sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Entretanto, a vida

(dos espaços, tempos e estados de espírito certos)



No Verão, quando soube que ia ficar sem as aulas de Espanhol, não entrei em pânico. Fiquei preocupada, não o nego. No entanto, estava confiante de que alguma coisa haveria de se arranjar. A verdade é que a sorte tem-me sorrido, desde que arrisquei mudar de vida. É preciso que se diga que a sorte dá uma trabalheira desgraçada. E, por vezes, prega-nos pequenas rasteiras. Mas, quando uma pessoa acredita que tem sorte na vida, até se consegue rir das quedas e se levanta mais depressa, sem olhar em volta para ver se alguém assistiu ao trambolhão. A nossa perspectiva muda completamente.

Sabem aquela frase da Catarina Beato que tem o condão de irritar as pessoas? “A vida resolve-se sozinha.” Estou desconfiada de que os mais patetas a devem levar à letra, o que é um perfeito disparate. Enfim… Um disparate quase tão grande como pensar que tudo depende de nós, que temos de estar motivados e ser proactivos em todos os momentos da nossa vida. Que nunca podemos baixar os braços.

Se houve lição que eu aprendi, quando a vida me trocou as voltas, é que nunca conseguiremos controlar todas as variáveis de um problema. Ora eu era uma pessoa que precisava de controlar tudo à minha volta, de antecipar problemas e conjecturar soluções hipotéticas. Sempre sofri por antecipação. Sempre vivi muito mais no futuro do que no presente. Até que caí. E sofri horrores. Nessa altura, fui obrigada a vasculhar o passado para procurar algumas respostas de que precisava urgentemente para compreender o que se estava a passar na minha vida. Percebi que nem tudo era visível ou dedutível… mas, caramba, havia tanta coisa que permaneceu anos a fio à frente dos meus olhos sem que eu conseguisse ver. Demorei a perdoar a minha cegueira.

A questão é que nós só vemos aquilo que estamos preparados para ver. Acredito profundamente que as coisas só acontecem quando somos capazes de as enfrentar. Só que ainda não sabemos. Às vezes, é mesmo preciso deixar andar. Largar. Deixar a vida acontecer. Sem pensar muito, sem agir muito. A inércia nem sempre é sinónimo de apatia. Pode ser uma espécie de dormir acordado, de trabalhar problemas não resolvidos através do sonho. Durante anos fui crescendo, sonâmbula. Até que acordei para a vida. Literalmente.

Enquanto vivi adormecida, fui acumulando experiências profissionais que acabaram por se revelar extremamente úteis nesta minha segunda existência. Os filhos que o meu amor nunca desejou nasceram. Transformaram-me na mãe que sempre sonhei ser. Cresceram o suficiente para terem autonomia necessária para darmos o salto a três. O meu amor estudou, viajou, navegou, mergulhou, pilotou. E no momento certo – nem antes, nem depois – encontrámo-nos os quatro. Num lapso espácio-temporal perfeito. Isto foi sorte, inquestionavelmente. Tudo o resto é trabalho. Fazemos um esforço hercúleo, quotidiano, para estarmos à altura da sorte que nos foi oferecida. Do desafio.

Já não sofro por antecipação. Não vivo no futuro. Não ando à espreita de possíveis dificuldades. Vivo o aqui e o agora que a sorte me proporcionou. Vivo uma felicidade feita de pequeninas coisas. A declaração de amor que encontrei rabiscada num papelinho quando abri este computador, no final do dia. A alegria do Vasco, que foi dormir pela primeira vez a casa de um amigo. O pedido do filho grande para fazermos qualquer coisa a dois.

No Verão, quando soube que ia ficar sem as aulas de Espanhol, já não entrei em pânico. Como teria certamente acontecido noutros tempos. Reduzimos as saídas, os passeios, os restaurantes. Começámos a aventurar-nos por estas Ardenas maravilhosas que nos rodeiam. Descobrimos sabores surpreendentes, quando o meu amor começou a cozinhar para nós. Sem dizer nada, reduzi também alguns médicos e as poucas vaidades que tinha. Confiante, comecei calmamente à procura de pequenos trabalhos, como contei no post passado. Esta semana arranjei mais um. Vou voltar à saudosa tradução e legendagem, por valores bem mais elevados do que os anteriores. Fiquei feliz.


[ Soube hoje que não passei à fase seguinte no concurso da Comunidade Europeia para tradutores de português. Por um ponto apenas. É tão eu, que desatei a rir quando li a mensagem. Raciocínio abstracto e matemática, what else?! Mas também o que raio iria eu fazer para Bruxelas? Os 4000 e tal euros mensais haviam de ser gastos a pagar impostos, uma casa minúscula e uma empregada para tomar conta dos filhos. Os meus dias seriam consumidos entre traduções enfadonhas de um projecto no qual não acredito minimamente e o trânsito infernal da capital europeia. Vistas bem as coisas, posso ficar com a minha consciência apaziguada por ter tentado, mas há males que vêm por bem. Acredito mesmo nisso. E, pronto… para tranquilizar também o ego, nos testes de compreensão linguística de francês e inglês tive uma excelente pontuação. Pode não servir para grande coisa, mas fiquei feliz por saber que sou boa tradutora. Porque, no fundo, apesar dos meus sete ofícios, é isso que eu sou. ]

4 comentários:

  1. É esse o pensamento certo. Viver o presente e valorizar os momentos. São os momentos dolorosos que nos fazem crescer. Eu senti isso, quando fiquei sozinha com 3 filhos. E apesar do sofrimento, hoje sei que sou uma mulher mais forte e determinada. E tal como tu, acredito que as coisas acontecem exatamente quando estamos preparados para as receber e que nada é por acaso. A vida tem a capacidade enorme de nos surpreender sempre!

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  2. Eu sempre fui uma optimista, sempre tive a confiança de que aquilo que eu queria e desejava haveria de aparecer. E tem aparecido, sim! Por vezes por caminhos muito tortuosos e sob formas diferentes daquelas que eu tinha "visualizado" (sim, eu sou daquelas que quando deseja muito uma coisa, visualiza tudo ao mais ínfimo pormenor!.
    As únicas vezes que me "perdi" de mim mesma foi exactamente quando deixei de conseguir ter esta mesma capacidade, quando comecei a ter "medo"!
    Já não sou tão confiante, mas acredito no mesmo que tu: que há coisas que sucedem quando e porque têm que acontecer.
    Mas dito isto, às vezes gostava que certas coisas não fossem tão "tiradas a ferros"...

    E sim, não ias gostar nada de 'Xelas!

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    1. Parecendo que não, sou muito terra-a-terra. Não acredito nada em predestinações e karmas e coisas que o valha.

      Mas... o que tem que ser, tem muita força, pronto! :)

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