terça-feira, 5 de maio de 2015

O homem da casa

(porque este fim-de-semana tive um momento de vergonha alheia

e fiquei a matutar nisto)


 

Se há praga que eu abomino é a noção machista de “homem da casa”, que infelizmente parece universal e intemporal. Não me estou a referir à figura masculina adulta, propriamente dita. No nosso caso, o meu amor… por oposição a mim, que sou a “mulher da casa”. Esta designação advém meramente do facto de sermos de sexos diferentes e de dormirmos debaixo do mesmo tecto, sem qualquer conotação social implícita. É um simples genitivo. Também não me estou a referir à população masculina que compõe uma família. Até porque eu digo muitas vezes “os homens da casa” ou “os meus homens”… mas, neste caso, é a denominação genérica dos habitantes de sexo masculino que comigo vivem.

Estou a falar da promoção quase imediata a “homem da casa” que os rapazes sofrem quando uma mulher fica sozinha. Noutros tempos, isto acontecia invariavelmente na sequência de uma viuvez. Hoje em dia, ocorre tipicamente na sequência de um divórcio. Independentemente da idade, a sociedade impõe de forma sistemática ao filho mais velho um novo papel de defesa da mãe e dos irmãos. De repente, a criança é investida de uma missão protectora. De rapazinho passa a guardião do clã. Pior, de filho passa a “chefe de família”. Dizem-lhe: “Tens de ser um menino crescido, tens de tomar conta dos manos”, “Agora és o homem da casa, tens de ajudar a mãe”. E de uma assentada só, rouba-se uma infância e subverte-se a relação mãe/filho.

Quando são pequenos, a coisa ainda escapa. É engraçado ver um rapazinho a proteger a mãe. É sinal de maturidade, de sensatez, de meiguice. Facilmente se perdoa um comentário mais autoritário, apenas porque tem piada. Porque parece um homenzinho. O problema é quando crescem, quando irrompem adolescência adentro numa posição de força completamente pervertida. Nessa altura, a mãe já não consegue ter a necessária e natural autoridade. Compreendo que seja prático ter um “homem” para mudar as lâmpadas, reparar a torneira que pinga, tirar as compras do carro, pendurar quadros na parede… Já para não falar que é reconfortante ter um ombro amigo com quem desabafar, mais que não seja da conta do telefone que deu cabo do orçamento do mês. Ou do último desgosto amoroso, em que o filho é chamado a dar opiniões sobre o que não lhe diz respeito. Mas este comportamento precocemente adulto e de pendor machista tende a descambar, mais tarde ou mais cedo. Um dia, o rapaz que a sociedade incentivou a tornar-se homenzinho cresce. E decide naturalmente assumir a posição de macho-alfa que dita as regras do clã. O filho deixou de ser apenas filho. O homem em construção transformou-se num macho. E, aqui, já não há volta a dar.

Tenho visto à minha volta os efeitos devastadores desta aberração arcaica. A minha amiga Christine queixa-se muitas vezes que o filho mais velho é adorado na vizinhança, mas que ninguém imagina como é tirano dentro de portas. É o reverso da medalha, invisível aos olhos do mundo que só tem elogios para o “homem da casa”. O miúdo de 17 anos é o “homem da casa” desde pequeno. Muito maduro para a idade, é bastante apegado à família. Extrovertido, tem conversa com toda a gente. É um trabalhador incansável, sempre pronto a ajudar a vizinhança. Ainda por cima, é mesmo prestável, vê-se que gosta de ajudar as pessoas a troco de um simples sorriso. Repara na perfeição qualquer objecto destrambelhado: bicicletas, motores de tractores, um armário partido. Tem umas mãos de ouro, sabe fazer tudo. Quando nos mudámos para Vielsalm, foi uma ajuda preciosa nas mudanças. Trabalhou no duro o dia inteiro e nem sequer aceitou que lhe pagasse. A custo, lá o convenci a deixar-me encher-lhe o depósito da mota.

Isto é o lado bom. O lado público, digamos assim, que é alvo de tantos elogios. Mas, depois, há aquele outro lado de machista emergente. Malcriado e displicente. Que dá ordens à mãe. Que é prepotente com a irmã mais nova. Que se pavoneia pela casa como se fosse o rei, a quem tudo é permitido. As saídas à noite, as bebedeiras esporádicas, as anedotas obscenas. Que tem sempre uma palavra de gozo, de desprezo. Humilhante. Que por vezes chega a roçar o agressivo. Mas, lá está, é o “homem da casa”. Ninguém duvida que adore a família, que protege de tudo e todos… excepto de ele mesmo. E de quem é a culpa? Dos vizinhos que elogiam a maturidade do “homem”? Da mãe que se ri para disfarçar o mal-estar, quando ele lhe diz que “pode meter a garrafa de cerveja onde muito bem lhe apetecer”? Da irmã que vai a correr buscar o telemóvel que ficou esquecido no quarto? De mim que prefiro virar costas e ir-me embora a pô-lo no lugar?

2 comentários:

  1. Abomino toda e qualquer forma de machismo, seja fora ou dentro de portas.
    E essa do "homem da casa" é das piores...

    Tal como a mim me disseram quando a minha mãe faleceu, que eu agora era a "mulher da casa"... e tive que ser... cozinhava, limpava, lavava roupa e louça...

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  2. Concordo contigo, Naná... o fenómeno da "mulher da casa" é tão mau como o do "homem da casa". De qualquer modo, são ambos sinais de machismo prepotente. :(

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