terça-feira, 22 de outubro de 2013

A nossa aldeia

(onde se explica porque adoramos viver no fim do mundo)

 
Malempré fica encaixada num vale, a 4 km da vila mais próxima. A rua principal desemboca, em cima e em baixo, numa floresta sem saída. Em pleno inverno, quando os dias são muito curtos e escuros, fica coberta de neve e estamos ligados ao mundo por uma única estrada transitável, de onde saltam veados, javalis e outros bichos estranhos. Dizem que, quem aqui chega, nunca mais se quer ir embora. Desconfio que é bem capaz de ser verdade.
 
Viemos cá parar por acaso. Alugar casa, na Bélgica, é tarefa hercúlea. E uma trabalhadora independente estrangeira, sozinha com duas crianças e um cão, não é cartão-de-visita que se apresente. Vi muitas casas, recebi muitas negas. Até que o meu “pai belga”, um apaixonado pelas Ardenas, descobriu esta casa perdida no fim do mundo. Admito que vim vê-la em desespero de causa. Mas, quando parei o carro e vi um Santo António numa cornija, soube que estava no sítio certo. O senhorio alugou-me a casa sem pedir quaisquer documentos e, ao perceber a nossa situação, disse que mais tarde tratávamos da caução… passou-se um ano e continuo à espera.
 
Em Malempré, os duzentos e tal habitantes conhecem-se todos. E, mesmo que não se conheçam, dita a regra que se cumprimentam como se fossem amigos de longa data. Toda a gente se trata por tu. Os miúdos param sempre para dar um beijinho. E os velhotes dois dedos de conversa. Aqui, toda a gente se conhece há tanto tempo que não há hierarquias. A senhora que faz limpezas durante a semana é a professora de equitação ao Sábado.
 
Claro que nem todos se dão bem, há picardias e vizinhos desavindos. Numa das (muitaaas) vezes em que fiquei presa na neve, a primeira pessoa que passou foi, como não podia deixar de ser, a vizinha que não me fala. Parou com toda a naturalidade para me levar os miúdos e avisar que ia pedir para alguém me vir rebocar com um tractor. No dia seguinte, à porta da escola, já não me falava outra vez.
 
Em Malempré não há supermercado, nem mercearia… nem sequer uma simples padaria. Mas já me apareceram à porta com abóboras gigantes, ovos todos sujos, gnochis e pizzas caseiras, marmelada, alhos franceses pequeninos, cogumelos cheios de terra, figos, especiarias árabes e meio javali (por desmanchar, obviamente). Como também não há cafés, os sms habituais andam todos à volta do mesmo assunto: “Vens cá a casa beber café, depois de levares os miúdos à escola?”, “Daqui a 10 min passo por aí para beber café contigo, ok?”, “Socorroooo, não tenho filtros!” (este foi meu, claro).
 
Obviamente, não há “serviços”, por assim dizer, mas toda a gente tem uma profissão fora do seu horário de trabalho. A cabeleireira corta cabelo em casa nas folgas, o mecânico dá um jeito nos carros à noite, o reformado que ia a passar quando me debatia para tirar a máquina de lavar do carro, ajudou a trazê-la para casa e ainda me fez a instalação.
 
Em Malempré impera a lei de Lavoisier: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Quando nevou pela primeira vez, no ano passado, uma vizinha deu-me um fato de neve para o Vasco que já não servia ao filho, que agora vai herdar o fato do Diogo. Roupa, brinquedos e jogos correm a aldeia, passando de uns para os outros. A ideia não é só ajudar, mas principalmente reaproveitar. Em Maio, faz-se uma venda de garagem pelas ruas da aldeia para vender os mamarrachos que deixaram de ser úteis. Foi assim que o Diogo comprou uma televisão por 15 euros, depois de ter estado um dia inteiro a vender tralha.
 
Em certos aspectos, parece que a aldeia parou no tempo, não temos fibra óptica, nem novas linhas telefónicas disponíveis. Noutros, estamos na vanguarda. Em breve, graças a um grupo de habitantes empenhados, Malempré estará ligada em rede a uma caldeira comum, alimentada com dejectos da indústria madeireira local, para termos aquecimento central mais ecológico e económico.
 
Em Malempré não há chuva, frio ou neve que assuste a criançada. Vão a pé ou de bicicleta para a escola, tanto de Inverno como de Verão. Quando as estradas estão cobertas de neve, vão de trenó. E, no final da tarde, vai tudo para a rua brincar até às seis da tarde. Miúdos de todas as idades brincam juntos na rua, jogam consolas em casa, ajudam os adultos nas quintas. Apesar de terem telemóvel, preferem ir bater à porta de casa uns dos outros. Os cães da aldeia costumam acompanhá-los, o que faz uma algazarra desgraçada.
 
Na realidade, animais é coisa que não falta por aqui. Por todo o lado se vêem vacas, ovelhas, burros e cavalos. A bicharada é encarada como um meio de subsistência, excepto para os meus filhos, que param para fazer festas a tudo quanto mexe. Os animais de estimação vivem na rua e só entram em casa para comer e dormir. Os únicos que passeiam o cão com trela somos nós, mas D. Fuas Roupinho é um cão de caça estúpido que não distingue um coelho de um touro e não sabe uma palavra de francês.





2 comentários:

  1. Ohh, isto a mim parece-me a descrição do Paraíso!
    Há aí lugar para mais uma tradutora e um gestor? Podíamos abrir uma padaria/pastelaria com biblioteca!! Era lindo!

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  2. Hum... estou farta de pensar que uma padaria aqui ia resultar! Se tivesse pasteis de nata, então...

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