma colega da escola do Vasco, que ainda está na Maternelle. O que só prova que, de facto, as miúdas amadurecem muito mais cedo. A menina em questão também anda no ballet, numa turma anterior à do Vasco. Quando ele entra, está ela a sair. Aqui há uns tempos, a miúda perguntou-lhe no recreio se ele andava na dança clássica. O meu super-herói disse logo que não. Nem pensar nisso. Que disparate. Olha que ideia. A menina não desistiu. Disse que o via todas as terças-feiras a entrar para a aula de ballet. Mas o Vasco já tinha o argumentário preparado e explicou que andava num ATL, na mesma escola. Ela não insistiu, foi-se embora. E o Vasco pensou que estava safo. Parvo, vê-se bem que ainda não conhece os meandros subtis da mente feminina. No último dia de aulas, a professora de dança reuniu as turmas todas para entregar os boletins e encher a criançada de doces. A coleguinha também lá estava, claro. O Vasco decidiu ignorá-la, tornando-se invisível com os seus superpoderes. A miúda entrou no jogo e fingiu que não o via. Para seu azar, a professora estava especialmente bem-disposta e fartou-se de brincar com o Vasco. Meteu-se com ele por causa dos trambolhões e das leggings rasgadas, elogiou-lhe os progressos, fez questão de ler em voz alta o que tinha escrito no boletim sobre a capacidade discursiva do pequeno bailarino… Enfim, o Vasco acabou por ser a estrela da companhia. À saída, a menina veio ter com ele. A coisa pequena encolheu-se, mas não tinha como fugir. E, do alto dos seus cinco anos, a miúda disse-lhe meigamente: “Ainda bem que nenhum de nós anda na dança clássica, não é?!” Algo envergonhado, o Vasco confessou-me depois que achava que o seu segredo estava em boas mãos...

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