sábado, 16 de janeiro de 2016

Karma lixado ou lei de Murphy

(onde se vai a medo e se volta apavorado)


Há nove meses atrás, marquei uma consulta de rotina de oftalmologia para os rapazes, no Hospital de Marche-en-Fammene. As consultas desta especialidade são marcadas com tanto tempo de antecedência, que nunca mais me lembrei. Felizmente, mandaram sms a avisar, mas já não fui a tempo de trocar as minhas folgas. Nada de muito grave, desde que o meu chefe se despediu, ando em modo de auto-gestão. Desde que o trabalho apareça feito, ninguém se importa. Contudo, anteontem, recebo um telefonema de Bruxelas a dizer que uma das administradoras queria passar na 6ª feira para discutir uns assuntos comigo. No dia que eu precisava de faltar, obviamente. A semana tem sete dias, mas tem sempre de calhar tudo ao mesmo tempo. Nem sequer sabia bem com quem estava a falar. Há tanta gente na sede da associação, em Bruxelas, que os diferentes nomes, caras e funções ainda são um bocadinho vagos. O meu interlocutor, sentindo-me hesitar, perguntou-me se estava com medo de não conseguir chegar ao trabalho, por causa da neve que estavam a anunciar. Decidi aproveitar a deixa. Respondi que achava mais seguro ficar a trabalhar em casa nesse dia, pois previam uma verdadeira tempestade de neve nas Ardenas.
No dia seguinte, achei melhor não arriscar e saímos de casa com bastante tempo de antecedência. Mas o karma é uma coisa lixada. Esperava-nos a tempestade do ano. A neve que tardava em chegar este Inverno, decidiu vir por inteiro no mesmo dia. Demorei meia-hora a fazer um trajecto de dez minutos, até à Baraque de Fraiture, o ponto culminante aqui do burgo. O pouco trânsito que circulava andava a passo de caracol, no meio de um nevão terrível. A visibilidade era nula. Via-se que os limpa-neves tinham passado, mas as estradas enchiam-se de neve a uma velocidade assustadora. Nessa altura comecei a ficar com medo, o carro fugia e avançava com bastante dificuldade. Pedi ao Diogo para ligar para o hospital a dizer que íamos chegar muito atrasados. Responderam-lhe que o médico se ia embora às 11h, que nem valia a pena irmos. Que teria de marcar nova consulta… mas, agora, só lá para Julho. Aproveitei mais uma paragem e liguei eu. Inflexível, garanti que chegaríamos às 11h, que não deixassem o médico sair, que se ele quisesse só precisava de ver o Vasco. Foi-lhe diagnosticada uma ligeira miopia, que me tinham dito para seguir atentamente. Diogo ria e abanava a cabeça, a dizer que eu não aceitava um não como resposta. O Vasco lia, como sempre, alheado da complicação em que estávamos metidos.
Passado o ponto mais elevado das nossas Ardenas, o caminho tornou-se mais fácil e consegui recuperar algum tempo perdido. Decidi que era melhor fazer um ligeiro desvio para ir pelo meio das aldeolas, onde os tractores fazem as vezes de limpa-neves. O Diogo continuava bem-disposto. Que adorava a neve. Que a paisagem era maravilhosa. Que já tinha saudades daquele tempo. O Vasco lia. Eu começava a pensar como diabo ia conseguir fazer o trecho de estrada que atravessa a floresta para chegar a Marche. Fi-lo com dificuldade e a duras penas. Felicitei-me diversas vezes pela compra dos quatro pneus-neve que me arruinou por completo o mês. O Diogo deixou de rir, o Vasco deixou de ler. Para os distrair, disse ao Diogo para abrir as janelas para fotografar a paisagem. Nesta altura do campeonato, já eu tinha despido as camadas de roupa extra que levava. Os nervos dão-me para ter calor. Os miúdos insistiram para ouvirmos música clássica que, verdade seja dita, também já me estava a começar a dar cabo dos nervos. Mas não se conseguia apanhar a radio. Nem GPS, dando-me a sensação de estarmos perdidos do resto do universo. Afastei os medos, concentrando-me em conduzir em segurança.
Chegámos ao hospital às 11h em ponto. Toda eu tremia. Fiz-me anunciar na recepção, passando à má-fila (para desespero do adolescente envergonhado). O médico tinha esperado por nós e até aceitou ver os dois miúdos. A consulta durou uns míseros dez minutos. A hipermetropia de infância do Diogo está completamente curada; o Vasco já não tem sombra de miopia. Como bons provincianos que somos, aproveitámos ter descido à cidade para fazer umas compras. O Carrefour de Marche tem sempre peixe fresco em promoção, o que é uma raridade neste país. Começou a nevar. O Diogo avisou que, afinal, estava farto da neve. Que aquilo também já era demais. Comemos qualquer coisa à pressa e voltámos a meter-nos no carro, pouco passava das 14h. Não me queria arriscar a fazer aquele caminho de volta ao anoitecer. Se em Marche já estava a nevar, não queria pensar como estaria lá para os nossos lados…
As minhas suspeitas foram confirmadas pela radio, que felizmente já estava a funcionar. Tinha sido decretado estado de emergência, devido à tempestade. Havia várias províncias sem electricidade, nem transportes. Havia quilómetros de trânsito. Demorámos quase uma hora a sair de Marche, mas estava fora de questão fazer o caminho contrário por La Roche, cheio de curvas e contracurvas apertadas sempre a subir. Ainda pensei meter-me na auto-estrada rumo a Liège e, depois, voltar até à Baraque. Ainda bem que não o fiz, pouco depois ouvimos que o trânsito estava completamente parado nas auto-estradas, onde havia vários camiões atravessados. Quando começou a anoitecer, entrei em pânico. Valeu-me o meu amor, que já estava em casa e foi servindo de co-piloto. O Vasco continuava calmamente a ler. O Diogo começou a perceber que a situação estava muito complicada.
O troço que tínhamos de fazer pela floresta foi um verdadeiro suplício. Nas partes em que a copa das árvores fazia uma espécie de túneis naturais, o piso estava gelado e os pneus não aderiam bem. O carro estava constantemente a fugir. Nas partes mais desimpedidas, a neve acumulava-se e não deixava passar. Havia árvores caídas, nem sempre dava para me desviar. Uma vez passávamos por baixo do tronco, outra por cima. Havia vários ramos caídos no chão e, por vezes, soltavam-se grandes blocos de gelo do cimo das árvores. A única vantagem da neve é que reflete a luz e o dia tardava a anoitecer. Numa das longaaaas subidas comecei a falar com Twingo. O Vasco parou de ler, começou a dizer que na escola rezavam. O carro acabou mesmo por ficar atolado. Valeu-me o filho crescido e um polaco que não teve coragem de continuar a subida e parou para nos dar um empurrão (literalmente falando). Já no fim daquele caminho infernal, voltámos a ficar atolados. O filho grande teve mesmo de empurrar sozinho. E, depois, ainda teve de ir a correr até lá acima, porque não me arrisquei a parar para lhe dar boleia a meio da subida. Apesar de estafado e encarnado, vinha a rir. Afinal já gostava da neve outra vez. A paisagem voltou a ser magnífica e tudo e tudo, numa bipolaridade adolescente à qual já me habituei.
O caminho pelo meio das aldeolas voltou a ser feito tranquilamente. Quer dizer… tão tranquilamente quanto possível, tendo em conta a calamidade que nos rodeava. O único problema com que me deparei foi a quantidade de gente que decidiu sair à rua no meio do temporal. Grupos de pessoas, novos e velhos, que seguiam pela estrada, pois os passeios estavam cobertos de montanhas de neve. A neve que caía, a neve que os limpa-neves mandavam para cima dos passeios à sua passagem, a neve que as pessoas juntavam em montes ao limpar a entrada das casas…
Ao chegar a Manhay, avisei-os de que o caminho ia voltar a ficar mauzinho. Estávamos outra vez em altitude elevada. O Diogo perguntou porque raio tinha havido uma tempestade logo no único dia em que tínhamos mesmo de sair. Lei de Murphy, suponho. Para os distrair, pedi novamente que tirassem fotografias. Ao longe, avistámos a nossa saudosa Malempré, completamente coberta de neve, com a primeira e a segunda entradas já cortadas ao trânsito. Recordámos o nosso primeiro inverno pavoroso na Bélgica. Parece que foi há uma vida atrás! A passagem até à Baraque foi complicada, mas tinha a vantagem de conhecer bem o terreno. Ouvimos que a pista de ski tinha aberto logo no início da tarde. A avaliar pelo que víamos, não fiquei admirada. O meu amor telefonou para saber onde estávamos e dar mais um incentivo: os limpa-neves já tinham passado em Vielsalm, as estradas estavam desimpedidas. Os último vinte quilómetros foram os melhores, apesar de ser praticamente de noite. Demorámos três horas a fazer um caminho que se faz em 40 minutos.
Assim que chegámos, os meus filhos comeram este mundo e o outro. Depois, vestiram a roupa da neve e foram brincar para o quintal com os sabres laser. Não ficaram minimamente traumatizados com a viagem. Eu sentei-me no sofá, abraçada ao meu amor. Estava em casa, os miúdos e o carro intactos. Desatei a chorar.

 


 
 

 


 

 


 
 
 
 

2 comentários:

  1. Quando assisto a filmes rodados na neve até parece que sinto o friozinho à minha volta! Normalmente as pessoas acham que é um cenário idílico, nem se lembram de como o dia a dia se torna atribulado...Mesmo que tenha acabado o dia a soltar essa tensão em lágrimas, o que interessa é que conseguiu ser atendida, os filhotes estão bem e não ficaram traumatizados! E ainda teve um colo para a amparar: bem bom!

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    1. É verdade, Mariana. A neve é muito bonita para quem não tem de viver este inferno todos os dias: é a casa que está sempre patinhada, são quilos de roupa ensopados, é o tempo que se perde a limpar o carro para se conseguir ir a algum lado, é a insegurança nas estradas, o dinheiro que se gasta em aquecedor central... Bah!:(

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