sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Malabarismos

(onde se explica como se chega ao fim do mês)


 

Não é fácil viver com um part-time de 19h por semana, embora não me possa queixar do salário. Longe disso. Mas acho piada falar-se tanto, em Portugal, dos salários mínimos de outros países. O que as pessoas não sabem é que, em muitos países do norte da Europa, como por exemplo na Bélgica, a maioria das mães com filhos pequenos trabalha a 4/5 ou a 1/2 tempo. Isto equivale, grosso modo, a um ou dois dias livres por semana. Ou a horários de trabalho fora do vulgar. A flexibilidade é enorme… até porque as aulas terminam às 11h50, às quartas-feiras. E o ATL só está aberto até às 17h30. As minhas colegas mais organizadas, que entram cedo e almoçam em 15 minutos, conseguem ter três dias por semana livres. Eu preferi adaptar o meu horário de trabalho aos horários da escola do Vasco. E as minhas folgas variam anualmente, consoante as actividades extra-curriculares. Se isto é luxo? Obviamente que sim, mas também não se recebe o tal “salário mínimo”. Economicamente falando, vale a pena, há mais produtividade e menos desemprego. Em termos familiares, as vantagens são claras. Esta foi a maneira que eu arranjei de compensar o facto de estarmos sozinhos, de não termos ajudas familiares. O contrapeso de termos emigrado é eu ser uma mãe muito presente na vida dos meus filhos.

É evidente que o delicado equilíbrio entre trabalho-família-finanças domésticas exige um certo malabarismo. E as coisas complicaram-se seriamente quando a escola onde dava aulas foi obrigada a cortar cursos por falta de verbas, no início do ano lectivo. Sim, a crise também já chegou à Bélgica, embora bastante mais comedida. Por isso, desde Setembro que acumulo pequenos trabalhos para “arredondar os fins do mês”, como se diz por aqui. Felizmente, na Bélgica, não é difícil arranjar estes biscates.

Os meus antigos alunos convidaram-me para lhes dar aulas de conversação em espanhol. Uma coisa menos teórica do que as aulas rígidas que tinham de seguir um programa pré-definido. Todos os meses lhes mando um tema com umas pistas de reflexão por e-mail e, no dia combinado, reunimo-nos em casa de um deles para o debate. À volta de uma boa mesa, como não podia deixar de ser. Já lhes disse que não me sinto bem por receber para estar presente nestes encontros gastronómicos, mas ninguém me liga nenhuma. Tentam convencer-me a beber um copo. Mas tem sido uma enorme fonte de prazer. Vá… de galhofa.

Por outro lado, mantenho as traduções, de forma mais ou menos intermitente. Normalmente, são textos pequenos. Artigos, cartas, diplomas, burocracias. Outras vezes, são livros inteiros, que me obrigam a trabalhar fins-de-semana e noites a fio, como há pouco tempo. Neste momento, faço muitas poucas traduções para o meio audiovisual, porque os preços que se praticam em Portugal são obscenos para os padrões a que me habituei. A regra de ouro, para mim, é sempre a mesma: o tempo roubado à família tem de se justificar financeiramente. Infelizmente, a tradução e legendagem já não compensa. E é uma pena porque é o tipo de tradução que mais prazer me dá.

Há uns tempos respondi a um anúncio algo enigmático. Percebi depois que era para ser cliente-mistério para uma empresa na Flandres. Dispensaram-me da formação in loco, porque vivo na outra ponta da Bélgica. Simplificaram o processo e fazemos tudo online. Excepto as visitas propriamente ditas, como é óbvio. Mas eles adaptam as lojas que me pedem para avaliar ao meu “triângulo geográfico”: trabalho-casa-local habitual de compras. E aos meus horários algo intrincados. Numa outra vida, quando era uma miúda pespeneta, sonhava com este trabalho. Chegar a algum lado, armar o maior banzé e, no fim, anunciar triunfal: “Sou cliente-mistério!”. Agora que o tenho, custa-me. Mudei muito. A vida mudou-me. Olho para aquelas pessoas e penso que podem estar num mau dia. Que têm famílias. Que é esgotante estar horas a fio de pé, num espaço fechado apinhado de gente. Aos poucos, arranjei um método que tenta tirar o melhor de cada um. Comecei a gostar deste trabalho quando percebi que, com um bocadinho de boa vontade, podia ter uma acção positiva na vida das pessoas. Percebi que simpatia gera simpatia.

Tive a confirmação disso mesmo, no outro dia, quando o meu amor se atrasou e eu tive de levar o Vasco para avaliar uma loja. Ora ir fazer de cliente-mistério com um desbocado atrás, é uma missão quase impossível. Eu ia cheia de medo e repeti o discurso vezes sem conta. Fiz um esforço enorme para não ceder à chantagem típica: “se te portares bem, a mãe dá-te um chocolate depois” (sim… os meus filhos vendem-se por pouco). Felizmente a loja tinha uma zona infantil e ele entreteve-se a brincar, sem se aproximar de mim. Correu tudo muito bem e o alívio era generalizado. No fim, quando já estava a sair com a coisa pequena pela mão, a gerente ofereceu-lhe um pai natal enorme de chocolate. Achei que era uma espécie de justiça divina. No carro, o Vasco confessou-me: “Não sei como é que fazes, mãe… Arranjas sempre uns trabalhos tão fixes!”. É nestes momentos que me sinto verdadeiramente agradecida por a vida me ter trocado as voltas e me ter obrigado a mudar de rota.

4 comentários:

  1. Não quero parecer intrometida, nem repetitiva...mas tenho muito orgulho em si! Separam-nos km, anos, experiências de vida...mas cada vez admiro mais pessoas que se fazem à "estrada", que não vivem só a lamentar-se, a pensar sempre no "E se eu...?" No modo mais suave da minha caminhada eu fui/sou assim, com determinação, garra e um sorriso! Um abraço para a semana...

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    1. Obrigada, Mariana. Tem sempre palavras que abraçam a alma! <3

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  2. Mesmo com malabarismos, acredita quando te digo que preferia trabalhar em part-time. Ou mesmo trabalhar no regime dos nórdicos, de fazer jornadas de 6h. É que apesar de ter ATL abertos das 7h30 às 19h30, juro-te que preferia estar mais tempo com os meus filhos, em vez de chegar a casa estafadinha depois de 8h... é que aqui os part-time, além de serem difíceis de encontrar em algumas profissões, são mal pagos e muitas vezes querem fazer as coisas pela "porta do cavalo"...

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  3. Acredito, Naná. O tempo é mesmo um luxo, não é?

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