segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Tradução disléxica

(onde se encontra um porto seguro para o destrambelhamento natural)



Vim parar à tradução por mero acaso, já o devo ter dito aqui. Tornei-me tradutora porque, um dia, comecei a rever um livro que o tradutor tinha deixado ficar a meio, sem aviso prévio. A editora pediu-me para acabar a tradução. Detestei, mas acabei. E eles gostaram do resultado. Nunca mais parei de traduzir. Tenho feito algumas pausas, ao longo da vida, mas nunca parei. Já lá vão quinze anos. Dezenas de livros e muitas centenas de programas. Milhares? Com o tempo, tornou-se um amor agridoce. Mas nunca foi profissão que me atraísse. No universo dos livros – onde se situa indubitavelmente o meu planeta Terra – era mesmo a única profissão que me desagradava. Estava convencida de que a dislexia seria a minha pior inimiga. Hoje sei que há imensos tradutores disléxicos. Pensando bem, até tem a sua lógica. O disléxico é alguém que, por força das circunstâncias, teve de aprender a decifrar desde muito cedo. Ou seja, teve de aprender a descodificar diferentes sinais que os restantes mortais parecem dominar como se fossem automatismos. Ler ou escrever uma simples palavra, para mim, não é um mero automatismo. Bom, para ser totalmente honesta, dizer uma simples palavra não é um automatismo. Nunca foi, nem nunca será. Quando converso, o discurso saí-me fluído. Demasiado fluído; sou uma tagarela em diversas línguas. O problema surge quando tenho de dizer palavras isoladas ou pequenas frases. E a minha mente bloqueia. Visualizo o seu significado, mas a palavra foge para parte incerta. Antigamente, ficava calada. Assustada. À espera que a dita palavra surgisse, lado a lado com o significado que continuava a piscar na minha cabeça. Hoje, vivo com outro disléxico e isso muda tudo. Agora, começo a dizer os diferentes sinónimos que me vão surgindo naturalmente. Digo eu e diz ele, até encontrarmos o termo certo. Com toda a calma.

Tenho exactamente a mesma compreensão para com as dificuldades do meu amor. E faço-o sem qualquer esforço. O que poderia ser encarado como um defeito, para nós, é apenas mais uma característica intrínseca do outro. Somos disléxicos muito diferentes. Mas ambos gostamos de desafiar a nossa mente torpe. Traduzindo. Fazendo mergulho ou pilotando aviões. Ou navegando em alto-mar. Não há coisa pior para um disléxico do que ficar sem as suas balizas habituais. Como quando luto com as palavras que não surgem, ou que me aparecem completamente truncadas. Como quando ele luta com espaços tridimensionais imensos, vazios, sem qualquer referência. A minha tábua de salvação é a gramática, que normalmente me indica a saída. As regras de construção de uma língua – seja ela qual for – são quase sempre infalíveis. As excepções, conheço-as bem. Também me servem muitas vezes de marcos extra no meio do nevoeiro mental. O meu amor aprendeu a contar com o mapa estrelar. Com uma inteligência apuradíssima. E uma memória absolutamente extraordinária. Eu passo a vida a lutar ferozmente contra a minha má memória a curto prazo. Já não perco coisas, mas continuo a perder-me no tempo. Muitas vezes, no espaço. O meu amor também. Não consigo distinguir a esquerda da direita. Ele nunca consegue estacionar num lugar vago surgido do nada. Tal como, às vezes, falha saídas de auto-estrada ou se engana num caminho. Engana-se muito mais nos caminhos que fazemos diariamente. Eu faço-os em modo automático, frequentemente sem ter a mínima ideia de como fui do ponto A ao ponto B. Mas nada disto é problemático. Faz parte da nossa doideira partilhada. Não vos consigo explicar a tranquilidade que esta compreensão mútua nos trouxe. Finalmente, pudemos baixar a guarda. E sei que me tornei também melhor profissional.

Sou, hoje, uma tradutora muito mais calma. Sem dúvida, mais segura. Conheço as fragilidades da minha mente como ninguém. Sei precisamente onde se encontram as armadilhas. Rever os meus textos é como andar à caça. Tenho de perceber os indícios para conseguir prever a localização da minha presa. Talvez seja por isso que sou uma exímia revisora de textos alheios. Adoro rever. Quando acabo uma tradução, sinto um alívio imenso. Começa, então, a minha parte preferida: a revisão. Ora a tradução e legendagem tem uma vantagem evidente sobre a tradução literária, dado que os trabalhos são bastante mais pequenos. O cansaço é o pior inimigo do disléxico, pois cede espaço mental ao erro. Refiro-me ao cansaço que advém do facto de se traduzir centenas de páginas a fio, ininterruptamente, sem mudar de fonte, sem mudar de tamanho, sem mudar de estilo. Sem mudar de tema. É cansativo. E, às vezes, desliga-se um fusível. O erro acontece. Vá… não lhe chamemos erro. Na verdade, trata-se mais de um deslize. O cérebro tropeça. Uma letra troca de sítio, sem nos darmos conta. Duplica. Ou desaparece. E os nossos olhos não vêem, porque só lêem o que querem. Como é óbvio, lêem sempre sem erros. Os nossos olhos são mágicos: lêem o que é suposto estar lá. Contudo, a tradução literária oferece mais margem de manobra em termos de revisão. Ou seja, é mais fácil acontecer um deslize, mas temos mais tempo para deixar repousar os olhos cansados antes de iniciarmos a caça. Na tradução e legendagem não há tempo para o caçador descansar. É traduzir, rever e entregar. E, no dia seguinte, voltamos à mesma rotina sôfrega… Traduzir, rever e entregar. Os deslizes são quase nulos, mas é mais difícil apanhá-los. Para quem gosta de caçar, como eu, é mais engraçado intercalar trabalhos.

Agora, vou voltar durante uma temporada à tradução literária. 504 páginas, para ser mais exacta. A maior vantagem é mesmo poder voltar a ouvir música, enquanto trabalho. O meu disléxico namorado não compreende como consigo concentrar-me melhor na tradução, deixando o meu cérebro distrair-se propositadamente pela música. Mas só consigo ouvir música que conheça na perfeição. Não tenho explicação para o fenómeno, a verdade é que resulta. E é sempre do que sinto mais falta, quando faço tradução e legendagem. Porque passamos o dia a ouvir, mas o cérebro nunca se pode alhear. Porque o que ouvimos é sempre trabalho. E isto é cansativo. Não sei se já disse que o cansaço é o pior inimigo do disléxico. O problema é que, no mundo da tradução, o cansaço pode assumir diversas formas…

2 comentários:

  1. Ai, tanta, tanta coisa que me acontece também com a tradução! O cansaço, as rasteiras, ver o que se quer ver, a alegria de acabar!
    Boa sorte para as tuas 504 páginas! Do alto das minhas 307! Isto custa, mas é tão bom, não é?
    :)

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