sexta-feira, 3 de junho de 2016

Vórtex de culpa materna


(porque quando as coisas correm mal a culpa só pode ser nossa)


 
O Vasco decidiu tocar o “Lago dos cisnes” no exame final do 3º ano da Académie, apesar de ser matéria do ano seguinte. Infelizmente, a professora de violino concordou com a escolha ambiciosa. E eu, que o tinha visto ser prejudicado no ano anterior por ter escolhido uma música demasiado fácil, acabei por concordar. Contudo, tendo em conta que as divergências antigas com a professora se agudizaram nas últimas semanas, calculei que pudessem surgir problemas. Se dúvidas houvesse, teriam ficado dissipadas quando a professora disse claramente ao Diogo que a nossa troca de mensagens teria consequências nos exames. Decidi, então, arranjar alguém para ajudar o Vasco a preparar o exame de violino. A verdade é que, com problemas ou sem eles, aulas semanais de 25 minutos são claramente insuficientes. O Diogo ajudou o irmão todas as noites a estudar em casa, com um desvelo que me comoveu (e uma dureza que, por vezes, me surpreendeu). E a professora de violino contratada à última da hora fez milagres. Minutos antes do exame, a coisa pequena tocou para nós as duas músicas que tinha preparado. Estava excelente.
Seguindo o conselho da professora que ajudou a preparar o exame, o Vasco não levou o CD que acompanhava o “Lago dos cisnes”. O acompanhamento do CD era demasiado rápido e o Vasco atrapalhava-se. Sem CD, a coisa corria de feição. No dia do exame, a professora de violino, com um sorrisinho sádico, disse que ia acompanhá-lo ao piano. Pela primeira vez na vida, o Vasco não me piscou o olho antes de começar a tocar. Aliás, não olhou para mim uma única vez. Percebi que tinha ficado completamente desnorteado com a ideia de tocar com acompanhamento, sem ensaio prévio. A coisa pequena tocou ao ritmo dele. A professora tocou devagar, muitoooo devagar. O resultado foi uma espécie de cacofonia que o perturbou. Quando lhe vi o queixo a tremer, percebi que o resto do exame estava condenado. Os erros sucederam-se. A segunda música – obrigatória e ensaiada com acompanhamento – também lhe saiu mal. Só quando chegou junto de nós é que deu livre curso às lágrimas. Chorou de vergonha por ter tocado mal e chorou de raiva pela injustiça. Chorou de tristeza por ter falhado, após tanto empenho. O Diogo – também envergonhado – evitou olhar para ele. Eu contive as minhas próprias lágrimas a custo (e a língua afiada também). Esforcei-me por sorrir. Disse-lhe que não era grave, que o importante era divertir-se. A atitude carinhosa veio inesperadamente do Belga, que abriu os braços e o aninhou. Deu-lhe os parabéns. Fez-lhe massagens nas costas. Começou a dizer disparates para o fazer rir. A crise passou, mas a tristeza permaneceu.
A verdade é que a audição de violino do Vasco correu bastante mal. Mas eu fiquei orgulhosa. Aprender a gerir a frustração faz parte da vida. Lidar com gente mal formada também. E a coisa pequena conseguiu estar à altura. Nunca desistiu, continuou sempre a tocar. Acho que só quem o conhecesse bem era capaz de perceber o desnorteio. Não sei se o Vasco passará para o 4º ano. Todos os alunos que se apresentaram a exame cometeram vários erros, o que diz bastante sobre a qualidade da professora. Os outros alunos do mesmo ano tocaram músicas bastante mais simples… com vários atropelos pelo meio. Eu já tinha pedido para falar com o director, para expor o problema e pedir autorização para mudar de professora no próximo ano. Provavelmente, as aulas passarão a ser dadas em Stavelot ou Malmedy, a vários quilómetros de nossa casa. Mas é impensável continuar com aquela professora, que nunca soube dar um elogio ao Vasco em dois anos de aulas. Como se fosse possível evoluir na crítica…
Entretanto, o Vasco já esqueceu o incidente (mas não voltou a pegar no violino). Eu continuo mortificada. A culpa… sempre a sacrossanta culpa materna a corroer-me por dentro. Revejo as minhas justificações, uma e outra vez. O meu amor já não deve poder ouvir falar neste assunto, mas arranja sempre algo novo para dizer. Eu devia ter tentado arranjar outra professora, no ano passado. Mas a implantação da Académie em Salmchâteau fica mesmo a 5 minutos de nossa casa. E se o tirasse do violino, também teria de arranjar outra professora de solfejo para ambos. Isso representaria centenas de quilómetros semanais, entre as várias idas e vindas. O Diogo disse-me que queria terminar o curso ali… Devia ter obrigado um filho a seguir o outro? Quer dizer… acabei mesmo por obrigar um filho a seguir o outro, quando decidi que continuavam ambos em Salmchâteau. Talvez não devesse ter enviado aquela mensagem, há duas semanas. Releio-a vezes sem conta. Não insultei a professora, como ela diz. Três pontos de exclamação não podem ser considerados um insulto. A verdade é que o Vasco faltou à última aula antes do exame de solfejo, porque a professora se enganou. Eu limitei-me a dizer-lhe isso mesmo. Talvez devesse tê-lo feito sem exclamações… Ou talvez devesse ter logo falado com o director. Devia ter insistido mais.
Eu sei que devia concentrar-me no facto de o meu filho pequenino já conseguir tocar o “Lago dos Cisnes” e na felicidade que isso lhe proporciona. Sei que é extremamente importante aprender a lidar com a frustração e a decepção, faz parte do crescimento. Chumbar um ano não é assim tão grave. Devia ficar contente por o Diogo ter ajudado o Vasco noites a fio a ensaiar. É muito bonito ver a relação dos dois irmãos crescer num universo musical exclusivo. Devia esquecer tudo o resto e lembrar-me apenas do sentimento de gratidão profunda que senti, no dia do exame, quando meu amor lhe soube dar colo e secar as lágrimas. Eu sei que devia… mas não consigo. Fiquei presa algures no vórtex da culpa materna.

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