quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Nós, cinco anos depois


(onde se atravessa momentos de turbulência e se sai fortalecido… 

para sempre)



Este nosso quinto ano foi difícil. Não sei se terá sido o mais difícil, mas andou lá perto. O mais estranho é que, quando olho para trás, não encontro assim tantos motivos que o justifiquem. Há a questão do desemprego, claro. Estar desempregado é das piores coisas na vida. Porque nos desocupa os dias e a mente. Porque nos corrói a auto-estima e os sonhos. Porque nos faz ficar noites a fio acordados a fazer contas de subtrair, com o medo a trepar por nós acima até nos tirar o ar. Principalmente, o desemprego obriga-nos a olhar para o futuro e a ponderar mudanças. A traçar novas rotas. E isso, num casal em que um quer ficar e outro ir, abre brechas sinuosas. A liberdade individual esbarrou contra a vontade comum. Tivemos muita dificuldade em admitir que o “nós” se tinha sobreposto ao “eu” e ao “tu”. O amor tinha tomado as rédeas da situação, sem pedir licença. Sem aviso prévio. Sem consentimento mútuo. Algures, começou a escrever-se uma história que escapou por completo ao plano inicialmente delineado. Fazer cedências desmedidas implicava que estávamos a construir um projecto a longo prazo. Ora nós tínhamos imaginado isto como um conto. Nunca um romance. Para sempre era demasiado tempo para mim. Mas, um dia, ele disse com uma simplicidade desarmante: “Vou amar-te para sempre”. Não senti cosquinhas na barriga. Senti o medo a gelar-me por dentro. Sei lá eu se consigo amar alguém para sempre. Mas, depois, pensei que tinha a certeza inabalável de que amaria eternamente os meus rapazes. Sem questionamentos, nem cobranças. Um amor bastante simples, afinal. Que se alimenta a si mesmo, pela inegável razão de existir. Não respondi. Ou melhor, dei-lhe um beijo (que é a sempre a melhor forma de encerrar uma conversa quando não sabemos o que dizer).

Depois, houve a questão do Diogo. Há largos meses atrás, o filho mais velho adolesceu bastante. O que envolveu algumas dores de crescimento. Sobretudo, nos adultos da casa. Quando não se tem mais ninguém à volta, somos saco de pancada para toda a revolta juvenil. Mas eu vi isso com bons olhos. Vejo sempre. Os miúdos só se conseguem opor a um adulto em quem tenham absoluta confiança. Estou convicta de que, sem amor, não há oposição juvenil possível. E a verdade é que ninguém cresce sem primeiro travar as suas batalhas interiores. Cada vez mais acredito que adolescer é semelhante a qualquer outro estádio do desenvolvimento infantil. Só quando uma etapa está consolidada é que se pode passar à aquisição da seguinte. Nenhuma criança consegue lutar em todas as frentes em simultâneo. O problema é que isto dificulta a compreensão do verdadeiro problema. Como quando eles passavam uns dias rabugentos e uma pessoa não percebia patavina até entrever um novo dente a romper. Com o Diogo foi assim. Tivemos um período de turbulência inesperada. Incompreensível. Limitei-me a seguir o meu instinto e a fazer o que sempre fiz: dou o peito às balas, confiante de que a seu tempo perceberei. Mas esqueci que há instintos que se sobrepõem ao meu. Tipo, a lei do mais forte. A dada altura, havia nesta casa dois machos-alfa e a coisa descambou. Filho crescido irrompia em gritos e eu ralhava. Aparentemente, não ralhava o suficiente. Ou com a autoridade necessária. Passada a tempestade, o gabinete de crise reunia. E, invariavelmente, o meu amor ralhava comigo. Com o Diogo, nunca se zangou. Porque não era pai. Porque tinha medo de exagerar, dada a inexperiência. Porque achava que há coisas que só se resolvem mostrando quem manda. Que se lixe a diplomacia. E a teoria dos touchpoints aplicada à adolescência. Às tantas, fartei-me. Isto parecia uma casa de malucos. E, pela primeira vez, tratei o Diogo como um adulto e abri o jogo. Disse-lhe que o comportamento dele estava a destruir a minha relação amorosa (o comportamento dele, não ele). E que, entre um filho e um homem, eu escolheria sempre um filho. Não porque houvesse muitos homens disponíveis. Para mim, só havia este. Sabia que nunca mais amaria outro (afinal, a resposta estava dada). Acima de tudo, sabia que nunca mais encontraria outro que os amasse tanto. Portanto, ele que pensasse bem no assunto. Ou mudava rapidamente de atitude ou perderia uma das pessoas que mais o amava no mundo. Não que ela o fosse abandonar, mas porque eu não aguentava tê-los aos dois debaixo do mesmo tecto. Não sei o que se passou na cabeça do meu filho mais velho. Tão depressa como tinha surgido, a tempestade amainou por completo. E, quando a poeira assentou, apareceu um novo Diogo, mais crescido. Pronto para travar a verdadeira batalha que estava por trás de tudo isto, pois estava seguro do afecto que nos unia.

Entretanto, começou um novo processo judicial. Em teoria, sou apenas o braço armado do meu filho menor de idade. Na prática, sou eu que recebo todos os golpes. Desta vez, recebi vários golpes baixos. Sujos, muito sujos. O meu amor continua a servir-nos de escudo e a ser o homem do leme. Nunca dá parte fraca. Raramente se queixa. É um manancial inesgotável de ideias e recursos. De risos, quando só nos apetece gritar. Há muito que deixei de chorar. Mas sinto uma raiva surda crescer aqui dentro. Este Verão, senti que falhei em relação ao meu filho crescido. Que não fui capaz de protegê-lo como devia. Por agora, creio que acabou. Tenho a certeza de que a Justiça nos fará justiça. O meu amor tem algum receio, mas esconde-o bem. Só eu conheço as duas rugas profundas que teimam em marcar-lhe o sobrolho, quando se põe a matutar. E os abraços apertados que agora dá ao Diogo a toda a hora. Têm sido tempos tão conturbados, tão espiados, tão extenuantes. Nunca mais tivemos momentos só nossos. Exclusivos. E fazem-nos tanta falta! Eu reclamo mais do que ele, porque sinto que não é justo. Digo-lhe frequentemente que outro qualquer já teria içado vela há anos. Quando estou mais bem-disposta, digo-lhe que nos vamos separar para dividir o mal pelas aldeias numa guarda alternada de crianças e problemas. Ele responde logo que sim, mas não está a brincar. Se nos separássemos mesmo, o meu amor seria incapaz de abandonar os dois rapazes que lhe roubaram o coração empedernido. Cinco anos volvidos, este homem mudou tanto por nós. Por eles. Não sei se se terá tornado uma pessoa melhor. Sem dúvida, teve de aprender a viver com o coração fora do peito. E isso é dificílimo. Porque ele cuida ferozmente dos que tomou como seus. Nós, a tribo.

Quando me ponho a pensar, cinco anos parece-me tão pouco para o muito que já vivemos. Este último ano foi sofrido, mas creio que nos trouxe a maturidade que faltava à nossa relação. Para sempre já não me assusta tanto. Tornou-se uma ideia reconfortante. Porque a verdade é que continuamos apaixonados, apesar de nos amarmos. Continuamos a adormecer todas as noites enroscados. A minha cabeça aninhada no buraquinho do ombro dele, feito exactamente à minha medida. E acordamos sempre nos braços um do outro. Ele diz que é o melhor momento do dia. Todas as manhãs pomos a mesa do pequeno-almoço só para nós. Quando um cozinha o jantar, o outro lava a loiça. Nunca discutimos tarefas, deveres, boleias, limpezas, decisões, agendas, dinheiro. Aliás, nunca discutirmos sobre coisas comezinhas. Há um entendimento tácito sobre inúmeros assuntos. E temos sempre conversa. Muitas vezes, ficamos noite adentro a falar sobre coisa nenhuma. Somos os melhores amigos. Passamos a vida na brincadeira. Nunca me ri tanto como nestes últimos cinco anos. Tentamos não nos levar muito a sério. Ver o lado cómico da vida. Quando nos sentimos submergir pela raiva, arquitectamos homicídios imaginários que nunca passarão de palavras. Nenhum de nós é capaz de matar uma formiga. Continuamos a projectar férias e passeios, que vamos realizando à medida das nossas possibilidades mais reduzidas. Vivemos felizes com os rapazes, mas gostamos de fazer planos para quando estivermos finalmente sós. Já só faltam x anos, dizemos muitas vezes. Somos despojados. Cultivamos diariamente o despojamento. Somos aquilo que somos, nunca seremos escravos daquilo que temos. Por isso, precisamos de muito pouco para sermos felizes. Às vezes, basta-nos um passeio à volta do lago quando o sol aparece. Umas panquecas de banana no Domingo à tarde. Todas as viagens de carro feitas de mãos dadas. Um café quentinho a ver a neve cair. O telefonema que ele faz invariavelmente quando estamos longe um do outro. Sabermos que amanhã é o nosso dia (sim, para nós funciona na perfeição termos um dia fixo para fazermos aquelas coisas que os adultos gostam de fazer quando se apanham a sós). A nossa série à noite, enroscados no sofá com o cão. É o nosso reset todas as noites, antes de subirmos. Para mim, é o melhor momento do dia. Chaque jour sufit sa peine, costuma ele dizer. Acredito que conseguimos sobreviver incólumes a estes anos todos exactamente porque compartimentamos tudo e criámos uma gaveta específica onde, no final de cada dia, deixamos o que mais nos fez sofrer. Nunca nos deitámos zangados. Nunca. Tal como nunca levamos os problemas para o nosso quarto. Fica tudo em baixo, no fundinho da tal gaveta. Deste modo, todos os dias há um renascimento. Algo feliz que começa. Uma esperança que se renova. Este amor que se mantém inextinguível, apesar das mudanças. (graças às mudanças?)



4 comentários:

  1. O que eu gosto de vos ler!! Tudo a correr bem por aí!

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  2. Já não te lia há tanto tempo e é sempre uma surpresa boa como da primeira vez. Tudo a correr bem nesse amor de livro :)

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    1. Obrigada, Carla... pelo elogio fofinho e pelo "amor de livro"! :)

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