quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Podia ser eu, podíamos ser nós

(porque até para nascer é preciso sorte)


 

Vivi a semana que passou numa espécie de nuvenzinha de felicidade. Posso dizer, sem sombra de modéstia, que estava toda ufana. Verdadeiramente orgulhosa da minha pequena pessoa. Consegui cumprir o objectivo a que me propus há três anos atrás, quando cheguei a este país.

Inscrevi-me na Commune de Manhay no dia 28 de Agosto de 2012, iniciando o pedido de autorização de residência na Bélgica. Foi um processo longo e moroso. Não tinha nada a meu favor. Emigrei sozinha, sem familiares por perto. Aluguei uma casinha totalmente vazia numa aldeia perdida nas Ardenas, que não fazia ideia de como iria conseguir pagar. Não tinha emprego. A minha conta bancária não me dava grande margem de manobra. Trazia comigo dois filhos de 11 e 5 anos que não falavam a língua. Embora tivesse a autorização paterna, a guarda não estava legalmente definida.

O meu dossier era complexo, do ponto de vista burocrático. Eu não reunia nenhuma das condições exigidas pela Administração. Mas tive a intervenção divina da fé humana, por assim dizer. Tive um bocadinho de sorte e, principalmente, as pessoas certas à minha volta. Pessoas boas. Gente que acreditou em mim e que decidiu fazer o que estava ao seu alcance para me ajudar. Um conjunto eclético de pessoas que fez toda a diferença. Não tenho qualquer dúvida de que foi o factor humano que fez a balança pender para o meu lado. Para o nosso lado. Quando tudo o resto falha, só a humanidade nos salva. A solidariedade.

O primeiro amor de adolescência que me surpreendeu no aeroporto, quando aterrei neste país completamente perdida com duas crianças pela mão e uma mala imensa. A família do coração, que me deu guarida inicialmente e me ajudou a encontrar casa. Vizinhos-que-depressa-se-transformaram-em-amigos, que a vida se encarregou de pôr no meu caminho no momento em que mais precisava. Que durante meses apareceram lá em casa, às horas mais estranhas, com móveis e comida e recortes com ofertas de emprego e tarecos vários. Profissionais que generosamente ofereceram muito mais do que o seu profissionalismo. Com a distância dos anos, pode parecer irrisório a quem nunca passou por esta reconstrução de vida. Pela parte que me toca, sei que tenho uma dívida de gratidão para com todas estas pessoas. O garagista que me emprestava o carro sempre o velho Saxo avariava. Os professores e funcionários da escolinha de Malempré que receberam os meus filhos com um afecto sincero. O agricultor que tantas vezes me tirou da neve com o tractor. A proprietária do albergue que me deixou lavar lá a roupa, enquanto não tive dinheiro para comprar uma máquina. O professor de trompete que dava aulas ao Diogo em nossa casa para me poupar um trajecto semanal. O advogado sui generis, que esperou eu arranjar emprego para lhe pagar. A funcionária da secundária de Spa que aldrabou a papelada para eu receber os primeiros salários na conta de uma vizinha, até ter os meus documentos em ordem. A vizinha que adiantava o ordenado uns dias sem que eu soubesse. O médico de família que me confortava dizendo que todas as maleitas de que padeci no primeiro Inverno mostravam que o físico era mais frágil do que o psicológico, mas que o segundo haveria de ganhar. E que desencantava sempre amostras de medicamentos para eu não gastar dinheiro.

E a pessoa mais especial de todas. A senhora encarregue do serviço de estrangeiros da Commune de Manhay, que moveu mundos e fundos para eu obter a autorização de residência neste país, contra todas as expectativas. Que foi arranjando maneira de ir adiando o processo até eu conseguir reunir todas as condições necessárias. Que celebrou cada nova conquista connosco. E que me telefonou num dia de folga a dar a boa notícia. O pedido de residência tinha sido aceite. No fim, pediu-me que aguentasse três anos. Os três primeiros anos. O período mais difícil para um emigrante. Depois, seria uma cidadã de direito próprio, com acesso a todas as ajudas sociais que qualquer belga pode usufruir no seu país. Depois, já me podia acontecer qualquer coisa na vida, que nunca mais ficaria “sem rede”. Eu e os meus filhos. Prometi-lhe que iria conseguir, que tivesse confiança em mim. Em nós.

No dia 28 de Agosto de 2015 fui à Commune de Manhay. Assim que me viu, fez-me um sorriso enorme. Ralhou comigo por não ter dado mais notícias, desde que nos tínhamos mudado para a Commune de Vielsalm. Mas que sabia por portas e travessas que estava tudo bem. E eu anunciei orgulhosa que o prazo inicial de três anos tinha finalmente terminado. Que tinha conseguido. O contrato de trabalho efectivo. A guarda definitiva dos miúdos, que estavam perfeitamente adaptados e felizes. Que pareciam outros. O meu amor, que entrou nas nossas vidas quando este longo processo terminou. E que aqui continua. A casa dos meus sonhos. Uma vida nova. Consegui construir uma vida nova neste país, que me acolheu há três anos atrás, onde me sinto muito mais realizada. Ela voltou a sorrir e deu-me os parabéns. Disse que é sempre bom ver histórias com um final feliz. Que infelizmente nem sempre é possível. Que ultimamente, com a quantidade de refugiados que esta zona tem recebido, tem sido muito complicado de gerir. Há vidas miseráveis, pelas quais ela nada pode. O sorriso desapareceu. Deu lugar a um olhar triste. Indicou-me discretamente com o queixo um cantinho da sala onde aguardavam umas quantas pessoas negras. Na minha altivez, nem as tinha visto. E senti-me envergonhada. O orgulho desvaneceu-se. Podia ser eu. Podíamos ser nós.

A vaga de pessoas que arrisca a própria vida e a dos filhos para tentar romper as fronteiras bem estabelecidas e confortáveis desta nossa velha Europa já não é apenas constituída por refugiados de guerra, como antigamente. Mas são refugiados políticos, sim. De séculos de políticas ocidentais de exploração mercantilista. São refugiados da pobreza, das condições mínimas de vida. São refugiados da fome. Da ausência de cuidados médicos. São refugiados da falta de oportunidades. Do desemprego. Da privação do direito à escolaridade. Do desalento. São refugiados iguais a mim, que em desespero de causa também arrastei os meus filhos para esta aventura sem ter um plano B. Apenas com a convicção profunda de que os nossos destinos não estão escritos à partida. De que todos temos direito a uma vida melhor, seja lá onde for. Esteja ela onde estiver. E de que a minha obrigação como mãe era lutar para lhes conseguir garantir um futuro melhor. É tão simples quanto isto. A única diferença é que eu tive a sorte de nascer num cantinho na Europa. Pude pegar no meu carro e partir. Enviar os meus filhos na segurança de um avião. A única diferença é que os meus pais puderam oferecer-me um ensino universitário que me permitiu arranjar um emprego em pé de igualdade com qualquer belga. Tive sorte. Sorte à nascença e sorte à chegada a este país. Acredito que todas as pessoas fantásticas que me ajudaram a mim, individualmente, nos confins das Ardenas belgas, teriam ajudado qualquer mãe sozinha com dois filhos. Uma mãe síria, egípcia, eritreia, afegã. Uma mãe qualquer. Mas também acredito que ninguém teria ajudado milhares de portugueses que aqui desembarcassem de repente. Porque não nos iludamos, desde que a crise nos bateu à porta, os portugueses também têm estado a emigrar em massa para o estrangeiro. É a debandada. Já não “dão o salto” como nos anos 60, porque deixou de haver fronteiras. A nossa sorte – a sorte dos milhares que anualmente saem do país – é que nos vamos espalhando e diluindo no tecido europeu. A nossa sorte é que somos todos brancos, vestimo-nos “à ocidental” e temos facilidade em aprender novas línguas. A nossa sorte é que somos uma nação de emigrantes com uma capacidade de adaptação e integração fora do comum. Ninguém dá por nós. Mas se fôssemos milhares a acossar os muros de arame farpado que vão crescendo para proteger a tranquilidade europeiazinha também seríamos corridos a jactos de água. Podia ser eu. Podíamos ser nós. Essa é a vergonhosa constatação que tiro de ter orgulhosamente alcançado a plenitude dos meus direitos de cidadã a viver na Bélgica, ao fim de três anos de camuflagem e solidariedade.

6 comentários:

  1. Só para dizer que não sei o que dizer... e isso é dizer muito, porque eu raramente fico sem palavras...

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    1. Mas esta é mesmo uma daquelas situações em que as palavras não conseguem exprimir o que nos vai na alma, Naná.

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  2. Também eu, nas últimas horas e depois de ler tanta declaração, tanto post, começo a não saber como me devo pronunciar...Vemos o desespero de quem quase entrega os filhos às águas, pressentimos histórias medonhas, depois ouvimos o silêncio de alguns líderes europeus ou mesmo de um Obama que. lá longe, parece nada ter a ver com estas vidas... Mas como esquecer as vezes em que descalçámos sapatos ou despejámos a água das garrafas para entrar num avião porque havia o perigo de alguém ameaçar o mundo com um ar dito "normal"? Eu, que sempre achei que pertencia ao grupo dos que a ajudaram nessa aldeia perdida? E que sinto vergonha pelos que assinam petições para , à semelhança do que aconteceu com os aterros sanitários, se afirmarem a favor mas à distância... O que sei é que, pelo que tenho lido neste espaço, o seu caminho merece o patamar a que chegou! E escrevo patamar porque, daqui para a frente, é sempre a subir...

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  3. Eu entendo o que quer dizer, Mariana. É impossível não pensar nos cristãos lançados ao mar, na comida rejeitada só porque tinha a cruz da Cruz Vermelha, nas violações de mulheres cristãs nos campos de refugiados, nos 90% de homens... É uma situação muito complexa. Não é fácil separar o trigo do joio. Ninguém tem soluções milagre. Mas, em última análise, são seres humanos. Homens, mulheres, crianças que merecem ser ajudados. Primeiro, a ajuda. Primeiro, a humanidade. Depois, se tratará do resto.

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  4. O facto de haver (e haverá sempre) terríveis injustiças no mundo não deve, ainda assim, impedir-nos de celebrar as nossas vitórias. Parabéns por mais esta, muito merecida. E que as vitórias nos dêem gratidão e não nos retirem a empatia por aqueles que ainda têm muito que lutar.

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  5. Obrigada, Gralha. Também acho importante que as vitórias e a gratidão andem a par e passo.

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