quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Antes o cabeleireiro-vidente que a adolescente autista

(onde quase se corta o mal pela raiz)


 

Decidi cortar o cabelo. A ideia já andava a germinar há uns tempos. Comecei por inquirir os homens da casa, que de imediato se manifestaram contra em bloco. Só se fosse mesmo um bocadinho de nada, uns milímetros apenas… vá, uns centímetros poucos. Nada que se notasse. Quanto muito, as pontas. Melhor ainda… as pontinhas. O meu amor ficou de sobreaviso e começou a espiar-me os passos, não fosse eu agir intempestivamente. Mal percebeu que o problema era a dor nos ombros, decidiu ajudar-me. Insistia para eu o deixar lavar e secar-me o cabelo. E passou a pentear-me todas as manhãs. Com imenso jeito, diga-se de passagem. Mas uma pessoa tem o seu orgulho e achei melhor resolver esta questão de uma vez por todas.

Na semana passada estive de baixa, para recuperar das infiltrações no ombro. Decidi aproveitar uma breve ausência do meu amor para cortar finalmente o cabelo. Tinha de ser naquele dia, não noutro qualquer. O primeiro sítio onde me dirigi foi, como não podia deixar de ser, o salão do cabeleireiro-vidente. Às tantas, uma pessoa começa a habituar-se àquela sinceridade toda e já nem se incomoda. Mas o homem devia estar de mau humor, naquela manhã. Tinha dois velhotes em amena cavaqueira e despachou-me rispidamente. Ainda tentei argumentar, os velhotes não pareciam ter assim tantoooo cabelo naquelas cabeças. Nada, não o consegui demover. Nem sequer quando joguei a carta da dor nos ombros. Respondeu-me secamente que ali – Naquele Cabeleireiro, Com Maiúscula – também era preciso marcar horas, como nos outros. Que não era só chegar e sentar. Que havia mais clientes. E que nenhum era especial. Que ele era uma pessoa muito ocupada. Que só tinha vaga na semana seguinte.

Saí dali descorçoada, mas determinada a cortar o cabelo antes de o meu amor chegar. Felizmente (ou talvez não…) era o “dia sem marcações” num dos cabeleireiros cá da terra. No início da tarde, ainda antes da hora de abertura, já eu lá estava a marcar lugar. Ganhei por pouco a uma velhota com evidente falta de jeito para estacionar. Foi uma adolescente de poucas falas que nos abriu a porta. Loira oxigenada, com o cabelo comprido muito esticado. Camisola de alcinhas como se estivesse nos trópicos e calças justas. Com um cãozinho a pilhas a tremelicar debaixo do braço. A primeira coisa que fez, ao entrar, foi pôr música. Um rap francês que fez a velhota revirar os olhinhos.

Mandou-me sentar e lavou-me o cabelo em dois minutos. Perguntou se a água estava boa. Respondi que estava um bocadinho fria. Ela continuou como se nada fosse. Gelei o cocuruto, enquanto me questionava se a miúda teria ouvido bem. Ou talvez fosse apenas uma pergunta retórica e a torneira nem sequer tivesse misturadora, sei lá… O cão a pilhas decidiu alapar-se ao meu colo, mas era tão raquítico que nem sequer me conseguiu aquecer as pernas.

Depois, a adolescente mandou-me sentar em frente ao espelho. Senti uma pontinha de medo e agarrei-me ao cão. Nem sequer tinha bem a certeza se ela teria idade para trabalhar. Lavar a cabeça, ainda era como o outro… um corte é uma coisa mais definitiva. Espreitei a velhota pelo canto do olho. Estava calmamente a ler uma revista. Parecia uma habituée da casa, tinha chamado o cão pelo nome. Respirei fundo e deixei-me estar. Quão difícil pode ser cortar um cabelo liso pelos ombros?

A adolescente oxigenada estava muito concentrada a desembaraçar-me o cabelo molhado. Tentei iniciar uma conversa amistosa. Não resultou, nem levantou os olhos. Quando finalmente deu a tarefa por terminada, perguntou-me como queria cortar. Lá lhe expliquei a história das dores nos ombros, que não conseguia cuidar do cabelo convenientemente. Pedi-lhe que cortasse a direito. Nem curto, nem comprido. Pelos ombros, simples. De modo a não dar trabalho nenhum de manhã. Fez um grunhido que me pareceu de assentimento e pegou na tesoura, decidida. Agarrou numa mecha e, apontando com a tesoura, perguntou: “Por aqui?” Respondi que não, que era demasiado curto. Que queria mais comprido, faz favor. Eu disse “se faz favor” docemente. Uma pessoa sabe quando não está em posição de força. A adolescente cortou... e-xa-cta-men-te onde tinha indicado. Mais uma vez me questionei se a miúda teria ouvido o que eu lhe disse. A música não me parecia assim tão alta, mas pronto… Perdido por cem, perdido por mil. O cabelo cresce depressa, certo?

Ao meu colo, o cão a pilhas ia espirrando à medida que os meus longoooos cabelos iam caindo. A dada altura, a rapariga perguntou se não queria “desbastar” para dar um ar “mais moderno”. Repeti a pergunta, noutros termos: “Se quero escadear o cabelo? Não, não quero. Quero cortar a direito pelos ombros... pronto, por cima dos ombros, como está a fazer”. Desta vez, falei mais alto e devagarinho, para ter a certeza de que a mensagem tinha passado. Só me faltou soletrar. Não serviu de nada, devo dizer. A miúda agarrou numa tesoura especial e vai de me “desbastar” o cabelo. Quando emiti um gritinho de espanto, parou. Explicou que era só um “bocadinho”, só para dar um “jeito” ao cabelo. Que ia ficar um penteado mais “natural”.

Aquilo demorou uma eternidade. A miúda parecia autista, mas bastante empenhada no seu trabalho. Eu estava tão furiosa, que ela lá decidiu acatar a minha última vontade e limitou-se a secar-me o cabelo naturalmente. Quando ouviu o secador, o bicho caquético desapareceu a tremer. No fim, a adolescente pareceu satisfeita. Que estava muito natural, explicou-me. Se horrorosa for sinónimo de natural, então ela atingiu plenamente os seus objectivos.

Os homens da casa foram sinceros, no final do dia. O veredito dos rapazes foi unânime: estou horrorosa. Ninguém me manda andar sempre a dizer que detesto que me mintam. O meu amor foi mais simpático, passado o primeiro embate. Diz que continuo linda, mas que “fico diferente”. Ora se a premissa inicial já é falaciosa…

Sabem que mais? A verdade é que isto está tão mau, que não dá trabalho nenhum. Nisso a miúda tinha razão. Não há grande coisa que se possa fazer por esta desgraça, excepto esperar que cresça. Daqui por uns dois anos e meio volto a dar notícias.

9 comentários:

  1. Os homens lidam mal com as mudanças no visual dos elementos femininos: ou não dão por nada, logo no dia em que a profissional do cabelo nos afiançou que iriamos ser muito admiradas... ou colocam logo a pergunta mais animadora: "Mas o que é que te passou pela cabeça para vires assim para casa?" Assim sendo, só posso acrescentar que estou solidária consigo nos próximos 2 anos!

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  2. Eu cá acho que os homens lidam mal com todo o tipo de mudanças, Mariana... ;)

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  3. :( Ninguém merece.
    Andava com ideias de cortar o cabelo curto, vou mas é ficar sossegada.

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    1. Tu não te metas nisso, mulher!!! Fica mas é sossegadinha, sim?

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  4. Oh, não pode estar assim tão mal!!
    :)

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    1. Ehhhh... acredita que está, Ana! :( A parte boa da coisa é que já está tanto frio por estas bandas que posso usar um lenço farfalhudo ao pescoço para disfarçar.

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  5. Por conta dessas é que a mim ninguém me apanha num cabeleireiro novo. Em 2002 encontrei "a" cabeleireira que sabe o que eu gosto e que é de uma honestidade brutal quando me dá esses surtos de querer mudar!

    Já agora... pagaste o corte? Eu não tinha pago!

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  6. Tu trata bem essa mulher, que uma cabeleireira de confiança vale ouro!

    Paguei quase 60 euros, ia morrendo, Naná! :(

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