sexta-feira, 19 de junho de 2015

O meu violinista

(mais uma audição e uma viagem pela memória)


 

Há tanto tempo que assisto a audições de violino do Vasco, que já lhes perdi a conta. Da primeira, lembro-me perfeitamente. Tinha apenas 3 anos e foi difícil convencê-lo a subir ao palco sem chucha. Era um bebé de jardineiras, que se enganou uma série de vezes. Nunca perdeu a compostura ou a boa-disposição. Estava feliz da vida, descontraidíssimo. Arrancou gargalhadas da plateia, quando disse “Ahhh… vou fazer do início!”. E recomeçou a tocar, desta vez quase sem se enganar. A vénia final foi perfeita.

Não encarno bem o papel da típica mãe de meninos-prodígio. Nunca vou para lá de máquina em punho, completamente embevecida. Sou muito crítica, acho sempre que ele podia fazer melhor. E esqueço-me invariavelmente da máquina, claro. Gosto de lhe prestar atenção. As poucas fotografias e vídeos que tenho devo-os à Ana, a primeira professora do Vasco que deixou tantas saudades. Ou ao meu amor, desde que entrou nas nossas vidas. Ele, sim, faz questão de ostentar o seu orgulho.

Não sei porquê, mas sinto que estes momentos são especiais. Que são só nossos, do Vasco e meus. Ele olha para mim, eu sorrio e pisco-lhe o olho. E ele começa a tocar. É o nosso ritual desde sempre. Não que ele precise, nunca o vi nervoso em palco. O Vasco é daqueles miúdos que brilha, mesmo que as coisas não corram lá muito bem. Vê-se que está ali para se divertir, que o violino é uma fonte de alegria. Antes de mais, o violino é uma extensão do corpo do Vasco, que não tem quaisquer memórias de uma vida anterior ao seu instrumento. Há sempre muitas lágrimas quando é preciso abandonar um violino que ficou demasiado pequeno.

Desta vez, a coisa era um bocadinho mais séria, já que se tratava também de um exame final de ano. Nem sequer me lembrei que era público. Quando lá chegámos, comecei a olhar em volta e ia morrendo de vergonha. Era só meninas de vestido de cerimónia. Todas bem penteadas e cheirosas. O único rapaz presente, bastante mais velho do que o Vasco, era o típico intelectualóide, sério e compenetrado. Limpinho. De óculos e cabelo à totó. E, depois, havia o Vasco... acabado de chegar do recreio da escola. Calções de ganga rasgados e t-shirt preta do Batman. Ténis-bota estilosos completamente imundos. Todo suado. A cara suja de chocolate. O cabelo em pé, cheio de remoinhos. As mãos a colar, com umas unhas nojentas…

Pela primeira vez, havia outras crianças antes do Vasco. Apesar de ainda ser dos mais pequeninos, já está no segundo ano do conservatório. Enquanto as meninas perfeitas se sucediam em palco, eu tentava ferozmente limpá-lo com o velho método infalível das mães: o cuspo. Não resultou tão bem como de costume, infelizmente. Subiu ao palco com andar gingão e sorriso triunfal. Vê-se que gosta daquilo. Fizemos o nosso ritual. Ele tocou bem, mas podia ter tocado melhor. Esqueci-me da máquina. Ah… e chorei, claro. Comovo-me sempre quando o vejo ali, com aquela alegria toda dentro do peito. Talvez porque me lembre daquela primeira audição tão ternurenta. Talvez porque me lembre do carinho com que a Ana o ensinou a tocar, num instrumento minúsculo. Talvez porque me lembre do pânico que senti, logo a seguir à separação, quando percebi que não ia ter dinheiro para continuar a pagar as aulas. Talvez porque me lembre da fúria com que me bati, neste país, para o deixarem começar a ter aulas de violino antes da idade regulamentar. Talvez porque o Vasco toque com uma felicidade tão genuína que comove, porque se transfigura. Talvez porque os violinos têm crescido com ele e, quando penso que já vamos no quarto, tenho a certeza de que estou a assistir a uma relação única, entre um menino e o seu instrumento, que durará uma vida. Não tenho dúvidas de que a melhor coisa que fiz por este meu filho foi ter percebido precocemente que ele precisava de música para ser feliz.

  O bebé Bá e o seu violininho.



  Cinco anos depois, muito nervoso a preparar mais uma audição...

7 comentários:

  1. É maravilhoso! Muitos Parabéns!

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    1. Obrigada. É muito fofinho, sim, ddm! Vá... e eu sou uma mãe babada!

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  2. Obrigada, Paula! Mas olha que eu não conto para nada nesta história, não tenho ouvido nenhum para a música e nem sequer sei tocar ferrinhos! :)

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    1. Exacto, Gralha! Mesmo a tocar, não perde o ar matreiro... ;)

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  4. Oh pá derreti!

    Como é que tu não tiraste uma foto desse momento??? Nem com o telemóvel?!

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  5. Sou uma desgraça, Naná! Quando pedem para desligar os telemóveis, eu desligo mesmo... depois, já não dá para tirar fotos. Bah! :(

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