quinta-feira, 30 de junho de 2016

Coração-ervilha


(onde um filho cresce

e o coração da mãe fica do tamanho de uma ervilha)


Filho pequeno parece-me hoje ainda mais pequeno. Amanhã, parecer-me-á minúsculo. Temo não conseguir deixá-lo partir.
Há muitos meses atrás, pareceu-me uma boa ideia inscrevê-lo num estágio de equitação. Era suposto o Diogo estar a trabalhar nestes primeiros quinze dias. Era suposto eu estar a trabalhar nestes primeiros quinze dias. Entretanto, estamos os dois de férias. O matulão e eu. Sozinhos em casa. O Belga pisgou-se para Itália, para o seu retiro anual.
Há muitos meses atrás, o estágio era um plano longínquo. O campo ficava mais perto de casa. Os cavalos era mais pequenos. A equitação era aparentada ao tai-chi. Dez dias eram pouco mais de uma semana. E ainda vivíamos no século XXI, onde as telecomunicações aproximavam as pessoas.
Há muitos meses atrás, quando paguei aquela pequena fortuna, fiquei orgulhosa por lhe poder proporcionar uma experiência fantástica. Senti que me estava a redimir por lhe ter negado as aulas de equitação este ano. Confirmei que era possível compensar a falta do meu tempo contado com uns dias de férias roubados.
Depois, o presente apanhou-me. E a minha coisa pequena foi ficando cada vez mais pequenina, à medida que o dia se aproximava. Amanhã, estará minúsculo. Tenho a certeza. Ainda assim, estará sem dúvida maior do que o meu coração-ervilha.
Hoje, levei-o comigo para a reunião da escola. Todos os anos pergunta se passa. E invariavelmente arranca uma gargalhada valente às professoras. Este ano passou para o 5º ano e eu suspiro de alívio, porque ainda tem mais dois anos de Primária pela frente. E tempo para ser menino. Ralhou comigo porque não levei prendas. Acho que funcionam como subornos, expliquei. “O que são subornos?” Na pilha dos objectos perdidos, recuperámos um fato de banho perdido em Setembro, um casaco que o obriguei a levar quando os dias começaram a arrefecer, uma mochila perdida antes do Natal, um gorro esquecido no pino do inverno, uma camisola que insisti em vestir-lhe quando o calor finalmente apareceu. Não conseguimos recuperar outras tantas coisas, perdidas para todo o sempre em parte incerta.
Hoje, levei-o comigo para o trabalho. Sardas no nariz e cabelos espetados. Foi o caminho todo a ler, exactamente o mesmo livro sobre mitologia grega que li com a idade dele. “O que é um tear?”  “O que significa trespassar?”  Espalhou aquela sua magia. Deixou as minhas colegas a rir. Partilhei a minha sopa com ele. “Foram os senhores com trissomia que fizeram? Cozinham muito bem.” Menino maravilha.
Hoje, levei-o comigo às compras. O seu programa favorito. “Temos de aproveitar os pré-saldos!” Fomos à Decathlon comprar um novo toque para a equitação. E as botas, que ele perdeu não sabe bem onde. Acabámos por trazer já as coisas para o próximo ano lectivo. Percorreu feliz os corredores, à procura de tudo. Naquele momento, pareceu-me grande. Mas só um bocadinho. Pela primeira vez, pôde experimentar as sapatilhas de ballet pretas e escolher as que mais lhe agradavam. Deu uns passinhos de dança que encantaram uma velhota. Ele não viu. “Porque pagas com um cartão cinzento e outro laranja?” Expliquei que as coisas para a escola pagava com o visa. Ele percebeu. “O pai não paga as coisas para a colónia.” Depois, encolheu os ombros. Deixou escapar, baixinho: “O resto também não, mas pronto…”. Garanti que sim, mas ele desviou a conversa para o boné que o obriguei a comprar. Tenho a certeza de que será a primeira perda, na colónia.
Hoje, pediu-me uma irmã mais nova. Assim mesmo, “uma irmã mais nova”. Que às vezes sonhava com ela. Imaginava-a. Disse que esperasse mais um bocadinho, que um dia destes o pai havia de lhe dar um irmão. “Pois, não sei…” Afinal, também já podia ser um rapaz. Dormia no quarto dele. Esperto, rebateu o meu argumento antes mesmo de conseguir avançá-lo. Pela enésima vez, é certo. “Eu sei que não queres ter mais filhos, mas podemos adoptar”. Também não quero. Quanto muito, daqui por algum tempo, sermos família de acolhimento. “Ah… Também pode ser!" Decidi meter-me com ele, perguntei o que diria o Diogo. Explicou-me com um sorriso trocista que estaríamos em maioria. "Não me interessa se é de outra raça ou cor.” E fez um gesto de displicência com as mãos. Menino querido.
Hoje, foi dormir para a minha cama. “Posso levar os meus ursos?” O urso do ano 2006 do Harrods, tradição da família inglesa que demorou tantos anos a voltar a nós e que ele nunca mais largou. E o Chewbacca. Tem tudo a ver. Mais um livro, como não podia deixar de ser. Espalha livros pela casa fora, mas sabe sempre onde os deixou e em que página estava. Algo suspeito.
Amanhã, vou deixá-lo pela primeira vez entregue a si próprio. E aos monitores, que certamente parecerão pouco mais velhos do que o Diogo. Volto dali a 10 dias. Entretanto, podemos trocar cartas. Não podemos falar. Bem vistas as coisas, é pouco mais ou menos o que eu fazia, quando ia para as colónias da IBM. Então, por que diabo os 9 anos dele me parecem incomparavelmente mais infantis do que os meus 6?
Amanhã, a minha coisa pequena vai crescer, apesar de me parecer mais pequenino do que nunca. Há muitos meses atrás, pensei que eu também fosse crescer como mãe. Agora, já só desejo conseguir chegar ao carro antes de começar a chorar. É difícil quando o coração se opõe à razão. Mas continuo a lutar contra mim mesma por aquilo em que acredito.


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