terça-feira, 16 de junho de 2015

Vampiros

(porque, no fundo, a causa só serve para os alimentar)


 

Não sei bem que nome dar a este tipo de pessoas. Não são bem pessoas, são uma espécie de vampiros. Em francês, chamar-lhes-ia personnes engagées, que é bastante explícito. Assim, à falta de melhor, digamos que são “pessoas de causas”. A verdade é que a causa em si é pouco importante. O que interessa mesmo é estar comprometido com uma causa, seja ela qual for. Uma luta. Preferencialmente uma luta que ainda não tenha muitos simpatizantes, pouco popular. Uma luta difícil. Uma razão de vida. Que se impregne até ao âmago do ser. Que condicione toda a existência. Que se torne tão essencial como o ar que respira.

Estas pessoas costumam herdar as suas causas por via familiar, sem grandes questionamentos. Mais tarde, exactamente porque cresceram no meio da luta, tendem a transmitir os ensinamentos incutidos à progenitura, como se de um legado familiar ancestral se tratasse. Um modo de vida indiscutível. Mais do que a causa propriamente dita, o que transmitem é um esquema de pensamento pré-formatado que os ensina a debitar, não a pensar. Porque desde o berço vêem touradas e não concebem outra forma de entretenimento. Porque cresceram no seio de uma seita religiosa e só aprenderam a falar essa linguagem. Porque nunca comeram carne e hoje são incapazes de comer mel para não explorarem as abelhas.

As pessoas de causas agarram-se à sua luta como se fosse uma muleta. Uma muleta, não. Uma prótese. Às tantas, já faz parte do corpo amputado, mutilado. Entranhou-se nos pensamentos, nos actos, no discurso, no dia-a-dia poucochinho. E, uma vez criadas raízes, precisa de se expandir. O problema é que o resto dos mortais, estranhamente, parece conseguir atravessar a vida sem precisar de outros acrescentos, para além da sua própria cabeça livre-pensante. Ora isto é um problema grave. Gravíssimo. Felizmente é grave, mas não insolúvel. Porque as pessoas de causas têm a capacidade de farejar os fracos à distância. Os cobardes. São como aqueles predadores que caçam em solitário, ao entardecer. Aqueles caçadores pacientes que aguardam o momento em que os animais saem das tocas para se alimentar e o mais fraco se afasta do grupo. Nesse momento, saltam lá do meio da vegetação onde estavam escondidos e apanham o elemento frágil, que será rápida e facilmente convertível. Porque as pessoas de causas gostam muito de ajudar os desprotegidos.

Mas não vamos confundir as coisas. As pessoas de causas gostam de liderar, não são os líderes. Seguem escrupulosamente o caminho da luta, arquitectado por alguém mais inteligente. Tipo o Deus das Causas Várias. Há quase sempre um dogma qualquer predefinido algures. Um livro que encerra toda a sapiência do mundo, uma filosofia de grupo bem balizada, uma definição que é preciso pregar. Ou seja, precisam sempre de um guru que lhes dê o mote e de um aprendiz para os secundar. Mais um bando de acólitos menores para dar crédito à causa. É por essa razão que os podemos encontrar frequentemente reunidos em grupos. Os famosos grupos de apoio. Movimentos de apoio às vítimas e seus familiares. Movimentos de apoio aos doentes disto ou daquilo. Movimentos religiosos, políticos, comunitários, clubísticos… É graças a estes grupos que as pessoas de causas garantem a sua permanência na luta. Porque, mesmo que um dia o motivo que os levou a consagrarem-se à causa se extinga, podem continuar a lutar no seio do grupo, passando de vítimas a testemunhas, a padrinhos, a colaboradores... E, assim, acabam por desvirtuar por completo o movimento em questão, que muitas vezes congrega pessoas que se dedicam verdadeiramente a defender uma causa justa.

O que diferencia as pessoas de causas das pessoas que, generosamente, abraçam causas é que as primeiras vivem para lutar e as segundas põem a vida ao serviço de uma determinada ideia em que acreditam. Uns são completamente irracionais; outros, lúcidos. Uns são desequilibrados; outros, perfeitamente sãos de espírito. Mas os vampiros esgotam-se na militância feroz, na conversão dos outros. A causa em si não tem qualquer importância para eles. Aliás, por vezes, acabam por abandonar a luta em prol de outra melhor. E depressa deixam de pregar uma verdade, para pregar outra. Afinal de contas, o que interessa é pregar.

Talvez seja mais fácil perceber a devastação que uma pessoa de causas consegue fazer à sua volta se eu der um exemplo fictício. Imaginemos a A e B, ambos divorciados e com filhos de anteriores casamentos. A, uma pessoa de causas, quer converter B, o elemento fraco. Não lhe basta ser apenas A + B, deseja claramente uma fusão AB. A forneceria o motor da relação, B a carroçaria. Infelizmente, B não parece interessado na causa de A. O problema é que A cresceu como uma pessoa de causas, não consegue libertar-se do esquema mental castrador que lhe foi incutido na infância. Não consegue abandonar a sua prótese, apesar de já não precisar dela. A única solução possível é, então, abraçar uma nova causa passível de interessar a B. Na qual, com um pouco de esforço, B se reveja.

Suponhamos que A escolhe a causa da alergia ao glúten, tão em voga. É uma causa nova, perfeitamente justa, algo desconhecida, mas com um número de adeptos crescente. Os filhos de A passam de imediato a ser alérgicos ao glúten, oferecendo-lhe entrada directa no “Grupo de apoio aos pais de crianças alérgicas ao glúten”. E por que razão A escolheu os filhos como vítimas-alvo e não a sua própria pessoa? Porque as crianças são mais facilmente manipuláveis do que os adultos (principalmente se também tiverem crescido na luta), sendo por isso simples fazer aparecer falsos sintomas de alergia. Por outro lado, os pais de crianças que padecem de um problema são não apenas vítimas, como também mártires. Vai-se a ver, esta segunda causa até se revela bastante melhor do que a primeira. Há aqui luta para uma vida inteira e mais além. Por extensão, os filhos de B também têm de passar a ser alérgicos, embora nunca tenham mostrado quaisquer sintomas. É aqui que entra em campo o discurso sectário de A, bem polido ao longo dos anos, e a tendência para ser um pau mandado de B. Em breve, teremos duas pessoas unidas pela luta, várias crianças supostamente vítimas de um sintoma qualquer contra o qual é preciso concentrar esforços e diversas pessoas à volta convencidas de que têm o dever de se unir a esta causa para defender as pobres crianças. Está montada a guerra. Ah… e temos também C e D, os outros pais das crianças alérgicas, claramente torturadores porque lhes continuam a dar glúten.

Agora, imaginemos que D fica farto deste clima e decide capitular, entrando em contacto com B e deixando de dar glúten aos filhos só para tentar evitar que dêem todos em doidos. Antes glúten free que esquizoides. O que pensam que aconteceria? Obviamente A entra em pânico porque receia que B perceba a cabala. Lá está... o perigo não é perder a causa em si (neste caso, bem vistas as coisas, até seria ganhar). O maior risco é perder a razão de vida, a devoção a uma luta eterna maior do que todos os envolvidos. Um pouco como um soldado a soldo, que luta ao lado de quem pagar mais. Mas que tem de lutar, porque não sabe fazer mais nada na vida. Parar é morrer.

4 comentários:

  1. Respostas
    1. Alguns, a minha sorte é que sou imune e não lhes ligo nenhuma... o que os deixa profundamente enfurecidos.
      Outras vezes divirto-me a destruir os argumentos deles e deixá-los desarmados... mas isso é quando me apetece perder tempo... ahahahahah

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  2. LOL! :)

    Sim, se há coisa que deixa este tipo de gente perfeitamente enfurecida é a ignorância e o desprezo. Mas é tudo o que merecem, infelizmente.

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