quarta-feira, 9 de setembro de 2015

E agora a realidade

(das férias e suas consequências)


 

Estes dias têm sido complicados. Agridoces. Os rapazes estão de regresso a casa, mas voltaram estranhos destas últimas férias de Verão em Portugal. Mais estranhos do que o habitual, entenda-se. Um mês é muito tempo. Mais o mês que passaram connosco entre a Bélgica, Espanha, Marrocos e Portugal. O Vasco anunciou que estas tinham sido as melhores férias de sempre. Não é fácil deixar para trás dois meses de férias e acordar de repente para a realidade. Os meus filhos responderam de forma diametralmente oposta. Um suspirou de alívio, o outro chorou de tristeza. Andamos aos pouquinhos a tentar entrar na nossa rotina. Na rotina do novo ano escolar, que começou na semana passada.

O Diogo anunciou logo à chegada ao aeroporto que tinha gostado muito das férias, mas que estava desejoso de voltar. De regressar a casa. À sua casa. À sua escola, que adora. E fê-lo com um sorriso que espelhava bem a felicidade que sentia, indiferente à desilusão que isso pudesse causar a quem o rodeava. As despedidas foram rápidas, banais. Mal aterrou, telefonou-me a dizer que já cá estava, que tinha saudades minhas, que gostava muito de mim, que dali a cinco minutos estaríamos juntos. Fiquei de coração cheio, claro. Mas achei estranho. Aos catorze anos já não é suposto corrermos para o colo da mãe. Tanto mais que estamos a falar de um miúdo que, ainda há poucos meses, dizia que queria ficar em Portugal. Sempre defendi que o Diogo dizia isto apenas para agradar ao outro lado, por um qualquer dever filial pervertido que lhe tinham conseguido inculcar, por estar com os braços repletos de prendas caras e a cabeça cheia de maledicência contra mim, contra os emigrantes, contra este país. Penso que agora se tornou evidente.

Pior, penso que o meu filho crescido já não se sente bem quando fica muito tempo em Portugal, a viver uma vida que se quer perfeita, artificial e excessivamente social. Obrigatoriamente familiar. Desta vez, voltou cheio de tiques. Falava e a cara contorcia-se com movimentos regulares involuntários. O meu amor ficou bastante preocupado. A madrinha, que veio com eles, também estava estarrecida. Eu tive uma visão de reconhecimento. O Diogo sempre teve este problema, quando confrontado com situações que não conseguia gerir. Quando andava no hóquei, quando era vítima de bullying na escola… Mas, desde que viemos viver para a Bélgica, os tiques desapareceram por completo. A vida mudou e ele aproveitou a deixa para se reinventar. Com mestria, diga-se de passagem. Há três anos que eu não o via ter tiques e partiu-me o coração perceber o que devia ter sentido. Adivinhar o que se passava naquela cabeça, porque o Diogo recusou falar sobre as férias. Ainda andou assim três ou quatro dias, foi aflitivo.

Os tiques foram desaparecendo aos poucos, à medida que a segurança de reencontrar a sua vida voltava. Adorou o quarto novo, que agradeceu vezes sem conta. Fartou-se de elogiar a nossa casa e o quintal, que fez questão de mostrar pormenorizadamente à madrinha. Recusou ir a casa de amigos ou convidar alguém para vir cá dormir. Preferiu esperar pelo início da escola e passar os primeiros dias a namorar a casa. Dizia que queria calma, que queria paz. Que estava farto de confusão, de ter muita gente à sua volta. Voltou ainda mais meiguinho do que o habitual, sobretudo para com o meu amor que é profundamente nórdico. Mas lá percebeu que o miúdo precisava mesmo de se sentir seguro e tem retribuído as declarações de amor e as demonstrações de afecto, que sempre o deixaram desconfortável. Devagarinho, as coisas foram ao lugar. A escola recomeçou, bem como as aulas de solfejo e de trompete. Reencontrou os amigos e a namorada. Daqui por uns dias vai começar a aprender um novo instrumento algo inusitado: órgão de igreja. Só falta convencê-lo a praticar um desporto qualquer, para ver se espevita… e se gasta a quantidade absurda de comida que ingere.

O Vasco também voltou estranho, embora fosse uma estranheza diferente da do irmão. Ainda no aeroporto fez a cena do costume, com o choro e os vómitos esperados. Mal a plateia sedenta de drama virou costas, a madrinha disse que o Vasco recuperou instantaneamente o sorriso. Começou a tagarelar alegremente sobre a vida aqui, sobre o meu amor e todas as coisas que faziam juntos. Só não estava lá muito contente por recomeçar a escola dali a dois dias…

Na verdade, custou-lhe imenso regressar à normalidade. À vida regrada. À rotina do quotidiano. Aos horários de deitar e de levantar. Às obrigações, tout court. A escola e as actividades e as refeições e os trabalhos de casa e as inúmeras tarefas pequeninas que é mesmo preciso fazer. A coisa pequena só queria brincar. E jogar videojogos. Nos primeiros dias, pavoneava-se pela casa como se fosse um príncipe, a quem tudo é devido e nada lhe é exigido. Altivo e ufano. A falta de autonomia atingiu níveis assustadores. A má-educação. Ignorava ostensivamente conselhos, ordens e ralhetes. Não se podia ir a lado nenhum com o Vasco, estava sempre a pedinchar. Só tinha uma ideia na cabeça: comprar, comprar, comprar. Fartou-se de pedir coisas a mim, ao meu amor, à madrinha. Tanto podiam ser insignificâncias, como artigos caríssimos cujo valor lhe era indiferente. Principalmente doces. Vinha completamente viciado em doces. Maluquinho. Juro que nunca tinha visto tal coisa na minha vida, era como se o miúdo estivesse a ressacar. Babava para cima de tudo o que fosse doce e andava sempre a ver o que conseguia apanhar. Nem que fosse às escondidas, nada lhe escapava. Tivemos de fazer uma espécie de cura de desintoxicação da diva, o que não foi nada fácil. Custou-lhe horrores. Ficou impossível de aturar, rezingão e choramingas. Dormia mal. Como se não bastasse tudo o que deve ter enfardado durante as férias, ainda trouxe uma mochila cheia de porcarias que parecia um poço sem fundo. Dias depois de chegarem, ainda havia gomas e pastilhas espalhadas pelo quarto. Até que o meu amor se passou, declarou que aquilo era uma obscenidade e, num acto déspota, espetou com os doces todos que restavam no lixo.

Nenhum de nós estava feliz com este reencontro tão esperado. Tentei resolver o problema com várias aproximações diferentes, nenhuma resultou. Falei meigamente, expliquei, tentei passar mais tempo sozinha com o Vasco. Ralhei, zanguei-me, castiguei. Mostrei-me desiludida. As coisas em casa iam de mal a pior. Na escola não era muito melhor. No primeiro dia, perdeu um casaco. Dias depois, foi a lancheira novinha em folha. Também houve aquela vez em que dormiu com um marcador preto sem tampa e manchou a roupa de cama toda… e o colchão novo. Decidi que precisávamos de medidas drásticas para impor os limites que o Vasco parecia incapaz de voltar a aceitar, no regresso das férias. Comprei um quadro branco onde fiz uma lista das tarefas diárias que o filho pequeno tem de fazer. O meu amor acrescentou mais algumas, que entretanto lhe ocorreram. Pregámos o quadro por cima da mesinha de cabeceira do Vasco. Todos os dias, tem de fazer uma auto-avaliação antes de se deitar e marcar com uma cruz as tarefas realizadas. No fim-de-semana, fazemos o ponto de situação. Se tiver sido uma boa semana, terá direito a um prémio (mais uma hora de videojogos, escolher um passeio, escolher o bolo da semana, etc.). Se tiver sido uma má semana, terá um castigo (menos tempo de televisão, um ditado, etc.). A ideia não é apenas recompensá-lo ou castigá-lo, mediante o comportamento. O objectivo do quadro é ajudá-lo a lembrar-se das suas tarefas diárias, visualizando-as, para que progressivamente consiga voltar a organizar-se de forma autónoma. Vamos no terceiro dia e as melhorias são notórias. A principal mudança, para mim, foi vê-lo recuperar o sorriso. Não há dúvida de que as crianças precisam mesmo de regras e de limites, mas as coisas funcionam bastante melhor se forem eles próprios a autodisciplinarem-se. Por aqui, esperamos ansiosamente que daqui por uns tempos nada disto seja preciso e que tudo volte ao normal. À realidade banal dos nossos dias, em que o mimo é doseado com disciplina, em que as crianças não são compradas com doces, em que cada um tem direito à sua individualidade. E à paz de espírito.

2 comentários:

  1. Ai, os regressos. Acho que os regressos também custam mais porque eles crescem tanto nas férias (neste caso, no sentido intelectual e emocional) que lhes custa voltar ao ponto inicial, do "eu" de há meses atrás. Mas depois vem a rotina e logo nos encaixamos todos nos eixos, com maior ou menor queixume.

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  2. Sim, ainda há mais essa... nós também temos de nos readaptar às rotinas. :(

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