quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Um pedido de amizade no Facebook e um post antigo

(porque às vezes faz bem olhar para trás e ver o caminho percorrido)

 
Há uns dias atrás, aceitei um pedido de amizade no Facebook de uma velha amiga do meu pai, que mostra aquela doçura própria de quem me conheceu em criança e me vê, agora, já adulta e com filhos. Como é normal, percorreu o meu mural e deparou-se com um post escrito em 2011. Foi um texto que escrevi para o Diogo, na madrugada de 10 de Junho, por ocasião do seu décimo aniversário.

Não lia este texto há muito tempo e senti um choque quando o reli. A vida era outra, naquela altura. Estava prestes a celebrar 13 anos de casamento, com dois filhos maravilhosos. Estava em pleno processo de adopção de uma pré-adolescente por quem estávamos completamente enamorados. Trabalhava noite dentro a fazer tradução e legendagem, para poder dedicar o dia à família. Tínhamos uma vida simples, desafogada. Nada faria prever o desmoronamento que aí vinha. Mas, como canta o Sérgio Godinho, “Um dia – há sempre um dia – moeda ao ar, a cara e a coroa viram a sorte mudar”…

Passaram-se dois anos e meio. Tudo mudou. A nossa vida mudou. Eu mudei. Há apenas duas coisas que não mudaram. O Diogo continua o mesmo miúdo e eu continuo a mesma mãe. Mas mais felizes. Muito mais felizes e realizados. Ele porque encontrou finalmente um ambiente escolar que respeita e estimula a sua inteligência, com tantos amigos que já me perco nos nomes. Eu porque tirei a venda que tinha nos olhos e hoje encaro a vida de forma diferente. Porque cresci. Aqueles tempos foram felizes, sim, mas era uma “felicidadezinha”. Uma coisa poucochinha feita do ram-ram quotidiano e de ambições igualmente pequeninas. Eu tinha-me acomodado a uma “espécie de felicidade”. E era incapaz de ver que aquela não era a vida que eu queria de facto viver.

Reler este texto foi importante para mim por outro motivo. No momento em que a minha capacidade como mãe é posta em causa de maneira tão violenta, no momento em que o meu suposto desequilíbrio psicológico é usado como argumento para me ameaçar e amedrontar, eu leio um texto dessa época e continuo a rever-me nele. Tenho a certeza absoluta de que fui, sou e sempre serei a mesma mãe. O mais importante na minha vida são os meus filhos. Até que um dia tenham asas para voar e eu dê o meu trabalho por terminado. Tudo à minha volta pode mudar: o objectivo de vida, o país, o emprego, a estabilidade económica, o lazer, o coração… eu continuo a ser a mesma mãe. Não sou a melhor mãe do mundo. Não sou certamente a mãe que sonhava ser um dia. Sou a mãe que posso ser. Que sei ser. Mas mais feliz. Muito mais feliz e realizada.

 



 

 Eis o texto em causa:

O Diogo nasceu há 10 anos… há 10 anos?! Há 10 anos! Sinto que foi ontem. Nasceu quase sem batimentos cardíacos e não chorou. Quando o encostaram a mim, abriu muito aqueles olhos enormes e eu chorei. Senti que era Natal. Ainda hoje sinto quando olho para ele. Minutos mais tarde, ao ouvir a voz do pai pela primeira vez, o Diogo virou-se e fixou-o com uma expressão de reconhecimento. E nesse momento, juro, vi o amor acontecer.

O Diogo fez-me acreditar no transcendente. Há algo nele que está para além do meu entendimento. A forma como encara o mundo não pára de me surpreender. Tem um altruísmo, uma capacidade de empatia, uma inteligência para ver mais além. E uma resistência, uma resistência feroz. Tem 10 anos, mas tem a coragem de ser ateu. E sabe explicar porquê. É ateu após anos de visitas assíduas a igrejas onde mantinha grandes conversas com Deus, para nosso desespero que só queríamos fazer turismo.

Um não para o Diogo nunca é um não, nunca é definitivo. Nunca é uma porta que se fecha, é uma janela que ele tenta forçar. Um não tem de ser explicado, justificado, escamoteado, negociado até à exaustão. É a este lado negro da força que o Diogo vai buscar a sua energia. Consegue adquirir competências para fazer o que decide que deve fazer, no momento exacto em que decide que tem de ser feito. Começou a falar com 7 meses para dizer olá a quem passava por ele. Aprendeu a ler nos lábios sem dizer nada a ninguém, quando perdeu a audição aos 3 anos. Após o nascimento do irmão, aprendeu a ler sozinho porque percebeu que ninguém tinha tempo para lhe ler histórias e que a primária ainda estava longe.

Nunca disse mal da escola, apesar de ter apanhado mais professoras imbecis do que muita gente durante todo o seu percurso escolar, apesar de nunca terem respeitado a sua inteligência, apesar de ter sido obrigado a mudar de escola no último ano. Ao fim de meses seguidos de bullying, estranhámos vê-lo entrar na escola todos os dias com um sorriso. “Tenho sempre esperança que o novo dia seja diferente”, respondeu. Tinha um único amigo. Nesse dia, senti pela primeira vez na vida instintos assassinos.

Aprendeu a fazer amigos noutros sítios, em qualquer sítio. Anda no hóquei, na natação, no trompete. Gostava de tocar guitarra. Deixou agora os trampolins porque o tempo não é elástico. Porque para o Diogo o tempo é um conceito estranho, mutável. É capaz de demorar meia hora a calçar os sapatos e ainda diz que se despachou. Vai passear o cão de trela na mão e esquece-se de o levar. Mas nunca esquece um caminho.

Tem um saber livresco. Quando lhe pergunto “Sabias que…”, na maior parte das vezes já sabia. E ainda me ensina qualquer coisa de permeio. Lê três livros ao mesmo tempo a uma velocidade alucinante. Sempre à cata do erro, da incongruência. Anda com a “Mensagem” na mochila da escola. Escreve poemas e BD, apesar de desenhar muito mal. Ora quer ser cientista, ora historiador, ora educador de infância, ora arqueólogo. Professor e médico, nunca. Mas tem uma vantagem que a minha geração ainda não tinha: a cada nova profissão que surge, pergunta sempre primeiro se é rentável.

É um cinéfilo inveterado que só gosta de filmes para gente grande. E que não tem vergonha de chorar no escuro. Quando começou a falar de mulheres, levei-o a ver um documentário francês sobre o nascimento. Viu mulheres a parir durante hora e meia e só desviou o olhar quando sacrificaram uma cabra. Não conheço muitos homens que aguentassem. A conversa abrandou durante uns tempos, mas não há nada a fazer. O Diogo é um apaixonado por natureza. Espero sinceramente que ninguém lhe parta o coração.

Nos seus 10 anos de vida, já viu muitas crianças sem família invadirem a sua casa, brincarem com os seus brinquedos, usurparem o colo dos seus pais… nunca lhe ouvi uma palavra que fosse de desagrado. Nunca. É o mais entusiasta defensor da adopção que eu conheço. Embora deseje ardentemente ter mais um irmão bebé e saiba que ambos os projectos são incompatíveis. Porque o Diogo adora bebés e tem muito jeito. É verdade que adora o irmão mas odeia ser idolatrado, copiado, imitado. Nesta vida, em que todos somos tão iguais, há que manter a originalidade. E o Diogo é, de facto, único.

Este é o meu filho. O filho a quem dou os parabéns pelos 10 anos feitos hoje. O filho do meu tamanho, que entrou na idade em que os braços e as pernas ganham vida própria, mas que continua a pedir colo e mimo. E a dizer que me ama. O filho que entrou na idade em que tudo muda, mas que continua lindo. Os pais não costumam dizer estas coisas aos filhos, andam tão ocupados a tentar educá-los que se esquecem de os amar simplesmente. E eu sei que ralho, grito, castigo e até dou palmadas, mas eu não me canso de lhe dizer que o amo e que tenho um orgulho imenso em ser mãe dele. Dou-lhe os parabéns porque em 10 anos de vida se transformou numa pessoa maravilhosa.

 

3 comentários:

  1. Só tenho isto a dizer: cá de longe há alguém que a admira cada vez mais!

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  2. obrigada pelo(s) teu(s) texto(s)...
    (descobri que temos mais em comum que o gosto ou necessidade de escrever)
    algumas lutas deixam-nos mais fortes, ainda que as forças gritem por descanso, por vezes
    ...

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