terça-feira, 4 de outubro de 2016

Dias de abandono

(porque terminei agora I giorni dell'abbandono de Elena Ferrante,

que provocou uma catarse e me trouxe memórias que julgava esquecidas)



Tive a sorte de a vida me ter oferecido uma segunda hipótese. Um caderno cheio de páginas em branco, sem linhas, nem quadrículas, onde poderia escrever uma nova história desde o início. Tenho perfeita consciência de que recebi um presente raro, numa idade em que já tinha maturidade para conseguir aproveitar. Se tivesse acontecido antes, provavelmente ter-me-ia limitado a reescrever a mesmíssima história, mudando apenas o personagem secundário e o cenário. Se tivesse acontecido depois, dificilmente me sentiria com forças para recomeçar do zero. À mulher que mandou uma peça íntima escondida na roupa suja do pai dos meus filhos, dizer-lhe que escolheu o momento perfeito. E agradecer-lhe do fundo do coração por me ter libertado de uma vida (e não apenas de uma relação) que quase me matou. Não se iludam, a tristeza mata mesmo. Aniquila quem somos, corrói a alma, adormece sonhos, anestesia o potencial, paralisa a capacidade de mudança. Ninguém me obrigou a ficar 18 anos. Ninguém me obrigou a encarnar uma sombra. Sou a única culpada pelo estado de apneia em que vivi tantos anos. E sou ainda mais culpada porque convenci todos à minha volta de que era feliz, impossibilitando sordidamente qualquer tipo de ajuda externa. Mais, convenci-me a mim mesma de que aquela era exactamente a vida com que sempre tinha sonhado. Que nunca conseguiria fazer melhor. Que não tinha capacidade para mais. Acreditei quando ele me dizia que nunca estava satisfeita, que não era normal, que era histérica e que vivia num mundo irreal. Que nunca encontraria melhor. Acreditei que o problema era meu. E lutei muito para entrar nos moldes do que era suposto. Esforcei-me para ser feliz. Ou para pensar que era feliz.

Um dia acordei e percebi que tinha de deixar de esperar que o adolescente crescesse, porque entretanto o adolescente já era um homem adulto. Já não tínhamos 16 anos. Não era um problema de maturidade, era um problema de personalidade. Mas estava grávida do segundo filho. Muito grávida. Tive medo quando o meu pai me foi ver à maternidade. Quase não falei. As fotografias que tirámos mostram o desconforto daquela visita. Eu só queria pedir-lhe que me levasse dali. A mim e aos meus dois filhos. Mas tive medo. Porque na noite anterior o adolescente feito adulto parou para ir bater no condutor da frente que não cedia passagem. Eu tinha contracções a cada dois minutos. Porque uma médica novata me mandou andar à chuva durante uma hora e o adolescente feito adulto não foi capaz de se impor. Eu também não, mas já estava naquele limbo em que as dores nos toldam o raciocínio. Porque me disse para parar de vomitar à porta da embaixada, que havia câmaras. Porque me pediu uma justificação para dar na lavandaria. E que parasse de lhe apertar a gravata, que se amarrotava. E os sapatos, que ficavam a cheirar mal com tanto vomitado. Chovia muito. Chovia torrencialmente. Já era de noite. Eu estava de t-shirt. Porque chovia tanto e ele nunca me ofereceu o casaco. O casaco do fato vomitado e amarrotado. Porque eu disse que não aguentava mais, que ia voltar para a maternidade. E ele mandou-me aguentar, que ainda não tinha passado uma hora. Porque eu sabia que algo de errado se passava e ele insistiu que ainda não tinha passado uma hora. Porque num quarto cheio de médicos e já sob oxigénio, ouvi o adolescente feito adulto enaltecer os cuidados médicos da MAC, sem perceber que estavam todos em pânico à espera que vagasse um bloco operatório. Porque quando senti o sangue escorrer para o chão me esforcei por me manter acordada. Tanto sangue. Pensei que morria. Porque supliquei que não me adormecessem com medo de nunca mais acordar. E, depois, quem cuidaria dos meus filhos? Porque nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida. Quem cuidaria dos meus dois filhos? Porque quando finalmente saí, com um Vasco minúsculo enrolado em mim, o adolescente feito adulto confessou que tinha sentido vontade de bater no pai novato que aguardava ao seu lado. Disse que a alegria do outro pai ao telefone, a dar a boa nova ao mundo, lhe deu vontade de lhe bater, ele que estava ali à espera há tanto tempo sem notícias. Porque me perguntou por que raio demorei aquele tempo todo, quando a mulher do outro só tinha demorado dez minutos. Porque percebi que, no dia em que aquela violência toda se voltasse contra mim, estaria perdida. Jurei que nunca mais teria filhos. Jurei em voz alta. Ele não pegou no bebé. Concentrado que estava na raiva. E nas fotografias para mostrar. Eu continuava a tremer. O Vasco encontrou o peito e começou a mamar, sozinho. Foi um momento mágico que vivi na mais completa solidão, estando acompanhada. Na manhã seguinte, inventei uma história engraçada para contar às visitas o parto dantesco. Contei tantas vezes esta história engraçada ao longo dos anos que ela se tornou verdadeira. Nas minhas memórias, tinha sido ele a insistir para voltarmos à maternidade. Esqueci o espanto da enfermeira que estava à minha procura à entrada, quando me viu chegar ensopada. Atrás, o adolescente feito homem de casaco e eu de t-shirt, a tremer. "Mas foi mesmo andar à chuva?!" Ele riu-se. Esqueci essa gargalhada. E o asco que senti. Esqueci-me que a enfermeira disse que queria aproveitar a médica novata estar a jantar para me internar. Porque tinha percebido que o bebé ia nascer. E esqueci que, naquela noite em que Lisboa mergulhou na tempestade, a máscara caiu para sempre e o amor acabou. O Vasco nasceu pouco depois.

Fiquei eu e as minhas memórias edulcoradas. Senti medo. E vivi com medo os cinco anos seguintes. Medo de ter percebido que a vida sonhada já não chegava. Que era uma invenção construída, tal como a narrativa burlesca do parto. Medo do que poderia acontecer. Da mudança. Medo de não ser capaz. De não nos bastar. Medo de nunca mais encontrar o amor. Medo de ser mesmo uma mulher incapaz, desequilibrada, anormal. Ouvi muitas vezes: “vai-te curar, não és boa da cabeça”. E acreditei sempre. O problema era meu. O problema era eu. Porque eu tinha de conseguir ser feliz naquela vida. Porque eu tinha de ser bem-sucedida onde os meus pais tinham falhado. Esforcei-me por continuar, pelo menos, a amar o meu melhor amigo. Como quem ama um membro da família. Percebi que podemos amar alguém de quem não gostamos. Que se transformou num homem que defende tudo aquilo que abominamos. Apenas porque um dia gostámos muito de um adolescente, com quem entrámos carinhosamente na idade adulta com o nascimento do primeiro filho. Aos poucos, aprendemos a controlar os nossos demónios interiores. E a entrar naquilo que se espera de nós. A felicidade pela vida com que supostamente tínhamos sonhado. Mas a repulsa está lá, nunca desaparece por completo. Faz com que nos afastemos de um salto, quando não estamos à espera de uma demonstração de afecto. Faz-nos desviar a cara involuntariamente para evitar um beijo. Faz-nos meter as mãos nos bolsos, quando vamos pela rua. Aprendemos a desculpar-nos com os filhos. Com o trabalho. Com a vida. Dizemos que não é o momento. E nunca mais é momento. Mas continuamos a amar aquela pessoa, como quem gosta de um casaco puído. Pelo hábito.

E, depois, a vida desaba. Muitos anos depois. O adolescente feito homem diz que se calhar já não nos ama. Que não sabe bem. Uns dias, sim. Outros, não. Mas nós não acreditamos e achamos que temos de lutar por aquilo que outrora fomos. Porque é isso que se espera de nós. Até que uma peça íntima aterra no nosso cesto da roupa suja. Não percebemos porquê. Há tantos anos que cultivávamos esforçadamente a felicidade e a normalidade. E não percebemos porquê. Queremos compreender. Fazer qualquer coisa. Voltar atrás. Mudar algo. Salvar o que não tem solução. E suplicamos. Humilhamo-nos. Agora, sim, perdemos o juízo. A lucidez. O corpo vai atrás. Começamos a desmaiar. E damos por nós no hospital, mais uma vez sem perceber o que se passa. Quando voltamos para casa, somos largadas pelo adolescente feito homem. Quando voltamos para casa, não. Somos largadas num descampado, de madrugada. A pulseira do hospital ainda no pulso. Uma discussão. Não nos lembramos bem do que aconteceu. A vida em casa continua. A vida lá fora continua. Como é possível? Ninguém nos vem socorrer. Ninguém vem tomar conta das crianças. Faço 36 anos. Sozinha com os meus filhos. Quase não me lembro desses tempos. Uma névoa espessa. Quantas semanas? Quantos meses? A vida continuava. O trabalho sem receber continuava. A vida miserável continuava. Às vezes,  sentia que não conseguia gerir aquilo tudo. Que ia endoidecer mesmo. Mas eu já era doida, não era? Sei que nunca chorei à frente dos rapazes. Começava a chorar quando deixava o último na escola e parava quando ia buscar o primeiro. Sempre que estava com alguém, ria muito. Nunca quis preocupar ninguém. Ser um peso. Diziam-me que tinha renascido. Emagreci. Voltei a vestir roupa bonita. Comecei a maquilhar-me. Nos fins-de-semana sem filhos, saía. Eu nunca tinha saído, em adulta. Eu que nunca tinha tido sexo ocasional. Só queria ter a certeza de que funcionava. Porque me disseram que a culpa era minha e eu acreditei. Anos e anos de impotência só podiam ser culpa minha. Depois passou. Pelos vistos, também passou comigo. Será que a culpa afinal não era minha? De certeza que era, engravidei. A pouca sanidade mental que me restava desapareceu de vez. Os desmaios voltaram. Sentia um formigueiro na nuca e depois apagava-me. Um sentimento de desdobramento de realidades. Quando o sofrimento era demasiado intenso, apagava-me. Nessa altura, as discussões eram muitas. E violentas. Porque tinha de abortar. Eu só queria ver a minha médica primeiro. Um dia, foi horrível. Na festa do final do ano da escola do Vasco. Ele gritou muito. Tive medo. Pensei que finalmente aquela violência toda se ia virar toda contra mim. Contra nós. Comecei a sangrar, muito, muito. Fui para o hospital. Conduzi sozinha. À ida e à vinda. E lembro-me de pouco. Quase nada. Nunca mais fui capaz de usar um aspirador. O som perturba-me. Ali, naquele momento, sei que relembrei o parto do meu segundo filho. As mentiras que contei aos outros e, principalmente, a mim própria. E percebi que tinha chegado ao fim. O sofrimento tinha chegado ao fim. Aquilo era o fundo do poço. Ali, sozinha. Mais baixo do que tinha descido nas últimas semanas (meses? anos?) não era possível. Pela primeira e única vez na minha vida, senti vergonha e nojo de mim própria. Não fui capaz de dizer a ninguém.

Acordei vazia. Tinha deixado de amar o pouco que me restava daquele homem no coração. Abri mão. Já não era o meu adolescente. Nem o meu melhor amigo. Nem a minha família. Já não era nada, nem sequer humano. Era apenas um estranho. Mas um estranho perigoso. O instinto dizia-me para fugir. Para fugir depressa. Sentia que algo terrível se aproximava a passos largos. Um mau pressentimento. Uma coisa estranha. O caminho a seguir era, agora, muito claro. A partida para a Bélgica já estava prevista, mas até esse dia não acreditei verdadeiramente que fosse capaz. Também nunca acreditei que ele me deixasse partir com as crianças, no estado em que me encontrava. Ali, comecei a acreditar. Nem havia outra solução. Não tinha coragem de olhar nos olhos aquela Rita que me envergonhava. Não conseguia avançar, presa que estava a tantos grilhões. Precisava de uma nova existência. E dos meus filhos. Apenas isso.

Pouco depois, o Diogo disse-me, na cozinha: “Mãe, agora tens de te levantar. Tens-nos a nós e vais ter de lutar. Já chega.” Funcionou como um choque. Porque eu pensava que ele não tinha percebido nada. Tinha acabado de fazer 11 anos. Ele não se lembra desta conversa. Lembra-se de uma outra, que eu não recordo, em que me disse que sim, quando lhe perguntei se queria vir viver comigo para a Bélgica. Terá sido a mesma conversa? Nunca saberei. O Diogo diz que a única recordação que tem desses tempos foi esta conversa. O Vasco tem muito poucas memórias da vida em Portugal. Eu recordo fragmentos dispersos dessas semanas (meses?). Recordo a névoa espessa. E o medo surdo em relação ao que o futuro me reservava. Mas sei que foi daqui que parti, há quatro anos atrás. Porque este blog conta uma história que não tinha início. Eis, então, o começo. Sem quaisquer mágoas ou arrependimentos. Apenas com um sentimento de profunda gratidão. Quantas pessoas acreditam que não são normais, apenas porque o normal não condiz com elas? Quantas pessoas encontram exactamente aquele amor que pensavam existir apenas na sua mente doente? Quantas pessoas conseguem cumprir sonhos que nem sabiam que tinham? Quantas pessoas têm oportunidade de recomeçar uma vida do zero? Quantas pessoas têm esta sorte?

12 comentários:

  1. Meu Deus, Rita, até me faltou o ar ao ler tudo isto! Muitos parabéns pela mulher que é! Uma grande beijinho, Célia

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    1. Não há motivo para parabéns, a sério. Às vezes, a vida acontece e nós limitamo-nos a seguir em frente o melhor que podemos. Tenho a certeza de que a minha história é muito mais comum do que se pensa.

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    2. Mas contou a sua história aqui, "publicamente" e para isso, é preciso coragem! E sim, existem muitas histórias como a sua, infelizmente sem um final feliz. Beijinhos

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    3. Hum... acho sempre mais saudável exorcizar fantasmas, do que mantê-los secretos. Guardar bombas a retardamento debaixo do colchão, isso, sim, é de coragem. Por outro lado, ninguém me conhece... vá, tirando a Mel, ali em baixo! :)
      Um grande beijinho, Célia.

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  2. *Só para dizer que li. Estava lá e não notei rigorosamente nada. Desculpa.

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    1. Eu é que peço desculpa por não ter sabido aproveitar a tua presença para desabafar. Devo ter rido... :(

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  3. Quem me dera a mim de ter a sua sorte...

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    1. Às vezes, ouvimos dizer que a sorte se cria... mas nunca acreditei muito nisso. É verdade que há túneis espácio-temporais que se abrem sob os nossos pés e temos de saltar sem medo. Mas, se essas situações nunca surgirem, é difícil ter sorte. Desejo do fundo do coração que a encontre.

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  4. Que viagem, mulher! Ainda bem que te agarraste ao volante com essa garra toda. Que bom que ainda havia tanta estrada boa pela frente :)

    p.s. Mudei de vida neste Verão e não duvido que o teu exemplo teve o seu contributo. Obrigada por isso.

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    1. Querida Gralha! Sei que ainda só estou no início da minha caminhada, a "estrada boa", como tu dizes, há-de ser longa...
      e hei-de demorar muito mais tempo do que tu a percorrê-la, que eu sou mais koala do que esquilo. Parabéns pelo grande feito que acabaste de alcançar. Agradeço do fundo do coração o mérito que tenho pelos primeiros 5 metros... os outros 104,95 km são todos teus! És grande!
      PS: Há uns bons anos, o meu amor tentou conquistar o Toubkal de burro, mas nunca lá conseguiu chegar... :)

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    2. Obrigada :)
      Voltem lá de mula, para a próxima - elas são muito mais persistentes :P

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    3. Eu não me meto nisso, esquece! Sou maluca, mas não tanto!:)

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