segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O falso príncipe encantado

(quando a amizade se sobrepõe à vontade de dizer “Eu bem te avisei”)



Pouco depois de chegar a Malempré, bateu-me à porta uma vizinha com um prato de gnocchi na mão para nos dar as boas-vindas. Passados uns dias, retribuí com uma travessa de bacalhau com natas. E nunca mais nos largámos. Tornámo-nos amigas inseparáveis, apesar de os nossos filhos nem sempre se darem bem. A Christine fez mais por nós do que qualquer outra pessoa já tinha feito na minha vida. Tirou cobertores da cama dos filhos para dar aos meus, que não estavam habituados a estes invernos rigorosos. Sinceramente, não sei se eu seria capaz de semelhante gesto.

É daquelas pessoas que dá sem pedir nada em troca. E até se esquece. Hoje estava a fazer torradas e pus-me a jeito para apanhar o pão no ar. Diz-me ela a rir: “Olha, também tive uma torradeira dessas que mandava torradas para a lua!”. Eu respondi que aquela era a torradeira dela. Já não se lembrava. Tal como já não se deve lembrar de ter andado a bisbilhotar os meus armários a ver o que nos faltava, de mandar roupa e calçado para o Diogo, de ter desencantado um aspirador sabe Deus onde, de todas as vezes que apareceu aqui em casa de surpresa, quando eles estavam em Portugal, para me obrigar a sair da cama e comer, e das muitas horas que perdeu a tratar de burocracias comigo. Somos amigas há apenas um ano e meio, mas sinto que a conheço desde sempre. Estive ao lado dela nas dores crónicas, numa operação delicada à coluna, na recuperação, numa separação dolorosa, na procura de emprego e no início de um novo amor. Por isso, quando o príncipe encantado finalmente apareceu, mostrei-me desconfiada. E quando se revelou um pulha da pior espécie, tive vontade de matá-lo.

Tudo começou no dia do desfile de Halloween. À tarde, a Christine mandou-me uma mensagem a perguntar se a podia levar ao hospital, porque não se estava a sentir bem. Quando me estava a preparar para sair, manda-me uma nova mensagem a dizer que, afinal, o colega que andava atrás dela há semanas já estava a caminho. Levou-a ao hospital, trouxe-a de volta, ajudou os filhos dela a fazerem os trabalhos de casa, fez-lhes o jantar e nunca mais se foi embora. Aliás, foi… para ir buscar os seus parcos pertences e assentar arraiais definitivamente.

Os tempos seguintes foram de ramboia como nunca se viu naquela casa: saídas, restaurantes, festas, passeios, bailaricos, idas ao cinema e às compras. Tudo acompanhado por uma constante boa-disposição e gargalhadas. Os miúdos andavam absolutamente encantados com o “padrasto”, que os cobria de prendas. Que ia buscá-los à escola, ajudava a estudar e ainda jogava Playstation nos tempos livres. A Christine andava nas nuvens, qual princesa. Não podia pôr os olhos em cima de nada, que ele oferecia-lhe de imediato. Os seus desejos eram ordens. O mínimo suspiro era satisfeito. Além disso, o príncipe encantado também era uma verdadeira fada do lar multifacetada: trocava as pastilhas do carro, cozinhava, dava um jeito na torneira que pingava, aspirava a casa… Não era o cúmulo da sapiência – nem da beleza, diga-se em abono da verdade – mas compensava isso com uma ternura imensa na forma como a tratava, na dedicação aos miúdos, na ajuda sempre pronta e no riso fácil. E, apesar da minha desconfiança inicial nunca ter desaparecido, comecei a pensar que o homem estava mesmo apaixonado.

Dada a nossa amizade tão estreita, é evidente que esta alegre personagem me entrou pela vida adentro sem pedir licença. Tentei descrevê-lo ao meu amor por e-mail, apontado aspectos negativos e positivos. Fiz um esforço para ser simpática. Deixei antever a minha satisfação por ver a Christine tão feliz e a dúvida insidiosa de que talvez aquilo estivesse a avançar depressa demais. Pelos vistos, fui mesmo simpática na descrição. Uns tempos depois, o meu amor teve oportunidade de conhecer o príncipe encantado e ficou de boca aberta. Literalmente de boca aberta. Eu estava perdida de riso. Quando o vendaval passou – ou seja, quando o alegre casalinho se foi embora – o meu amor disse ter descoberto um aspecto escondido da minha personalidade: eu era extremamente meiga a descrever energúmenos.

A verdade é que mantive o meu cepticismo para mim até a coisa descambar completamente. Em pouco mais de um mês, já o príncipe encantado tinha pedido a minha amiga em casamento. Pior, já lhe tinha pedido para terem um filho. Para ontem. E, como se isso não fosse suficiente, eu fui convidada para madrinha. Intimada a desencantar um vestido e sapatos de salto alto até ao Verão. Confesso que a cena do vestido de cerimónia (ela frisava bem “de cerimónia”…) foi a gota de água que fez transbordar o meu copo.

Um dia, depois de termos estado a ver 196 vestidos de noiva na Net, comecei a expor as minhas dúvidas. Docemente. Como quem não quer a coisa. Com muitooo tacto. Tentando não dizer algo que ela não estava preparada para ouvir, sob risco de comprometer todo o meu discurso. Nunca pus em causa a veracidade dos sentimentos ou um possível compromisso futuro. Pus a tónica na rapidez com que a relação estava a evoluir. Na precipitação. Explicando que, uma vez passada aquela paixão toda inicial, talvez ela descobrisse outro homem. Que não se conhece uma pessoa em meia dúzia de meses. Que aquele período de paixão não ligava lá muito bem com um novo bebé. Que voltar às fraldas e às noites mal dormidas exigia uma relação de aço e não um amor de adolescente. Enfim… falei, falei, falei. A Christine percebeu de imediato onde eu queria chegar e virou a questão ao contrário: Ao fim de 18 anos ao lado do meu namorado do liceu, eu tinha ou não tinha descoberto um perfeito estranho? Fui obrigada a calar-me. E a engolir as minhas dúvidas. O amor é um acto de fé. Se a Christine tinha essa fé para se lançar, não seria eu que lhe ia cortar as asas. Na secreta esperança de que ela não fosse como Ícaro...

E estávamos neste ponto, com data do casamento marcada e a viver um verdadeiro idílio amoroso, quando fui passar o Natal a Inglaterra. Felizmente, os filhos da Christine passaram o Natal com o pai e ela estava sozinha quando o mundo desabou. Gaja que é gaja tem um sexto sentido apurado (só comigo é que a coisa não funcionou, mas isso é outra história). A Christine andava desconfiada com o facto de o príncipe encantado deixar sempre o telemóvel no carro. Até que decidiu ir bisbilhotar. E descobriu o que não queria. Ligou para o número da flausina que lhe enchia o telemóvel com mensagens inflamadas e ficou a saber a extensão da sacanice. Parece que o príncipe encantado tinha conseguido fazer as pazes com a antiga companheira e engravidá-la…durante as primeiras semanas de namoro com a Christine. Como se não bastasse, decidiu manter as duas relações. E ter mais um filho.

Passou uns dias a negar a verdade a ambas… a mandar as mesmas mensagens de desculpas a ambas… a oferecer as mesmas prendas a ambas… até que foi apanhado com a boca na botija e teve mesmo de admitir a paixão a duplicar. A ambas, pois claro. Ficou por explicar como raio pretendia manter esta situação de vida dupla quando as duas crianças nascessem… A estupidez era tanta que acabou por sair de casa da Christine na véspera de Natal, para bater com o nariz na porta da outra. Agora, nem uma nem outra o querem. Nem os pais, velhotes, que ficaram a saber da filha da putice. Um dos bebés não chegou a ser feito, o outro não era viável. As coisas também correram mal no trabalho. O príncipe encantado caído em desgraça acabou por perder o emprego. Neste momento, vive no carro, numa praça em Bastogne. Continua a mandar mensagens várias vezes por dia a ambas. Não, esperem… continua a mandar exactamente as mesmas mensagens a uma e a outra. Um perfeito anormal, é o que é.

Hoje, apesar do frio, decidimos aproveitar o sol que é tão raro por estas bandas. Pegámos nos miúdos todos e no cão, enfiámos umas galochas e fomos dar um longo passeio pelos bosques de Malempré. Passámos horas a dizer disparates e a rir. Falámos de coisas sérias e de parvoíces. Comentámos a roupa que eu devia usar na entrevista que tenho na 3ª feira e combinámos a que horas íamos pôr o carro dela no mecânico. Os príncipes encantados vão e vêm. E um dia tudo há-de ficar bem. Mas enquanto a minha amiga estiver a sofrer, eu rezo para aquele idiota não ter o azar de passar à frente do meu carro. Ou por trás. Que eu sou pessoa para me enganar sem querer nos pedais...

4 comentários:

  1. Passá-lo a ferro com o carro ainda é pouco!

    Lamentavelmente tenho uma amiga e colega de faculdade a quem sucedeu aparecer assim um animal desses... no entanto, ela engravidou mesmo sem querer e acabou por ter um menino lindo. A única coisa boa que veio daquela besta...

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  2. Esses tipos, desde o início aventureiros e agressivos, e que se auto-denunciam, não são os mais graves! Os que põem um ar de "cão abandonado", que levam a senhora a fazer todo o trabalho de os "formar" e continuam a parecer que eles estão só a "fazer um favor" e que só se desmascaram muitos anos (e muitos filhos) mais tarde, são bem piores... É que quem percebe (ou pensa que percebe), nem pode tentar ajudar, pois a "vítima" só percebe muitos anos depois. Chama-se a essa mudança de perspectivas "ganhar experiência".

    Portanto, a Christine até teve sorte. Imagina que só percebia passados 15 anos...

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