terça-feira, 27 de setembro de 2016

O cabeleireiro social

(onde se percebe que não tenho mesmo sorte nos cabeleireiros)



Não ia ao cabeleireiro há um ano, quando cortei o cabelo curto. OK… talvez não fosse exactamente curto, mas foi o que me pareceu na altura. Por isso, decidi deixar crescer o cabelo tão depressa quanto possível. O que, em bom português, significa não voltar a cortar nem sequer as pontinhas. Bom, sejamos honestos: não ia ao cabeleireiro há um ano porque, além de detestar a despesa supérflua e fútil, estou a ficar um bocadinho farta das minhas aventuras nos malfadados cabeleireiros desta terra. Mas, entretanto, a Câmara inaugurou um novo projecto: um cabeleireiro social para as famílias mais desfavorecidas do conselho. Ou as mães solteiras, como é o meu caso. Achei importante apoiar a iniciativa, mas não consegui convencer o Diogo a experimentar. Bem argumentei que estavam a dar emprego a duas mães de família desempregadas, que tínhamos de mostrar interesse… O adolescente da casa recusou-se terminantemente a pôr os pés num cabeleireiro que funciona nas instalações da Cruz Vermelha e que, portanto, “não é um cabeleireiro a sério”. Tendo em conta que o Vasco precisa bem mais do que eu de deixar crescer o cabelo, porque voltou das últimas férias em Portugal com o corte à emigrante de leste dos anos 80, tive de me sacrificar. Enchi-me de boa vontade e espírito humanitário e muitos saquinhos de paciência e mantras motivacionais e fé – principalmente, fé – e lá fui eu dar uma nova oportunidade aos profissionais do ramo.

A minha coragem começou logo a esmorecer quando liguei para fazer a marcação. Atendeu-me um velhote. Quer dizer, atenderam dois velhotes, porque aquilo foi uma espécie de conversa a três. Depressa percebi que deviam ser voluntários da Cruz Vermelha, pois percebiam tanto da poda como eu. Ou seja, nada.

Eu: Bom-dia! Queria fazer uma marcação para o cabeleireiro social.
[Primeiro velhote: Pergunta o que pretende.]
Segundo velhote: O que pretende?
Eu: Não sei bem… não posso decidir na altura?
Segundo velhote: Não, acho que não. É que dependendo do trabalho, ponho aqui mais ou menos horas. Está a perceber?
[Primeiro velhote: Pois, diz que tens apontar aqui o que a senhora vai fazer.]
Eu: Estou a perceber. Acho que vou cortar só as pontas.
Segundo velhote: Pronto, vou escrever “cortar”.
[Primeiro velhote: Pergunta se também vai pintar.]
Segundo velhote: Também quer pintar?
Eu: Ah… também pintam? Então, nesse caso, não quero cortar, só quero pintar.
Segundo velhote: Pronto, vou riscar “cortar” e pôr “pintar”. Mas olhe que não sei se dá…
Eu: Não sabe se dá para pintar?
[Primeiro velhote: Dá, dá! Pergunta que cor quer.]
Segundo velhote: Não sei se dá para pintar sem cortar. Não sei se a menina deixa. Ela não gosta de ver as pessoas saírem daqui mal-amanhadas, está a ver?
[Primeiro velhote: Dá, dá! Pergunta mas é a cor.]
Segundo velhote: E que cor é que pretende?
Eu: Se não der para não cortar, não faz mal. Corto só as pontinhas. Pode escrever que é só para cortar as pontas, sim? E a coloração.
[Primeiro velhote: Pergunta qual é a cor.]
Segundo velhote: Quer pintar de que cor?
Eu: Não sei bem o nome… castanho arruivado. É importante?
Segundo velhote: Sim. É por causa dos stocks. A menina tem de gerir os stocks das cores.
[Primeiro velhote: Não sei se há essa cor… que cor é essa? É ruivo?]
Segundo velhote: Pronto, vou escrever aqui “castanho arruivado”. Mas não sei se haverá… Isso é uma cor?
Eu: Deixe estar, não se preocupe. Pinto com o que houver, não é grave.
Segundo velhote: Então, vou escrever entre parêntesis que, se não houver, pinta de outra cor.
[Primeiro velhote: Tens de pôr uma cor! Escreve “castanho”, vá...]
Segundo velhote: Pus castanho, está bem? Para sexta-feira às 10h, sim?
Eu: Está óptimo, obrigada. Até sexta!
[Primeiro velhote: Diz que na sexta-feira de manhã não estás cá. Só cá estou eu.]
Eu: Eu percebi, deixe estar… Então, até qualquer dia!

Na sexta-feira de manhã, lá fui eu… cheia de medo do que iria encontrar. A “menina” parecia mesmo uma menina. Mas era eficiente e despachada. E não falava mais do que o estritamente necessário. Admito que não tenho grande experiência de colorações em cabeleireiros, mas achei que estava a fazer um bom trabalho. Além de que massajava cada madeixa que pintava, o que me deixou a flutuar numa nuvenzinha de bem-estar. Por sorte, ainda havia um tubo do estranhíssimo “castanho arruivado”. Disse-me que tinha de deixar a tinta agir durante 20 minutos e eu deixei-me estar, de olhos fechados a relaxar. Foi fumar um cigarro e voltou. Foi comprar um Ice Tea à máquina e voltou. Depois, pegou nuns papéis e sentou-se ao meu lado a preenchê-los. Eu continuava de olhos fechados, mas ouvia-a suspirar. Longos suspiros, um pouco exasperados. O tempo ia passando, cada vez mais depressa. Achei por bem regressar ao mundo dos vivos e abri os olhos. Tentar trocar um olhar com ela ou mandar umas mensagens telepáticas. Nada. Calculei que os meus 20 minutos já deviam ter passado há muito. Olhei de relance para os papéis e vi o carimbo do Ministério da Educação. Talvez fosse boa ideia meter conversa…

Eu: Isso parece complicado.
Menina: Ah, pois é! Super complicado! Como é que eles querem que uma pessoa se lembre de coisas que se passaram há tantos anos atrás?!
Eu: É para a escola?
Menina: São os papéis da escola da minha filha…
Eu: Tem uma filha?!!!
Menina: Sim, tem 5 anos. Vão ao médico com a escola e mandaram estes documentos para eu preencher… mas isto não são informações médicas!
Eu: Então?
Menina: São datas… datas! Já não me lembro de nada!
Eu: E não pode ver no boletim de saúde?
Menina: Perdi-o. Estou tramada! Sei lá eu quando é que ela se começou a sentar sozinha!
Eu: Costuma ser por volta dos 6/7 meses, não?
Menina: Ah, a senhora lembra-se! Tem filhos pequeninos?
Eu: Não, tenho filhos crescidos… mas tenho boa memória!
Menina: Então, próxima pergunta: Quando começou a gatinhar?
Eu: 9 meses é uma boa idade.
Menina: E a andar?
Eu: Aos 12?
Menina: Quando disse a primeira palavra?
Eu: Aos 11.
Menina: A sério? Eu achava que era mais tarde. Os seus começaram a falar com que idade?
Eu: 7 meses… mas os meus foram precoces! É melhor pôr um bocadinho mais tarde. Vamos pôr idades normais, não?
Menina: Sim, é melhor.
Eu: Vá… então, diga lá. Vai ver que despachamos isso num instante.
Menina: Quando largou as fraldas?
Eu: 2 anos.
Menina: E à noite?
Eu: 3 anos… não, não! Com as meninas é sempre mais cedo, ponha 2 anos e meio.
Menina: Com que idade fez o primeiro amigo?
Eu: Essa é fácil, 3 anos!
….
…..
……
……..

As perguntas sucederam-se e eu fui inventando o melhor que pude. A menina-mãe abria os olhos de espanto e ia acenando em sinal de concordância. Acho que ficou com uma filha perfeitamente mediana. Descobri que sou tão boa a recordar datas que até me lembro com que idade a criança foi operada aos ouvidos. Acredito que me consegui despachar relativamente depressa. Felizmente, a tempo de ficar com algum cabelo na cabeça. Infelizmente, fiquei ruiva. Completamente ruiva. Mas, uma vez lançado o último suspiro e terminada a revisão das datas, a menina voltou ao silêncio e eficiência anteriores. Insistiu para cortar as pontas estragadas… e surpresa… cortou só mesmo as pontinhas, madeixa por madeixa. Nem sequer se pode dizer que me tenha feito um corte. A verdade é que cobrou apenas a coloração, que deve estar para lavar e durar… literalmente, apesar de ter custado a módica quantia de 15 euros.


Como é óbvio, depois de ver a mãe transformada em Jessica Rabbit, o meu filho Diogo jurou que nem morto havia de o apanhar lá. Não fiquei muito surpreendida, confesso. O que vale é que já vou tendo experiência em desastres capilares e sei que isto há-de acabar por passar, mais cedo ou mais tarde. Hum… cheira-me que, desta vez, há-de ser mais tarde que mais cedo. Serei ruiva nos tempos mais próximos. E talvez nos mais distantes também. Lá longe, o meu amor riu-se da minha nova aventura. Disse que, pela primeira vez, tenho o cabelo a condizer com o meu temperamento explosivo.

2 comentários:

  1. Um dia sairá uma edição chamada" Fui ao cabeleireiro e não aconteceu nada de estranho..."! E nós ficaremos desconsolados, não haverá uma gargalhada no meio da leitura do post! Dizem os técnicos que quase se pode ouvir o meu cabelo a crescer, um ano sem o cortar faria com que parecesse uma moça Mormon, com saias abaixo do joelho. E se me acontecesse a problemática da cor acho que entrava no primeiro supermercado e comprava uma cor tipo loiro cendré (whatever that is)! Resto de boa semana e qualquer dia já é tempo de usar barrete! Beijinhos, Rita

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