terça-feira, 25 de outubro de 2016

E agora, Amigo Imaginário?

(onde se faz o balanço dos últimos três anos, 

por ocasião do aniversário deste vosso amigo)



Sou um bocado despistada com datas, mas na semana passada o Amigo Imaginário fez três anos. Já tanta gente passou por aqui. Já gente de tanto mundo passou por aqui. Não cesso de me espantar.

Aquela outra Rita que começou a narrar a sua aventura, em 2013, mudou muito. Compreendo que este blog possa ter tido o seu interesse, no início. Não é todos os dias que uma mãe ruma a Norte com os dois filhos pequenos. Sem família, sem casa, sem emprego, sem dinheiro. Não posso dizer que não tivesse perspectivas. Aliás, a única coisa que eu tinha, nessa altura, era mesmo a certeza inabalável de que o caminho – fosse ele qual fosse – seria sempre para a frente. Um bocadinho como aquela táctica de guerra que põe os soldados a lutar entre o inimigo e o precipício. Voltar para trás deixa de ser uma hipótese viável. A única solução é desbravar terreno, passo a passo. O melhor ainda havia de estar para vir.

Não me enganei. Cada passo que dei foi sempre para melhor. Alguns foram verdadeiros saltos de fé. A relação com o meu amor, por exemplo. Outros foram muito bem pensados. A saída de Malempré, nomeadamente. Depois, houve o factor sorte. O meu trabalho, sem qualquer sombra de dúvida. Não esquecendo todos os passos que exigiram uma luta extenuante. A batalha judicial pela guarda do meu filho mais velho. Houve muitos passos aventureiros. As nossas inúmeras viagens. Outros houve que resultaram de tropeções. A compra dos meus dois carros foi, indubitavelmente, um passo atrás e dois à frente. Contudo, na grande maioria das vezes, os passos foram sendo dados calmamente. Um pé depois do outro. Sem pensar muito nisso. Porque tinha de ser. Porque era a sequência lógica das coisas. Voltar à tradução e legendagem. Mudar a nossa forma de estar na vida.

Por último, houve um passo de gigante. Provavelmente, o passo mais importante. Houve a minha reconstrução interior, que se foi fazendo devagarinho. Na sombra. Nestes três anos que passaram, aprendi a perdoar a mim mesma. Fiz as pazes com o meu passado. Consegui aceitar que entrei numa espiral auto-destrutiva que me fez perder 18 anos da minha vida. Metade da idade que tinha, quando embarquei nesta aventura. Podia ter sido alguém completamente diferente daquilo que sou. Nunca conseguirei dizer “o que não nos mata, torna-nos mais fortes”. Nunca conseguirei dizer que aqueles anos todos valeram a pena, porque me deram o Diogo e o Vasco. Lamento, essa não é a minha lógica de raciocínio. Mas hoje percebo que as coisas aconteceram exactamente quando tinham de acontecer. Nem antes, nem depois. E que aquele resquício de Rita teve força suficiente para agarrar essa oportunidade. Lutei por mim e, principalmente, pelos meus filhos. O mais engraçado é que alcançámos algo que ultrapassa o que algum dia sonhei. Juntamente com o meu amor, construí a vida que sempre desejei. Uma família nem muito perfeita, nem muito normal. Um nadinha fora do comum. Com um toque de loucura. A tribo. E estou exactamente onde queria estar, antes de me ter perdido e desviado da rota inicialmente traçada. OK… apesar disso, também nunca me ouvirão dizer que “deus escreve direito por linhas tortas”. Mas é só porque não acredito em deus.

Acho que o Amigo Imaginário foi um companheiro fiel de todos esses passos que nos trouxeram até hoje. Não foi por acaso que falei de despojamento, num dos últimos posts. Porque me parece que esse é o caminho. Não quero parecer mística, nem esotérica. Conheço poucas pessoas tão terra-a-terra como eu. Mas quando chegamos onde queríamos chegar, só nos resta despirmo-nos de artifícios para chegarmos ao âmago das coisas. Para nos sentirmos mais libertos. Em paz. Sou feliz a viver neste país. Tenho a sorte de estar exactamente onde queria estar. Não tenho saudades, nem vontade nenhuma de regressar a Portugal. Estranhamente, sinto-me mais próxima da família agora. Aprendi a gerir a distância. E são raros os meses em que não temos visitas. Adoro o meu trabalho. Os meus vários trabalhos, que posso gerir a meu bel-prazer. Nunca há um momento de monotonia. Estou sempre a aprender. Sou grata por ser útil aos outros. E por ganhar o suficiente para o que precisamos. É muito bom ter conseguido alcançar um equilíbrio entre o dinheiro e o tempo. Hoje, tenho mais tempo. Sinto uma alegria imensa quando chego a casa, todas as tardes. Porque sei que à minha espera estão os três homens da minha vida. Mais o cão. Com os quais transformei esta casa que adoro num lar. La petite débrouillardise. Gosto de me sentar no sofá a olhar em volta. Sinto-me profundamente grata por tudo o que temos construído. O nosso ambiente está feito à nossa imagem. Depurado. Organizado. Simples. Confortável.

Este blog fez parte do meu processo de transformação. Foi literalmente um amigo imaginário, que substituiu todos os outros que ficaram para trás. É o meu móvel virtual, onde fui arrumando pensamentos em caixas e caixinhas. Onde fui organizando o passado, sempre que senti necessidade. Nunca pensei que fosse tão benéfico. Em muitos momentos, a escrita foi salvadora. Mas não pensem que foi simples. Quem me queria ver cair, há três anos atrás, continua a seguir-me na esperança de um dia ter material para me destruir. Por isso, lê avidamente as minhas palavras, espia a minha cabeça, espreita a minha vida. Era muito fácil cair na tentação de fazer deste blog um panfleto. Uma espécie de blog engagé. Narrar apenas os bons momentos. Fotografar somente os sorrisos. Ou, pelo contrário, entrar numa relação completamente doentia de troca de galhardetes virtual. Eu sei que houve quem o desejasse ardentemente. Enquanto decorria o longo processo pela guarda do Diogo também eu espiei o outro lado – ou melhor, espiou uma querida amiga que filtrava apenas o essencial – para tentar encontrar algo que provasse que a alienadora parental não era eu. E encontrei, efectivamente. Mas tive a sorte de ter uma advogada que me aconselhou a nunca usar o ataque como modo de defesa. Não por uma questão de ética, lamento dizê-lo. A advocacia tem muito pouco de nobre. Pura e simplesmente porque a juíza que iria julgar o caso detestava que os progenitores dissessem mal um do outro. Foi um conselho de ouro que tive a inteligência de aceitar, embora me tivesse custado. Ganhámos. Pouco depois, deixei de seguir quem destilava maldade com quem respira. Porque já não tinha qualquer utilidade (interesse nunca teve). Para terem uma ideia, na altura em que descobri que tinha o vírus do papiloma humano a criatura disse no seu Facebook que eu era tão ruim que até as minhas entranhas apodreciam. Mas quando bloquei o acesso do Diogo a este tipo de mesquinhez fui acusada de… Já adivinharam, não é? Fui obviamente acusada de alienação parental. Enfim… Sinto orgulho por apenas ter usado este blog uma única vez para dar um recado à minha stalker. O meu limite é o ataque directo aos meus filhos (ainda que disfarçado de bondadezinha), que não têm nada que pagar pelas acções da mãe. Tenho os meus princípios de vida muito rígidos que me recuso a ultrapassar, mas estou longe de ser um monge budista.

Quanto ao resto… sinceramente, que se lixe. Há muito tempo que decidi que não podia deixar que o medo regesse a minha existência. Porque, no fim de contas, o medo é mesmo a única arma que o outro lado tem para nos tentar destruir. O que, bem vistas as coisas, torna isto tudo muito mais simples. A única maneira que conheço de responder ao medo é dar o peito às balas. Ameaçam-me de morte? Nunca me coibi de dizer que o meu amor tinha voltado a Itália e que eu passeava o cão sozinha a altas horas da noite numa Malempré isolada e adormecida. Abrem-me um processo por maus tratos ao Diogo? Não tive pejo em contar que dei duas palmadas no rabo do Vasco quando dei por ele completamente ensopado e roxo a brincar na neve. Acusam-me de levar uma vida miserável? Confesso que fiquei sem as aulas de Espanhol e que, às vezes, o fim do mês chega mais cedo. Agradeço publicamente toda a ajuda que recebi da família. Mostro com orgulho as coisas que compro em segunda mão. Anunciam que destruí por completo a minha relação com o meu filho mais velho? Não tive complexos em admitir que passámos por momentos muito complicados. Insinuam que ando a tentar enganar o Estado belga? Espalho aos quatro-ventos a alegria que sinto por ter voltado à minha profissão de tradutoira-legendadeira. Acusam-me de manter uma relação completamente doentia de dependência profunda com os rapazes? Nunca tive problemas em narrar os nossos dias mãe-filho, em mostrar fotografias da tribo, em admitir que as primeiras separações me deixaram um vazio imenso. Provam-me por A mais B que sou inconstante? Eu advogo o direito à inconstância, à mudança, à transformação. Continuam, ano após ano, a dizer que sou má mãe? Que sou alienadora? Que estou a destruir a vida dos meus filhos? Que fiz deles crianças medrosas, infelizes, pouco saudáveis? Eu repito que o tempo – só o tempo – conseguirá provar quem tem razão. Por enquanto, estes miúdos vendem saúde, felicidade e inteligência. Mas é uma inteligência boa… feita de empatia, curiosidade, motivação, esperteza para ver mais longe, capacidade de trabalho, desenrascanço, questionamento constante. Infelizmente para quem odeia este país e não se priva de dizer constantemente mal dele, o Diogo e o Vasco emigraram a tempo que adoptar o belgicismo mais delicioso: a capacidade de autodérision. A maior força da tribo, contra tudo e contra todos, é a faculdade de se rir de si própria. Sou a primeira a expor-me ao ridículo e a contar as minhas desventuras. Quem não tem medo de mostrar as suas fraquezas e de se rir de si próprio nunca terá medo de ser a ovelha negra do rebanho. [ Um pequeno aparte… talvez seja por isso que a Wallonie ou a Valónia, como se diz em português, esteja neste momento completamente isolada a lutar contra o CETA. Já Júlio César elogiava a bravura das tribos belgas… e o facto de serem bastante avessas ao comércio externo. ]

Talvez manter um blog – um diário aberto ao mundo – seja um acto de egocentrismo, não sei. Não mais do que uma qualquer conta Facebook, parece-me. Em qualquer caso, não foi essa a motivação inicial do Amigo Imaginário. Percebi que a família e amigos, um ano depois da nossa chegada à Bélgica, continuavam preocupados connosco. O blog veio substituir os e-mails quase idênticos que mandava a tantas pessoas diferentes a relatar a nossa vida. Por outro lado, sentia-me muito sozinha, sem trabalho e com o meu amor longe. Creio que foi nesse momento que tive espaço mental para começar a fazer algumas contas com o passado. Há uns tempos, uma amiga disse-me que o Amigo Imaginário tinha sido uma espécie de psicólogo. Talvez seja verdade. Peço-vos desculpa pelos desabafos, mas agradeço a fortuna que poupei. A verdade é que sempre gostei de escrever. Pensei que seria interessante passar as nossas aventuras para o papel, por assim dizer. Mostrar que era possível outra forma de emigração. Mostrar que era possível outra forma de felicidade. Que ambas se podiam conjugar na perfeição. E o Amigo Imaginário tornou-se o fiel depositário das nossas memórias. Quando pensei que perdia o meu filho crescido, agarrei-me à ideia de que a “nossa realidade” pudesse ficar para sempre aqui encerrada. Que um dia mais tarde, quando ambos fossem crescidos, pudessem revisitar as suas memórias de infância com outros olhos. Em certo sentido, este blog tornou-se a minha defesa. O meu argumentário. Não para o mundo (ou para o outro lado), mas para o Diogo e o Vasco. A única coisa que me interessa verdadeiramente é o juízo de valor que um dia os rapazes farão. Esforcei-me por relatar a nossa realidade tal como eu a via. Por mostrar a nossa vida com as suas partes boas e más. Principalmente as mais risíveis. Acho que sempre fui honesta o suficiente para dizer que esta é a minha visão das coisas. Haverá outra, certamente. O blog é meu, mas oferece direito ao contraditório. A caixa de comentário está aberta a anónimos sem necessidade de aprovação prévia da minha parte. Até agora, nunca tive qualquer problema. Sou muito grata por todos os comentários carinhosos que tenho recebido da parte de completos estranhos.

Aos poucos, penso que a família e os amigos se foram apaziguando. Devem ter pensado: “A vida deles já entrou nos eixos, lá longe. É pena serem tão tolinhos… mas, pelo menos, são felizes.” É bom sinal. Nunca gostei de dar preocupações a ninguém. Não tenho a certeza, mas parece-me que os primeiros leitores deste blog, aos poucos, foram deixando de passar por cá para dar lugar a novos leitores espalhados pelo mundo. Não sei como diabo este blog tem trilhado o seu caminho, não está anunciado em lado nenhum e eu não conheço ninguém famoso nestas lides (nem em nenhumas outras, excepto na magnífica arte de serem gente do bem). A questão que se coloca, neste momento, é a da pertinência do Amigo Imaginário. A nossa reconstrução de vida está feita. Felizmente, não ficou ninguém para trás. A nossa história de amor – que não será obviamente “para sempre” – continua tão bonita como nos primeiros tempos. Os miúdos estão bem. Estão crescidos. O caminho a seguir – já o disse aqui várias vezes – é o da simplicidade. A única maneira de se ter mais é tendo menos. A partir do momento em que está tudo bem e em que podemos dedicar-nos finalmente ao que está mal no exterior, será que este blog tem razão de ser? Não acabará por cair no tal egocentrismo que deploro? Alguém se interessará pelas receitas dos produtos naturais que tenho feito? Ando há tanto tempo para falar disto… mas será que alguém quer saber da pasta de dentes caseira que estamos a usar? Quem se preocupa com os malefícios do lauril sulfato de sódio, que tem infinitas identidades? O Vasco preocupa-se. O Diogo também. E eu sinto orgulho por saber que estou a criar filhos preocupados com o meio ambiente. Mas a nossa vida não vai começar agora a girar toda à volta disso… Não vamos virar “Zero Waste”. Gostamos pouco de fundamentalismos. Vamos tirando uma coisa daqui e outra dali, para construirmos um modo de vida que se adapte a nós.

A questão fulcral é mesmo essa… este blog fala apenas daquilo que funciona connosco, com a nossa família. Toda a gente adora ver fotografias de bebés e ler-lhes as gracinhas. Há lá coisa mais genial que uma criança de três ou quatro anos? Mas parece-me que ninguém se interessa pela genialidade que eu vejo nos meus rapazes crescidos... exactamente porque são meus. Ou na doçura deste homem que largou tudo para ficar connosco. Ou no nosso sonho de ter um cavalo… uma quinta… viajar… Na maneira como estamos a tentar educar contra-corrente um adolescente e um rapaz que para lá caminha a passos largos. Será que continuar a escrever sobre a tribo continua a ter algum sentido? Não somos a típica família reconstruída. Não somos uma família numerosa. Também não sou “mãe solteira”. Não tenho um emprego de sonho, mas também não sou escravizada. Não professamos qualquer credo, nem religião. Não defendemos ideias partidárias pré-definidas. Não somos eco-coisos, muito menos consumistas. Gostamos de viajar, mas não me parece que um dia nos venham a ver a dar a volta ao mundo (mas é só mesmo por uma questão de dinheiro, acreditem). Somos apaixonados por literatura, mas tenho algum pudor em publicar o que escrevi sobre a Elena Ferrante, por exemplo. Já está um frio de rachar nesta terra e eu continuo a defender que até ao final de Outubro basta vestir mais uma camisola. Entretanto, andei pela Net... E construí um pequeno aquecedor com vasos de terracota e velas, para pôr em cima da secretária. Mas é um aquecedor que aquece mesmo! Estou desconfiada que teria um sucesso estrondoso entre os tradutores, que enregelam em frente ao computador. Tiro-lhe uma fotografia e percebo que é tosco. Ou talvez já toda a gente conheça o sistema. E apago o post dos rascunhos...

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Três boas notícias

(enquanto uns crescem, outros regridem)



Filho crescido começou finalmente a estudar! Não… não é estudar para os testes. É mesmo estudar diariamente para ter sempre a matéria em dia. A carga de trabalho neste país, a partir do 10.º ano, é assombrosa. Todos os dias há trabalhos de casa, apresentações orais, trabalhos de grupo e testes para preparar. Todos os dias. Para todas as disciplinas. É muito fácil perder o Norte, mas acho que o Diogo se está a sair bastante bem. Em dois meses, adquiriu hábitos de estudo. Parece que, quanto mais ocupado está, melhor se consegue organizar. É espantoso. Continua a dedicar imenso tempo ao órgão de igreja. E um bocadinho mais ao trompete, para minha grande alegria. Gere sozinho todas as suas deslocações e tornou-se autónomo numa série de coisas. Está sempre atrasado como o coelho da Alice, mas tem tempo para tudo. Digamos que é uma calma apressada. Alargou a rede de amizades. Nos últimos tempos, tem sido um corrupio de gente lá em casa. E continua a trabalhar no restaurante ao sábado, de quinze em quinze dias. Acho que o meu filho crescido deu um pulo enorme, desde o início do ano. É estranho. Mas é um estranho bom.

Filho pequeno começou finalmente a ler! É de dizer que o Vasco é um leitor voraz, mas as suas preferências deixavam um bocadinho a desejar. Como qualquer miúdo belga, a BD tem um lugar de destaque… ehhh… exageradamente destacado, passe o pleonasmo. De resto, devora tudo o que é “livro técnico”, por assim dizer. Principalmente, livros sobre mitologia, heróis e animais. Ou ciências, de uma maneira geral. Prefere nitidamente ler em francês, mas também lê em português. Aqui há uns tempos, o meu amor ofereceu-lhe um livro sobre lendas marítimas que ele devorou, apesar de ser um livro para adultos com mais de 300 páginas. O único problema é que o Vasco se recusava terminantemente a ler ficção. Fosse ela qual fosse. A recusa era categórica. No mês passado comprei-lhe o primeiro livro do Harry Potter numa brocante, por insistência do irmão. Claro que o Vasco se negou a lê-lo. Não lhe interessava. Já tinha visto o filme. Conhecia a história. Não era nada de especial. Finquei pé e neguei-me a levá-los à exposição do Harry Potter que está, neste momento, em Bruxelas. Anunciei que só iria depois de a coisa pequena ter lido o livro. Admito que não foi uma chantagem inocente… eu sabia que o Diogo havia de tratar do assunto. Não me enganei. Na semana passada, o Vasco começou a ler. E nunca mais parou. Já está a terminar o segundo volume. Lê a comer, lê a andar, lê na cama, lê na casa de banho. Quando o chamamos e não aparece, é porque está a ler. Despacha os trabalhos de casa a correr para ler. Ontem foi o caminho todo para o solfejo calado. Só quando chegámos é que reparei que estava a ler… às escuras. Não me contive: “Se não te tivesse obrigado, já viste o que terias perdido?!” Lá me confessou que não tinha começado a ler por obrigação materna, mas por medo fraterno. O Diogo ameaçou queimar-lhe a colecção de BD se não lesse o livro a tempo de irmos a exposição. Fiquei impressionada com o método usado, mas não tive coragem de ralhar com o torcionário em questão porque resultou.

Por fim, a última boa notícia. Vaidosa qb, mas enfim… Voltei a caber numas calças 27!  Quer dizer, voltei a caber e consigo respirar normalmente. Pior… Já não consigo usar as calças de ganga que a minha querida mãezinha me trouxe, aquando da sua última visita à Bélgica. Quando desembrulhei a prenda, fiquei um bocadinho chocada, apesar de já estar habituada. É de referir que a minha mãe insiste em comprar-me roupa na Zara. Na secção de criança, obviamente. As ditas calças eram para 14 anos. E, agora, caiem-me rabo abaixo. Bem sei que é triste que uma coisa tão comezinha e fútil me deixe feliz, mas pronto… A inconstância faz parte do meu charme natural.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O teste

(onde se percebe que existem universos paralelos 

e que o conceito de normalidade é subjectivo)



Petite chose continua a viver no seu mundo, que fica obviamente a anos-luz do nosso. Ontem entregou-me vários testes para assinar. Um deles tinha uns números tão perfeitinhos, tão redondinhos e, principalmente, tão pequeninos, que me desfiz em elogios. O Vasco abanava a cabeça, em sinal de concordância, enquanto o sorriso se ia alastrando à cara toda. Quando chegou às orelhas, filho pequeno lá deve ter achado aquilo já era um bocado estranho e pediu para ver o dito teste de Matemática. Que obviamente não era dele. Menos mal, o Romain já leva o teste todo corrigido e assinado. Não foi corrigido por ele, nem assinado pela mãe dele… mas isso é um pequeno detalhe. Quando lhe perguntei por que diabo não tinha dado pelo engano antes, respondeu-me que… hum… o teste… hum… não tinha… hum… sido trocado. “Não foi trocado?! Então, onde é que está o teu teste?” Encolheu os ombros e respondeu que não tinha feito aquele teste. “Pois, isso já eu percebi! É o teste do Romain… que, aliás, tem uma letra bem bonita. Mas onde é que está o teu teste?!” Nessa altura, começou a olhar para os sapatos. Titubeante, lá me confessou que não tinha feito aquele teste, porque não está naquele grupo a Matemática. Como errou um exercício, esta semana está no “grupo mais fraco”. Aquele teste era do “grupo mais avançado”. Nisto, começou a soluçar muito sentido. O irmão, que estava a acompanhar a conversa enquanto assaltava discretamente o frigorífico, veio até à sala perguntar-lhe se não tinha vergonha de estar no grupo dos burros. Os soluços aumentaram de intensidade. “Desculpa, mãe. Estás zangada comigo?” Lá lhe expliquei que me estava borrifando para os “grupos”, que de qualquer modo estão sempre a mudar. O que me preocupa é que ele corrija um teste que não fez, que pertence a outro colega, com matéria que nunca estudou, com uma letra completamente diferente… e que não se dê conta de nada! Sinceramente, o domínio da Matemática interessa-me bem menos do que a sua geolocalização atual. “Ah… mas isso é normal! Já se sabe que o Vasco vive noutro mundo. O que não é normal são as más notas a Matemática.”, esclareceu o irmão. A medo, a coisa pequena acrescentou: “A má letra também é normal”. Tive vontade de chorar, a sério.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Despojamento

(de dentro para fora, sempre)


Em Portugal, a vida passa muito pelo exterior. As vizinhas falam à janela ou no patamar das escadas. Os amigos encontram-se no café. A família alargada reúne-se no restaurante. A rua, latu sensu, tem outra importância. Não há muito aquele hábito de entrar pela casa dos outros adentro sem se fazer anunciar. Sem convite formal. Aqui, passa-se exactamente o contrário. Cultiva-se o interior. Talvez porque o clima frio se preste ao resguardo do lar. Ou porque ninguém tem o hábito de marcar encontro em locais públicos, impessoais. De passagem. Há um bocado aquela ideia de que os restaurantes e cafés foram feitos para comer, não para conviver. A família e os amigos recebem-se em casa. E não precisam de convite para aparecer. Muito menos de comida para se empanturrarem. Ditam as boas maneiras que se deve avisar. Mas o anúncio é feito quando as visitas já estão praticamente a bater à porta. Ora eu detesto visitas surpresa. Odeio receber gente em casa sem que esteja tudo impecavelmente arrumado. O problema é que o Belga consegue ser ainda mais português do que eu. Juntos, somos completamente ermitas. Este Verão, os meus sogros ligaram a dizer que estavam no restaurante onde o Diogo trabalha. O meu amor trocou algumas palavras, desejou-lhes um bom almoço e desligou. Depois, ficámos a olhar um para o outro. Não foi preciso dizer nada. Passou-nos o mesmo pela cabeça. A casa não estava muito arrumada. Nem propriamente limpa. Não estávamos bem vestidos. E já tínhamos planos. É pá… mas se calhar estávamos a exagerar. Também não era preciso sermos malcriados. E lá ligámos de volta, a convidá-los para beber um café connosco. Em nossa casa, pois claro. Tal como ela estava. Ou melhor, tal como ela ficou, em 15 minutos contra-relógio.

O mais ridículo disto tudo é que a nossa casa está sempre impecável. Se a compararmos com a casa da típica família belga dir-se-ia que vivemos num museu. Mas quando alguém aparece sem avisar, não me consigo conter. Começo logo a justificar-me: “Desculpe lá, não ligue à desarrumação…” Invariavelmente, as pessoas arregalam os olhos de espanto. Ou pensam que estou a brincar. Desfazem-se em elogios ao ver os quartos dos nossos rapazes. A minha amiga Christine, que me conhece de ginjeira, sabe bem que estou a falar a sério. Por isso, entra logo a gozar. Queixa-se de que as janelas precisam de ser lavadas. Que o bolo não é fresco. Que acabou de ver um bocadinho de cotão… Eu já nem lhe ligo porque, verdade seja dita, a casa dela é das poucas que também está sempre impecável... não fosse ela filha de uma portuguesa. Regra geral, os belgas são pessoas muito descontraídas. Eu é que não. Só uma grande dose de descontracção permite expor o nosso “interior” ao mundo.

Aqui há uns tempos, o senhorio apareceu sem aviso. Estava a trabalhar no cimo do terreno e o Vasco foi levar-lhe um café. Quando dei por ele, já estava sentado na cozinha a comer uma fatia de bolo. Menos mal, de Domingo a 5ª há sempre bolo nesta casa. Estava eu a preparar-me para começar a ladainha da desarrumação, quando o senhorio se antecipou: “Gosto mesmo muito do que vocês fizeram à casa. É igualzinha à do lado, mas ficou completamente diferente. Não sei como conseguiram. Parece maior. Está sempre ordenada. É aquela coisa do Feng Shui, não é? É despojada ou lá como se diz.” Larguei a rir. Acho que ele resumiu bem a nossa forma de estar na vida: somos despojados. Expliquei-lhe que éramos adeptos ferrenhos da organização. Que tínhamos a preocupação que não acumular. Acho que o perdi quando comecei a dissertar sobre as vantagens de uma vida desprendida. O meu amor apressou-se a servir-lhe mais um café e mudou de assunto. Pode ser ainda mais obcecado do que eu, mas domina melhor a arte de fingir que somos normais.

Faz-me imensa confusão quando ouço falar de estratégias para destralhar. Como se fosse possível encarar este aspecto isoladamente. Como se bastasse “limpar” os armários. Desfazermo-nos daquilo que já não queremos. O problema é muito mais vasto. É todo um paradigma que tem de mudar. É perceber que é impossível termos ordem na nossa vida enquanto o ambiente à nossa volta estiver poluído. É uma purga transversal que começa na nossa cabeça e que acaba na nossa casa. Que passa obrigatoriamente por uma certa higiene de vida que temos de cultivar. Por uma alimentação o mais saudável possível. E por perceber que precisamos efectivamente de muito pouco. Faz tudo parte do mesmo. Quando pensamos bem, todos os caminhos convergem. É um processo. A verdade é que, quando as diferentes peças do puzzle começam a encaixar, as coisas começam a fazer sentido. Aos poucos, sentimo-nos melhor. Dentro e fora de portas. Sentimo-nos desprendidos. Livres.

Crescemos com a ideia de que precisamos de muitas coisas. A sociedade actual apela incessantemente ao consumo. A publicidade está sempre a inventar mais uma necessidade. A verdade é que a minha geração não cresceu com muitas hipóteses de escolha. Não havia Continentes, havia a mercearia do bairro. Não havia Fnacs, havia livrarias e lojas de música. Não havia Staples, havia papelarias. Não havia Primarks, havia a loja de roupa da esquina. Não havia Toys R Us, havia as lojas de brinquedos no Rossio. Não havia Colombos, havia o Fonte Nova. E por aí fora… em Lisboa, bem entendido. Principalmente, havia a ideia de que as coisas tinham um certo custo e a longevidade inerente. Agora, quantas vezes não ouvimos: “Estraga-se num instante, mas também é tão barato nos Chineses!”. Não admira que os quartos dos nossos filhos estejam a abarrotar de brinquedos. Eu sei que o quarto dos meus filhos em Portugal parecia uma loja de brinquedos. Mas também sei que todas as pessoas que me criticavam, nessa altura, hoje têm os quartos dos filhos exactamente no mesmo estado. E quem diz brinquedos, diz roupa, calçado, produtos de higiene… As nossas casas de banho estão a abarrotar com produtos de higiene cada vez mais sofisticados. Temos milhentos produtos de limpeza, cada um com a sua função específica. Tudo isto exige espaço e arrumação. Felizmente o Ikea trata do assunto. Sim, porque o velhinho Vassoureiro da minha infância já fechou há muito.

Admito que é mais fácil adoptar uma filosofia de vida despojada quando se tem hipótese de recomeçar do zero, virando costas a tudo o que ficou para trás. Começa por ser uma necessidade logística, espacial e mental. Transforma-se numa forma de estar na vida, que se reflecte no ambiente que nos rodeia. A nossa casa quase não tem móveis. O pouco mobiliário que temos é pequeno e tem uma função eminentemente prática. O princípio é muito simples: quando nunca se acumula tralha, nunca é preciso destralhar. Ora ninguém acumula coisas no meio do chão. Normalmente, as casas têm arrumação. Demasiada arrumação. O segredo não é arrumar ocasionalmente as gavetas, mas eliminar de vez as gavetas. Se tivermos apenas os móveis indispensáveis aos bens que efectivamente usamos, é impossível acumular mais do que precisamos. Por isso é que a nossa casa depressa nos parece desarrumada… porque não há onde esconder nada. Não há prateleiras para poisar objectos perdidos, nem armários para encafuar tarecos. Como diz o meu amor: “cada coisa tem o seu lugar e cada lugar tem a sua coisa”.

Na sala de jantar só precisamos de uma mesa e de quatro cadeiras. Mais um movelzinho para arrumar os pequenos electrodomésticos. E um enorme mapa-mundo na parede para sonharmos. Mais uma ou outra decoração que a minha mãe fez. Quando temos convidados, vamos buscar mais cadeiras, desviando-as momentaneamente da sua utilidade primária. As nossas quatro secretárias não têm gavetas, está tudo à vista… logo, tem de estar sempre tudo arrumado. Em nossa casa, não há guarda-fatos. Cada um de nós tem uma cómoda no quarto, com a roupa da estação actual. Na casa das máquinas, temos armários maiores para guardar a roupa e o calçado da estação anterior. Para entrar algo novo, algo velho tem de sair. Não é complicado. Só compro um novo par de ténis, quando deito fora o velho. E isto é válido para tudo. Uma frigideira está demasiado riscada, vai para a reciclagem e compra-se uma nova. A mochila do Vasco está toda esfarrapada, vai para o lixo e compra-se uma nova. Tudo é usado até ao final de vida. Ou, caso deixe de ter utilidade, oferecemos a quem precise. Nem sequer é preciso ir muito longe. Às vezes, mesmo ao nosso lado encontramos quem lhes dê novo uso. Na Bélgica é muito comum as pessoas oferecerem aquilo que já não usam. Ninguém leva a mal. Seja restos de comida, material escolar que já não é necessário ou roupa que deixou de servir. Antes de dar a uma instituição ou de pôr nos contentores, primeiro procura-se à nossa volta se há quem queira.

O problema é que aprendemos a valorizar os objectos muito mais pelo seu aspecto afectivo do que financeiro ou utilitário. Isto foi oferecido. Aquilo traz boas memórias. Aqueloutro está associado a uma ocasião especial. E vamos acumulando sem nos darmos conta. Há sempre espaço para mais uma coisinha. Seja lá o que essa “coisinha” for... Um livro que nunca iremos ler. Um CD deixámos de apreciar. Uma camisola lindíssima que ganhou borbotos. Um bibelot horroroso que nos ofereceram. Uma caneta que deita tinta, mas que guardamos porque foi muito cara. Um creme que vinha numa promoção. Uma caneca esbeiçada. Um medicamento que passou de prazo há apenas um mês. Um frasco de compota que não gostámos, mas que custa deitar fora. É preciso aprender a abrir mão das coisas. É preciso cultivar o desprendimento. Por que raio hei-de guardar um casaco que raramente uso se alguém pode aproveitá-lo?! Ou, pelo contrário, por que diabo hei-de comprar uma nova televisão LCD se o velho mono funciona na perfeição? É este equilíbrio que temos de aprender a gerir.

A partir do momento em que a nossa casa tem apenas a arrumação estritamente indispensável às nossas necessidades, basta limitarmo-nos a geri-la. E isto representa um ganho de tempo considerável. Todos os nossos armários estão aproveitados ao milímetro e organizados. Somos os especialistas das caixas e caixinhas, dos cestos e cestinhos. Nos móveis da cozinha, creio que é imprescindível. Tenho o cesto dos cereais e das leguminosas, o cesto das farinhas, o cesto dos produtos de pastelaria, o cesto das especiarias, etc. E assim sucessivamente, em todos os armários da casa. É prático e acho que fica mais bonito. A papelada e os documentos estão todos classificados em dossiers num pequeno móvel da sala. Os medicamentos estão todos no mesmo sítio, tal como os produtos de limpeza ou de higiene. Nunca é preciso andar à procura de nada… “cada coisa tem o seu lugar e cada lugar tem a sua coisa”. Simples. Agora só tenho de começar a praticar a descontracção dos Belgas, para poder abrir a casa às visitas inesperadas…

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Paradoxo da genética

(onde nem sempre o que parece, é…)


E saber que não fui eu, a mãe-migalha, que passou o “gene da pequenez” ao meu filho Vasco? Ainda não consegui parar de rir.

Está encontrado o culpado. Coisa pequena continuará certamente pequena, mas feliz da vida. Escapou a tratamentos complicados e à administração da hormona de crescimento.

Não sei bem como é que a Ciência explica isto. Eu, que sou de Letras, acho que é um paradoxo. Melhor ainda… um oxímoro, a minha figura de estilo preferida.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Fazemos nós #2

(onde se mostra algo que não é muito vantajoso, mas é giro de fazer)


Nesta casa, consome-se iogurte em quantidades industriais. Excepto a coisa pequena, somos todos doidos por iogurte. O meu amor e eu não bebemos leite, mas vingamo-nos nos iogurtes. A marabunta grande bebe leite de soja, mas vinga-se nos iogurtes na mesma. Sempre que lhe dá a fome e não sabe o que há-de comer… pumba! O que equivale a dizer que está sempre a comer iogurte, porque está sempre com fome. Óbvio. Portanto, há muito tempo que deixei de comprar potinhos de iogurte, que desapareciam à velocidade da luz. Para nós, compro embalagens Tetra Pak de um litro de iogurte natural. Para o filho crescido, compro potes de meio quilo de iogurte de stracciatella do Lidl ou do Aldi. Quando queremos levar na marmita, tenho umas embalagens especiais, cuja tampa dá para pôr muesli ou fruta.

Aqui há umas semanas, os potes que comprava para o Diogo desapareceram. O produto não foi descontinuado, porque eu continuava a ver as caixas vazias no frigorífico dos supermercados. Mas foi um ai que se lhe deu... Na brincadeira, perguntei-lhe se teria contado o segredo a algum amigo marabuntesco lá da escola, mas ele garantiu-me que não. Entretanto, o meu amor descobriu uns iogurtes gregos de stracciatella da Nestlé que também agradaram ao adolescente da casa… à mãe é que nem por isso, tendo em conta que tinha de comprar uma embalagem de quatro iogurtes por 3.20€, dia sim, dia não. A coisa ficava um nadinha cara, no final do mês.

Vai daí, lembrei-me de começar a fazer iogurtes de stracciatella. O problema é que demorei tanto tempo a aprofundar o tema na Net, a comprar uma iogurteira em segunda mão e a encontrar exactamente o leite que queria que… os potes de iogurte do Diogo voltaram milagrosamente a estar disponíveis no supermercado. E, entretanto, ele começou a gostar de outros sabores. :p Os homens da casa suspiraram de alívio, porque estavam um bocado cépticos. São uns descrentes! Obviamente, o meu “investimento” não podia ser desperdiçado, pelo que avancei mesmo com a ideia de fazer iogurtes caseiros.

Já fiz uma série deles, tirando ideias daqui e dali, adaptando ao que tinha em casa e aos nossos gostos. Por tentativa e erro, como faço sempre. Para início de conversa, tenho a dizer que os meus iogurtes foram aprovados de imediato. São absolutamente deliciosos! Desaparecem ainda mais depressa do que os outros, infelizmente. Como é evidente, são mais saudáveis e menos doces do que os iogurtes de compra. Contudo, confesso que não ficam mais baratos. Longe disso. Não me parece que o processo seja “mais ecológico”. E também não é lá muito prático. Resumindo, para ser totalmente sincera, esta história dos iogurtes caseiros fica consideravelmente mais cara, suja loiça que nunca mais acaba e dá uma trabalheira do caraças. Mas fiquei apaixonada!

O princípio é muito simples. Ferve-se um litro de leite com 3 colheres de sopa de açúcar. Deixa-se arrefecer e junta-se um pote de iogurte (pode ser caseiro). Distribui-se pelos potinhos de vidro e deixa-se a fermentar na iogurteira durante 12 horas. A partir daqui, podemos criar diversas variantes. Ferver o leite com um pau de canela, uma vagem de baunilha ou cascas de citrinos, por exemplo. Depois de juntar o iogurte, pôr bolacha migada ou chocolate derretido. Pôr no fundo dos potinhos maçã cozida, bocadinhos de caramelo, frutos secos, aveia… É todo um novo mundo. A minha única premissa é usar leite biológico gordo do dia, que compro numa quinta aqui perto (1€/l + 0.40€ pela garrafa esterilizada). O iogurte fica mais consistente e saboroso, não sendo necessário acrescentar o leite em pó que se vê nalgumas receitas. Sei que também é possível fazer esta receita sem iogurteira, num forno preaquecido a 50ºC ou embrulhando os potinhos numa manta, com uma botija de água quente… mas parece-me muito mais complicado. A iogurteira fica ligada durante a noite, é a única parte deste processo que não dá qualquer trabalho.

 [ Eis a máquina distribuidora de leite do dia, situada à entrada da quinta. Na porta atrás do Vasco, tira-se uma garrafa esterilizada (opcional). No meio, introduzem-se as moedas. Por fim, abre-se a porta metalizada à esquerda, põe-se a garrafa e carrega-se no botão para sair o leite. Na máquina do lado, pode-se comprar ovos de maneira um bocadinho mais simples... ]


[ iogurte de maçã caramelizada com amêndoa ]

sábado, 8 de outubro de 2016

Pressentimentos

(♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥)


Ontem de manhã, quando estávamos a sair, o Vasco perguntou-me: “Mãe, sabes quando volta o Pascal?”. Respondi que não sabia, mas que ainda devia demorar algum tempo. Petite chose suspirou: “Como é que ele aguenta estar tanto tempo longe de nós?! Ele deve estar tão triste, tão triste…”.  “E tu, eu estás triste?”, perguntei-lhe docemente. “Estou. O Pascal faz-me falta. Mas tenho a certeza de que ele ainda sente mais saudades. Sente falta de ouvir músicas antigas comigo. E das nossas conversas. Tenho a certeza de que ele está muito triste, porque sente falta de todos nós.”


À noite, recebi um SMS: “Acabei de chegar à Terra do Frio.” O Vasco tinha razão. E eu também, quando disse que o dia de ontem era lindo!

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Dia lindo!

(porque há dias que já começam risonhos)



Hoje encontrei o meu primeiro livro! Como contei aqui, inscrevi-me no grupo “Chasseurs de livres” no Facebook. Ainda só tinha abandonado livros com o Vasco, nunca tinha encontrado. Mas ontem à noite vi esta fotografia:


Reconheci de imediato a igreja ao lado do meu trabalho. Esta manhã, como todas as manhãs, passei por lá. Parei no jardinzinho em frente, onde tantas vezes me sento a apanhar sol à hora do almoço. E lá estava o livro!


Tinha sido encontrado no mês passado, em Mons, por uma escritora belga que se está a agora lançar. Deixou uma mensagem amorosa na primeira página, sobre as sincronias da vida. Sobre a coragem que é preciso ter para abraçarmos os nossos sonhos. Não achei lamechas, comoveu-me. Ainda agora o dia começou e já está a ser tão bom! Enquanto bebia o café da manhã, entrei na página do grupo para lhe agradecer. Trocámos umas breves palavras. Num mundo que se está a tornar tão asséptico e onde as pessoas cada vez mais tendem a evitar o outro, o estranho, o desconhecido, valeu mesmo a pena tropeçar nesta pessoa em particular. Depois, ouvi esta música que uma amiga deixou no Facebook e encontrei a banda sonora que me irá acompanhar hoje, no trabalho… Perfeito! ♥


quinta-feira, 6 de outubro de 2016

And now for something completely different

(porque há que celebrar o facto 

de poder começar a comprar botas da Decathlon à minha coisa pequena)



Na última vez que cá esteve, o tio Rui comentou muito admirado: “Ó rapaz, mas tu sabes tocar violino e não sabes atar os sapatos?!” Pois… não. Nenhum dos meus filhos foi lesto nesta matéria. O Diogo também já tocava trompete há três anos, quando finalmente aprendeu a atar os sapatos. Tinha 10 anos. Talvez a culpa seja minha. Desde que a pediatra dos rapazes me perguntou se conhecia alguém com 18 anos desdentado, que decidi aplicar essa máxima a tudo o que dissesse respeito aos meus filhos. De facto, por que diabo haveria eu de estar preocupada por um bebé de 9 meses ainda não ter dentes? Algum dia haveriam de nascer. Pela mesma lógica de ideias, deixei de me preocupar com tudo aquilo que a sociedade usa para crucificar em praça pública as mães… sempre as mães. “Ainda não consegue mastigar uma bolacha Maria com 8 meses?! O meu sobrinho comia entremeadas aos 7!” “Ainda não anda com 16 meses?! O meu começou a fazer corrida de obstáculos aos 12!”  “Não consegue desenhar uma figura humana com 3 anos?! O filho da minha vizinha fazia reproduções do Picasso aos 2!”  “Não saber apertar os atacadores com 10 anos?! O meu primo faz tricot desde os 6!” E, assim, sucessivamente…

No caso dos atacadores, há apenas um problema. Um problema de monta, é certo. A partir de um certo número, os sapatos têm todos atacadores. Quer dizer, até se encontra calçado 35 com velcro, mas não na Decathlon. Ou em marcas mais económicas. A verdade é que dói na alma gastar uma fortuna em sapatos que não fazem uma estação inteira nos pés do Vasco. Calçado é a única coisa que eu não compro em segunda mão. Até mesmo porque petite chose tem uns pés de princesa e é muito sensível. Assim sendo, para a rentrée comprei-lhe uns sapatos de pele com velcro que me custaram quase 50 euros e uns ténis da Decathlon para os dias de Educação Física. Lamento, mas nesses dias tem mesmo de pedir a alguém que lhe ate os ténis. No outro dia fui buscá-lo à escola e ouvi um menino pequenino dizer-lhe que tinha os ténis desapertados. O Vasco não deu parte fraca. Com um ar superior, respondeu que estava na moda. Acho que o menino não ficou muito convencido… No carro, lá me explicou que este ano a coisa estava complicada. É dos mais crescidos na escola, já não pode andar constantemente a pedir que lhe atem os sapatos. Disse-lhe que andar com os atacadores desapertados também não era solução. Que em breve vinha aí a chuva e a neve… “Talvez esteja mesmo na altura de aprenderes a atar os sapatos!”, lancei-lhe. Ouvi um longo suspiro.

Ontem, o Vasco chegou ao pé de mim com um sorriso de orgulho. E uns laços mal-amanhados nos ténis. É que hoje é dia de Educação Física. Nada como uma motivação extra para se alcançar grandes feitos. A um mês de fazer 10 anos. Toca violino desde os 2 anos e meio.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Dias de abandono

(porque terminei agora I giorni dell'abbandono de Elena Ferrante,

que provocou uma catarse e me trouxe memórias que julgava esquecidas)



Tive a sorte de a vida me ter oferecido uma segunda hipótese. Um caderno cheio de páginas em branco, sem linhas, nem quadrículas, onde poderia escrever uma nova história desde o início. Tenho perfeita consciência de que recebi um presente raro, numa idade em que já tinha maturidade para conseguir aproveitar. Se tivesse acontecido antes, provavelmente ter-me-ia limitado a reescrever a mesmíssima história, mudando apenas o personagem secundário e o cenário. Se tivesse acontecido depois, dificilmente me sentiria com forças para recomeçar do zero. À mulher que mandou uma peça íntima escondida na roupa suja do pai dos meus filhos, dizer-lhe que escolheu o momento perfeito. E agradecer-lhe do fundo do coração por me ter libertado de uma vida (e não apenas de uma relação) que quase me matou. Não se iludam, a tristeza mata mesmo. Aniquila quem somos, corrói a alma, adormece sonhos, anestesia o potencial, paralisa a capacidade de mudança. Ninguém me obrigou a ficar 18 anos. Ninguém me obrigou a encarnar uma sombra. Sou a única culpada pelo estado de apneia em que vivi tantos anos. E sou ainda mais culpada porque convenci todos à minha volta de que era feliz, impossibilitando sordidamente qualquer tipo de ajuda externa. Mais, convenci-me a mim mesma de que aquela era exactamente a vida com que sempre tinha sonhado. Que nunca conseguiria fazer melhor. Que não tinha capacidade para mais. Acreditei quando ele me dizia que nunca estava satisfeita, que não era normal, que era histérica e que vivia num mundo irreal. Que nunca encontraria melhor. Acreditei que o problema era meu. E lutei muito para entrar nos moldes do que era suposto. Esforcei-me para ser feliz. Ou para pensar que era feliz.

Um dia acordei e percebi que tinha de deixar de esperar que o adolescente crescesse, porque entretanto o adolescente já era um homem adulto. Já não tínhamos 16 anos. Não era um problema de maturidade, era um problema de personalidade. Mas estava grávida do segundo filho. Muito grávida. Tive medo quando o meu pai me foi ver à maternidade. Quase não falei. As fotografias que tirámos mostram o desconforto daquela visita. Eu só queria pedir-lhe que me levasse dali. A mim e aos meus dois filhos. Mas tive medo. Porque na noite anterior o adolescente feito adulto parou para ir bater no condutor da frente que não cedia passagem. Eu tinha contracções a cada dois minutos. Porque uma médica novata me mandou andar à chuva durante uma hora e o adolescente feito adulto não foi capaz de se impor. Eu também não, mas já estava naquele limbo em que as dores nos toldam o raciocínio. Porque me disse para parar de vomitar à porta da embaixada, que havia câmaras. Porque me pediu uma justificação para dar na lavandaria. E que parasse de lhe apertar a gravata, que se amarrotava. E os sapatos, que ficavam a cheirar mal com tanto vomitado. Chovia muito. Chovia torrencialmente. Já era de noite. Eu estava de t-shirt. Porque chovia tanto e ele nunca me ofereceu o casaco. O casaco do fato vomitado e amarrotado. Porque eu disse que não aguentava mais, que ia voltar para a maternidade. E ele mandou-me aguentar, que ainda não tinha passado uma hora. Porque eu sabia que algo de errado se passava e ele insistiu que ainda não tinha passado uma hora. Porque num quarto cheio de médicos e já sob oxigénio, ouvi o adolescente feito adulto enaltecer os cuidados médicos da MAC, sem perceber que estavam todos em pânico à espera que vagasse um bloco operatório. Porque quando senti o sangue escorrer para o chão me esforcei por me manter acordada. Tanto sangue. Pensei que morria. Porque supliquei que não me adormecessem com medo de nunca mais acordar. E, depois, quem cuidaria dos meus filhos? Porque nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida. Quem cuidaria dos meus dois filhos? Porque quando finalmente saí, com um Vasco minúsculo enrolado em mim, o adolescente feito adulto confessou que tinha sentido vontade de bater no pai novato que aguardava ao seu lado. Disse que a alegria do outro pai ao telefone, a dar a boa nova ao mundo, lhe deu vontade de lhe bater, ele que estava ali à espera há tanto tempo sem notícias. Porque me perguntou por que raio demorei aquele tempo todo, quando a mulher do outro só tinha demorado dez minutos. Porque percebi que, no dia em que aquela violência toda se voltasse contra mim, estaria perdida. Jurei que nunca mais teria filhos. Jurei em voz alta. Ele não pegou no bebé. Concentrado que estava na raiva. E nas fotografias para mostrar. Eu continuava a tremer. O Vasco encontrou o peito e começou a mamar, sozinho. Foi um momento mágico que vivi na mais completa solidão, estando acompanhada. Na manhã seguinte, inventei uma história engraçada para contar às visitas o parto dantesco. Contei tantas vezes esta história engraçada ao longo dos anos que ela se tornou verdadeira. Nas minhas memórias, tinha sido ele a insistir para voltarmos à maternidade. Esqueci o espanto da enfermeira que estava à minha procura à entrada, quando me viu chegar ensopada. Atrás, o adolescente feito homem de casaco e eu de t-shirt, a tremer. "Mas foi mesmo andar à chuva?!" Ele riu-se. Esqueci essa gargalhada. E o asco que senti. Esqueci-me que a enfermeira disse que queria aproveitar a médica novata estar a jantar para me internar. Porque tinha percebido que o bebé ia nascer. E esqueci que, naquela noite em que Lisboa mergulhou na tempestade, a máscara caiu para sempre e o amor acabou. O Vasco nasceu pouco depois.

Fiquei eu e as minhas memórias edulcoradas. Senti medo. E vivi com medo os cinco anos seguintes. Medo de ter percebido que a vida sonhada já não chegava. Que era uma invenção construída, tal como a narrativa burlesca do parto. Medo do que poderia acontecer. Da mudança. Medo de não ser capaz. De não nos bastar. Medo de nunca mais encontrar o amor. Medo de ser mesmo uma mulher incapaz, desequilibrada, anormal. Ouvi muitas vezes: “vai-te curar, não és boa da cabeça”. E acreditei sempre. O problema era meu. O problema era eu. Porque eu tinha de conseguir ser feliz naquela vida. Porque eu tinha de ser bem-sucedida onde os meus pais tinham falhado. Esforcei-me por continuar, pelo menos, a amar o meu melhor amigo. Como quem ama um membro da família. Percebi que podemos amar alguém de quem não gostamos. Que se transformou num homem que defende tudo aquilo que abominamos. Apenas porque um dia gostámos muito de um adolescente, com quem entrámos carinhosamente na idade adulta com o nascimento do primeiro filho. Aos poucos, aprendemos a controlar os nossos demónios interiores. E a entrar naquilo que se espera de nós. A felicidade pela vida com que supostamente tínhamos sonhado. Mas a repulsa está lá, nunca desaparece por completo. Faz com que nos afastemos de um salto, quando não estamos à espera de uma demonstração de afecto. Faz-nos desviar a cara involuntariamente para evitar um beijo. Faz-nos meter as mãos nos bolsos, quando vamos pela rua. Aprendemos a desculpar-nos com os filhos. Com o trabalho. Com a vida. Dizemos que não é o momento. E nunca mais é momento. Mas continuamos a amar aquela pessoa, como quem gosta de um casaco puído. Pelo hábito.

E, depois, a vida desaba. Muitos anos depois. O adolescente feito homem diz que se calhar já não nos ama. Que não sabe bem. Uns dias, sim. Outros, não. Mas nós não acreditamos e achamos que temos de lutar por aquilo que outrora fomos. Porque é isso que se espera de nós. Até que uma peça íntima aterra no nosso cesto da roupa suja. Não percebemos porquê. Há tantos anos que cultivávamos esforçadamente a felicidade e a normalidade. E não percebemos porquê. Queremos compreender. Fazer qualquer coisa. Voltar atrás. Mudar algo. Salvar o que não tem solução. E suplicamos. Humilhamo-nos. Agora, sim, perdemos o juízo. A lucidez. O corpo vai atrás. Começamos a desmaiar. E damos por nós no hospital, mais uma vez sem perceber o que se passa. Quando voltamos para casa, somos largadas pelo adolescente feito homem. Quando voltamos para casa, não. Somos largadas num descampado, de madrugada. A pulseira do hospital ainda no pulso. Uma discussão. Não nos lembramos bem do que aconteceu. A vida em casa continua. A vida lá fora continua. Como é possível? Ninguém nos vem socorrer. Ninguém vem tomar conta das crianças. Faço 36 anos. Sozinha com os meus filhos. Quase não me lembro desses tempos. Uma névoa espessa. Quantas semanas? Quantos meses? A vida continuava. O trabalho sem receber continuava. A vida miserável continuava. Às vezes,  sentia que não conseguia gerir aquilo tudo. Que ia endoidecer mesmo. Mas eu já era doida, não era? Sei que nunca chorei à frente dos rapazes. Começava a chorar quando deixava o último na escola e parava quando ia buscar o primeiro. Sempre que estava com alguém, ria muito. Nunca quis preocupar ninguém. Ser um peso. Diziam-me que tinha renascido. Emagreci. Voltei a vestir roupa bonita. Comecei a maquilhar-me. Nos fins-de-semana sem filhos, saía. Eu nunca tinha saído, em adulta. Eu que nunca tinha tido sexo ocasional. Só queria ter a certeza de que funcionava. Porque me disseram que a culpa era minha e eu acreditei. Anos e anos de impotência só podiam ser culpa minha. Depois passou. Pelos vistos, também passou comigo. Será que a culpa afinal não era minha? De certeza que era, engravidei. A pouca sanidade mental que me restava desapareceu de vez. Os desmaios voltaram. Sentia um formigueiro na nuca e depois apagava-me. Um sentimento de desdobramento de realidades. Quando o sofrimento era demasiado intenso, apagava-me. Nessa altura, as discussões eram muitas. E violentas. Porque tinha de abortar. Eu só queria ver a minha médica primeiro. Um dia, foi horrível. Na festa do final do ano da escola do Vasco. Ele gritou muito. Tive medo. Pensei que finalmente aquela violência toda se ia virar toda contra mim. Contra nós. Comecei a sangrar, muito, muito. Fui para o hospital. Conduzi sozinha. À ida e à vinda. E lembro-me de pouco. Quase nada. Nunca mais fui capaz de usar um aspirador. O som perturba-me. Ali, naquele momento, sei que relembrei o parto do meu segundo filho. As mentiras que contei aos outros e, principalmente, a mim própria. E percebi que tinha chegado ao fim. O sofrimento tinha chegado ao fim. Aquilo era o fundo do poço. Ali, sozinha. Mais baixo do que tinha descido nas últimas semanas (meses? anos?) não era possível. Pela primeira e única vez na minha vida, senti vergonha e nojo de mim própria. Não fui capaz de dizer a ninguém.

Acordei vazia. Tinha deixado de amar o pouco que me restava daquele homem no coração. Abri mão. Já não era o meu adolescente. Nem o meu melhor amigo. Nem a minha família. Já não era nada, nem sequer humano. Era apenas um estranho. Mas um estranho perigoso. O instinto dizia-me para fugir. Para fugir depressa. Sentia que algo terrível se aproximava a passos largos. Um mau pressentimento. Uma coisa estranha. O caminho a seguir era, agora, muito claro. A partida para a Bélgica já estava prevista, mas até esse dia não acreditei verdadeiramente que fosse capaz. Também nunca acreditei que ele me deixasse partir com as crianças, no estado em que me encontrava. Ali, comecei a acreditar. Nem havia outra solução. Não tinha coragem de olhar nos olhos aquela Rita que me envergonhava. Não conseguia avançar, presa que estava a tantos grilhões. Precisava de uma nova existência. E dos meus filhos. Apenas isso.

Pouco depois, o Diogo disse-me, na cozinha: “Mãe, agora tens de te levantar. Tens-nos a nós e vais ter de lutar. Já chega.” Funcionou como um choque. Porque eu pensava que ele não tinha percebido nada. Tinha acabado de fazer 11 anos. Ele não se lembra desta conversa. Lembra-se de uma outra, que eu não recordo, em que me disse que sim, quando lhe perguntei se queria vir viver comigo para a Bélgica. Terá sido a mesma conversa? Nunca saberei. O Diogo diz que a única recordação que tem desses tempos foi esta conversa. O Vasco tem muito poucas memórias da vida em Portugal. Eu recordo fragmentos dispersos dessas semanas (meses?). Recordo a névoa espessa. E o medo surdo em relação ao que o futuro me reservava. Mas sei que foi daqui que parti, há quatro anos atrás. Porque este blog conta uma história que não tinha início. Eis, então, o começo. Sem quaisquer mágoas ou arrependimentos. Apenas com um sentimento de profunda gratidão. Quantas pessoas acreditam que não são normais, apenas porque o normal não condiz com elas? Quantas pessoas encontram exactamente aquele amor que pensavam existir apenas na sua mente doente? Quantas pessoas conseguem cumprir sonhos que nem sabiam que tinham? Quantas pessoas têm oportunidade de recomeçar uma vida do zero? Quantas pessoas têm esta sorte?

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Um Domingo em imagens

(onde se multiplicam as nossas 24 horas)



 [ alimentámos as feras todas. Eis a nova mini-habitante da casa: Eli Carminho Barroso. Sim, o Vasco continua a dar nomes estranhos ao nosso zoo... ]
 [ aproveitámos uma trégua da chuva e montámos o novo composto. D. Fuas tornou-se exímio a cavar buracos para ir comer porcaria putrefacta no composto ao ar livre que temos. Cão-1/Humanos-0 ]
 [ fiz iogurte com bolacha ]
 [ e conservas de tomate seco ]
 [ o pão de banana era para os lanches da semana, mas as marabuntas decidiram atacar ]
 [ arranjei estas caixinhas para o Diogo levar as barras de cereais caseiras para a escola. Leva duas de cada vez, é uma criatura esfaimada. O Vasco não gosta ]
  [ um mimo para os lanches da semana: bolinhas de salame. Iam-se matando a tentar rapar a tigela ]
[ tratámos da horta e trouxemos legumes para a sopa ]
  [ muffins de pimentos para os almoços na escola ]
[ estava farta de gastar uma fortuna no guilty pleasure da tribo e decidi experimentar uma receita de gelado de spéculoos. Os rapazes deliraram e a primeira caixa já desapareceu ]
[ Arrumámos o armário dos medicamentos. O Diogo é como eu, adora ver tudo organizado em caixas e caixinhas ]
 [ adolescente equipado para uma aula de ciência viva: sabonetes de azeite ]
 [ agora só temos de esperar um mês... ]
[ quando os miúdos se deitam, a tradutoira-legendadeira entra em acção ]

sábado, 1 de outubro de 2016

Caçadores de livros

(porque é por estas pequeninas coisas que eu adoro viver neste país)



No auge da febre do Pokémon Go, uma belga lembrou-se de adaptar a ideia da “caça” virtual aos livros. E, assim, surgiu o grupo do Facebook “Chasseurs de Livres”. Neste momento, somos mais de 77 mil membros e o jogo já se alastrou a outros países. O princípio é muito simples, podendo ser adaptado a todas as idades e géneros literários. Pega-se num livro que já não se queira, põe-se uma badana a explicar o jogo, fecha-se num saco hermético, abandona-se num local público, deixa-se um indício enigmático ou uma fotografia do local no Facebook, e pronto… Let the games begin! Quem encontrar o livro, deve escrever na badana o local onde o encontrou e, finda a leitura, pô-lo novamente a circular.



Hoje, depois da aula de ballet, o Vasco foi abandonar três livros em Malmedy. Achei que tinham mais hipóteses de ser encontrados lá por caçadores do grupo do que na nossa pequenina Vielsalm. Escolheu dois livros que já leu várias vezes e o irmão contribuiu com um policial. A alegria do bicho a esconder os livros foi impagável! Como durante o nosso passeio não encontrámos nenhum livro, fomos até à “boîte à livres” que está à porta da biblioteca de Malmedy… onde o Vasco desencantou uma BD do Snoopy. Este conceito também é delicioso e quase todas as terriolas têm uma “boîte à livres”. É um local onde se podem depositar e tirar livros à vontade. Normalmente, estão nos jardins públicos ou perto das bibliotecas municipais mas, graças aos “Chasseurs de Livres”, já há muita gente a fabricar as suas próprias “boîtes à livres” para pôr à porta de casa. Vale tudo, desde armários reciclados a simples caixas de plástico.



A minha amiga Ana, quando aqui esteve, ficou encantada com a ideia das "boîtes à livres". Comentou a brincar que, se fosse em Portugal, não só levavam os livros todos de uma assentada, como ainda roubavam o móvel de permeio, porque costumam ser bem giros! Ouso esperar que não…