quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

O bebé tóxico volta a atacar

(onde se percebe o verdadeiro significado da palavra “solidariedade”)



No primeiro réveillon que passei na Bélgica, a minha “mãe belga” desafiou-me a fazer voluntariado numa das muitas festas que há por aqui para a franja mais pobre da população, que nunca tem oportunidade de festejar com pompa e circunstância. A ideia fazia todo o sentido, nunca dei importância à passagem de ano. Detesto aqueles ambientes festivos onde se esbanja alegria por obrigação. Acabei por ficar a assistir aos fogos-de-artifício em Malempré, pois inscrevemo-nos demasiado tarde, quando já não era preciso mais voluntários. Decidimos que ficaria para o ano seguinte… Mas, em 2013, o meu amor fez-me uma visita surpresa e acabámos por improvisar um réveillon romântico na cidade do Luxemburgo. Nessa época, aproveitávamos ao máximo o pouco tempo que tínhamos. Em 2014, o projecto de voluntariado foi mais uma vez adiado, visto estarmos com os miúdos na passagem de ano, em Portugal.
Este ano, pensei que finalmente ia conseguir ter um “réveillon solidário”. O meu amor também pouco liga à data e gostou da ideia. Entretanto, começámos a pensar… Parece sempre mais fácil estarmos disponíveis para os de fora. Na ânsia de ajudar, de sermos solidários, de nos dedicarmos aos outros, esquecemo-nos muitas vezes dos nossos. Por que raio haveríamos de ir à procura de uma passagem de ano onde a nossa presença fosse útil, se tão pertinho de nós temos família onde toda a ajuda seria bem-vinda?

Eis-nos, então, no último dia do ano, a caminho da Holanda… com bolo-rei e vinho português desencantados no Luxemburgo, como bons emigras. A bem dizer da verdade, o meu amor é uma espécie de emigra honorário. E suponho que eu já seja um bocadinho belga, porque levei também uma caixa de chocolates e cerveja cá da terra. Passei a meia-noite com o meu sobrinho ao colo, a ver os fogos-de-artifício improvisados em Amesterdão. Na Bélgica também há este hábito de fazer fogo-de-artifício e lançar foguetes por todo o lado, mas na Holanda a coisa atinge níveis de verdadeira apoteose. Casa sim, casa sim, havia um autêntico espectáculo pirotécnico. Do sótão de casa do meu irmão, 180º à nossa volta, assistimos em primeira fila a uma explosão de cores que durou mais de uma hora. Lamento não ter registado o momento, mas não consegui largar o bebé mais fofinho do (meu) mundo.
No dia seguinte, o jovem casal pisgou-se mal teve oportunidade. O meu amor, ainda nem tinha bem aberto os olhos, já tinha um ser ranhoso a babar-lhe os pés. “Pensava que eles só fossem sair quando o bebé estivesse a dormir”, murmurou enquanto construía rapidamente um perímetro de segurança. Explicou-me que não queria contagiar o bebé porque estava constipado. Encolhi os ombros e respondi-lhe que o Luca estava bastante mais constipado do que ele. “Vai dar ao mesmo”, contra-argumentou. Percebi que meses depois da última visita, os níveis de toxicidade da pequena criatura tinham aumentado exponencialmente. Achei melhor não lhe dizer que seria praticamente impossível conseguir evitar durante um dia inteiro um bebé que já gatinha…

Enquanto preparava o almoço do bebé, pedi-lhe que deitasse só um olhinho ao Luca, que andava por ali em plena exploração. Passado um bocado ouvi-o bater com a mão no sofá e chamar: “Aqui! Aqui!”. O cãozarrão da casa atravessou a sala num pulo e lançou-se para cima do sofá. Mas o meu amor continuou a chamar. Depois, passou para o inglês. Em desespero de causa, ainda tentou o holandês. “Estás a tentar chamar o bebé?”, perguntei a medo. “Sim, falei nas três línguas mas ele não me obedece. O cão veio logo à primeira, viste? Acho que eles estão a fazer um trabalho melhor com o cão do que com a criança…”. Aconselhei-o a chamar a atenção do Luca com um brinquedo. “Qual brinquedo?! É só porcarias de madeira, parece que regressámos aos anos 70! Não vejo aqui nada que apite ou com luzes…”
Não encontrei nenhum babete seco, por isso pedi-lhe que me trouxesse um pano de cozinha limpo. Muito desenrascado, informou-me que não era preciso pois tinha uma técnica infalível. Com a ponta dos dedos, encheu rapidamente a gola do miúdo de Kleenex. Claro que o Luca passou o resto da refeição a tentar tirar aquilo com as mãos todas babadas e, passado um bocado, já estava a comer uma miscelânea de sopa e papel. O meu amor deitou-lhe um olhar profundamente enojado e comentou: “Este bebé é um bocado porco, não é?”.

Depois de me debater com um miúdo a fugir para mudar a fralda e a gritar desalmadamente mal me aproximava da cama, achei melhor capitular. Agasalhei-o o melhor que pude, enfiei-o no carrinho e fomos para a rua. Ainda não tínhamos chegado ao primeiro canal, já o Luca dormia a sono solto. Andámos por ali às voltas durante quase duas horas, numa sesta improvisada. Eu empurrava o carrinho, o meu amor ia a reboque com o cão. Andámos quilómetros sem ver um café, uma loja, uma escola. Só casinhas todas iguais, parques infantis vazios e água a perder de vista. Duvido muito que aguentasse ficar fechada em casa com um bebé meses a fio, como a minha cunhada, num ambiente daqueles... Tudo tão frio, tão cinzento, tão mortiço.
O Luca abriu os olhos (e as goelas) quando estávamos de regresso a casa. Apanhei o meu amor distraído e passei-lhe o bebé para o colo, sem lhe dar tempo de protestar. Nunca pensei sentir saudades das papas em pó dos meus filhos. Fazer o lanche do meu sobrinho foi o cabo dos trabalhos: preparar o leite de aveia, aquecê-lo ao lume (aparentemente os micro-ondas são tão nocivos como os brinquedos modernos), misturar uns farelos e esperar que engrossasse... O meu amor continuava exactamente na mesma posição em que o tinha deixado: sentado muito direito no sofá, com o Luca empoleirado na beirinha dos joelhos, agarrado por apenas dois dedos. De vez em quando, dizia-lhe: “Chiu! Pouco barulho! Já vai comer!”. Contrariamente ao que eu esperava, aquele tratamento distante deu resultado. O bebé deve ter-se sentido tão intimidado que se esqueceu de chorar.

Depois de devorar uma pratada de papa em menos tempo do que eu tinha demorado a prepará-la, o Luca decidiu que estava na altura de tentar conquistar o adulto receoso. Fez-lhe olhinhos com a cabeça de lado, caretas, gracinhas, fingiu vergonha e desviou a cara, disse-lhe “olá”… Nada. O meu amor continuava a olhar para ele desconfiado, desviando discretamente as pernas quando tentava apoiar-se para se conseguir levantar. Por fim, suspirou e disse-me: “Acho que a criança tem um problema qualquer, está sempre a olhar para mim de lado. Nem sequer brinca sozinho. O cão entretém-se muito melhor, não achas?”. Repeti-lhe meigamente que os bebés não são tóxicos, que o Luca só estava a tentar interagir com ele. Vi-lhe o primeiro sorriso aberto do dia (o segundo foi quando os pais chegaram). “Hum… então, é uma espécie de interacção… Olha, pensei que o miúdo estivesse mesmo com algum problema”, respondeu-me aliviado.
No final do dia, a boa-disposição deu lugar à birra de sono. Nenhum daqueles brinquedos de madeira parecia interessá-lo. Seguiu-se uma mudança de fralda fedorenta que exigiu dois pares de mãos, pois o Luca decidiu brindar-nos com um chichi quando estava de rabo ao léu. O meu amor demorou a perceber o que era um body e conseguiu revirar o armário o miúdo de pantanas. Uma hora de brincadeira – que consistiu basicamente em empurrar muito devagarinho o triciclo (de madeira, pois claro) que induziu uma espécie de transe de sonolência – e estava novamente na altura de comer. “Parece que o miúdo está sempre a enfardar. Come mais que eu, caraças!”, espantou-se o meu amor. Desta vez, felizmente, o babete já estava seco e correu tudo bem.

No final do jantar, recebo uma mensagem da minha cunhada a dizer que a segunda sessão de cinema tinha acabado e que já estavam a vir para casa... a pedalar (ou não estivéssemos nós na capital da bicicleta). Decidi começar a dar banho ao bebé para o entreter mais um bocado. Desconfiado de que eu ainda lhe podia pedir novamente para pegar na criatura tóxica, o meu amor decidiu preparar o banho. Aproveitei para deixar o bebé de molho na banheira dele com água muito quente a correr para ver se desentupia aquele nariz. Mal o tirei da água, recomeçou a choradeira. Foi uma aventura vesti-lo. A minha cunhada pôs o muda-fraldas no chão, o que incentiva a fuga. Quando finalmente descemos com o Luca dentro do saco de dormir (numa tentativa vã de lhe limitar os movimentos), estávamos ambos completamente exaustos. O bebé é que nem por isso. O meu amor teve o seu primeiro rasgo de genialidade pedagógica infantil e lembrou-se de pôr uns vídeos no YouTube com genéricos de desenhos animados da nossa época, que fariam chorar as pedrinhas da calçada. O Luca não chorou, mas ficou sossegadinho no meu colo. O Belga ficou a uma distância segura a agarrar no computador com ambas as mãos, não fosse o diabo tecê-las. Acho que nunca fiquei tão feliz na minha vida por ver o meu irmão aparecer passados uns longooos minutos.
Voltámos a ir para a cama cedo… para quem estava de férias de filhos, bem entendido. E voltámos a dormir mal, porque o bebé se fartou de acordar durante a noite. De manhã, vi o meu amor emergir das trevas como se fosse um morto-vivo. A minha cunhada mal nos viu, perguntou a que horas nos tencionávamos ir embora. Respondemos que estávamos a pensar arrancar de imediato, ainda queríamos dar uma voltinha no centro. A menos que quisesse que ficássemos com o bebé mais um bocadinho, para ela fazer qualquer coisa. (Isto fui eu que disse, o meu amor até me ia fuzilando com o olhar.) Nem uma, nem duas, eis a Elke novamente montada na malfadada bicicleta rumo sabe Deus onde. “Voltámos à estaca zero, certo? Vai recomeçar o martírio todo outra vez, não é?”, perguntou o meu amor à beira do desespero. Pedi-lhe mil desculpas, elogiei-lhe o esforço sobre-humano e aproveitei para recordar que aquele era o nosso “réveillon solidário”. Grunhiu-me que a nossa boa acção já durava há três dias, visto estarmos a 2 de Janeiro. Que no dia seguinte tínhamos que ir buscar os nossos ao aeroporto. Que aquilo não era solidariedade, era um trabalho a tempo inteiro. Do mais estafante que ele já tinha visto na vida. Muito pior do que os turnos que fazia na Marinha. Larguei a rir à gargalhada. Os meus filhos só foram para a escola aos dois anos. Durante o primeiro ano de vida do Diogo escrevi uma tese de mestrado. E, quando o Vasco era bebé, voltei à vida de freelancer com a tradução e legendagem. O meu amor ficou a olhar para mim de olhos muito arregalados. Nunca em três anos de namoro vi tamanho olhar de admiração. Não se voltou a queixar. No último dia, ainda mantinha a distância de segurança da criatura radioactiva, mas já empurrava o carrinho pelas ruas cinzentas e mortiças de Amesterdão. Escusado será de dizer que não chegámos a ir beber um copo ao centro. Mas foi uma boa maneira de começar o ano.

6 comentários:

  1. De repente voltei vários (muiiiitos) anos atrás, comemorados para a semana:Holanda, Haia, uma semana em casa de um casal de primos com um bebé de 8 meses, mãe a tempo inteiro cheia de teorias...Com o meu marido a ficar em Amsterdão num curso, resolvi oferecer-me para babysitter por uma noite para o casalinho poder gozar uma noite out . Claro que aproveitaram! E eu, já mãe de uma miúda, com muita prática com crianças, estive quase para ir pela cidade fora para lhes entregar o miúdo loirinho e gorducho onde os encontrasse pois o petiz não parou de chorar durante horas, fitando-me com ar aterrorizado! Claro que não lhes contei a verdade mas acabou-se a boa vontade para proporcionar umas horas de namoro...

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  2. Coitadinho! Eu fiz muito babysitting quando estava na faculdade e tenho algumas histórias pavorosas... :( Há de facto fases mais complicadas, quando estão naquela idade em que já percebem alguma coisa, mas ainda não se lhes consegue explicar nada.

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  3. Estão a fazer um trabalho melhor com o cão - HAHAHAHAH!

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    1. Não deixa de ser verdade, o cão é mesmooooo bem educado! :)

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  4. Se isto não é solidariedade, não sei o que será :D

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    1. É sem dúvida uma enorme prova de amor ao próximo e de abnegação, Gralha! ;)

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